O ESTRANHO CASO DA SOCIEDADE DR. JEKYLL E MR. HYDE
Por Heitor Jorge Lau
A essência da tragédia de Robert Louis Stevenson em O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde reside na tentativa desesperada de um homem respeitável de compartimentalizar o bem e o mal, isolando a virtude dos impulsos que ele temia. Na Londres vitoriana, a rigidez social exigia a figura impecável do Dr. Henry Jekyll – culto, caridoso e moralmente irrepreensível. Contudo, essa perfeição não era natural, mas sim o produto de uma repressão brutal. Hoje, a sociedade moderna, com suas exigências de sucesso ininterrupto e pureza ética ostentada, não apenas repete, mas amplifica essa tragédia em escala global, onde a persona pública é o Dr. Jekyll, e o submundo dos impulsos encontra seu Mr. Hyde na escuridão digital e na corrupção sistêmica. A obra não é apenas um conto de terror gótico, mas um diagnóstico profundo da fragilidade do caráter humano quando submetido à pressão de um ideal de virtude impossível.
O nosso Dr. Jekyll contemporâneo é a máscara social - uma fachada cuidadosamente curada e exibida nas grandes arenas da vida pública: redes sociais, o ambiente corporativo e a política. Na era do espetáculo, a vida se torna uma incessante performance. O conceito junguiano de Persona - a máscara que adotamos para interagir com o mundo - transformou-se em uma "vitrine de cristal" permanentemente iluminada, onde apenas o que é esteticamente agradável, moralmente louvável e financeiramente bem-sucedido pode ser exposto. O Jekyll digital é aquele que posta apenas conquistas, viagens, refeições gourmet e opiniões que se alinham à corrente de virtude do momento, ocultando meticulosamente a frustração, a inveja, a mediocridade do cotidiano e os conflitos morais internos.
Essa fachada é especialmente evidente no ambiente corporativo e político. O executivo que prega a ética e a sustentabilidade (o virtuoso Jekyll) em conferências e relatórios anuais, personifica o lado racional e civilizado que a sociedade premia. No entanto, sua contraparte, o Mr. Hyde corporativo, atua nos bastidores: manipula ratings, desvia fundos em paraísos fiscais ou esmaga impiedosamente a concorrência e os colaboradores para garantir o lucro. O sucesso não é apenas medido por resultados, mas pela capacidade de manter a imagem de virtude enquanto se exerce a ferocidade de Hyde. A própria arquitetura da vida digital e profissional incentiva essa dissociação: o brilho superficial de uma timeline versus a torrente de pensamentos e desejos não filtrados que se agitam por baixo. A repressão é tão intensa, e a exigência social de santidade tão asfixiante, que a criação de um avatar para acolher a sombra se torna um mecanismo de sobrevivência psíquica. O Jekyll moderno se convence de que pode, de fato, terceirizar a maldade, mantendo-se purificado no topo da pirâmide social.
Onde, então, reside o Mr. Hyde da nossa era? Ele não precisa mais de um laboratório e uma poção química... ele prospera no anonimato e na desresponsabilização que o mundo digital oferece. O Mr. Hyde contemporâneo é o hater anônimo, o usuário que, escudado por um pseudônimo ou pela distância fria de um smartphone, vomita ódio, misoginia, bullying ou ameaças que jamais ousaria proferir face a face, num bar ou numa praça. Este comportamento não é apenas uma liberação; é a manifestação exata da experiência de Hyde. Stevenson descreve Hyde como mais baixo, mais deformado e repulsivo - um reflexo físico da maldade não filtrada. Na internet, o anonimato permite que a alma se "atrofie", liberando a crueza da agressão sem a barreira civilizatória da vergonha ou da consequência imediata. O respeitável Jekyll (o cidadão em sua conta oficial) se transforma em Hyde (o troll em sua conta alternativa) com um simples logoff e login.
A proliferação do ódio digital é, na verdade, um banquete da catarse. O indivíduo, incapaz de expressar sua frustração e raiva legítima contra as injustiças e desigualdades do sistema (o Jekyll que falhou em ser perfeito), projeta essa fúria em bodes expiatórios virtuais. A desumanização do outro, facilitada pela tela e pelo anonimato, permite que se cometa o mal sem o peso da empatia. O discurso polarizado, por exemplo, é um campo fértil para esse Hyde coletivo: a simplificação do adversário em um inimigo moralmente inferior anula a complexidade e permite que se deseje o mal do outro sem culpa. Assistimos à banalização da crueldade, onde o choque de Stevenson com a brutalidade de Hyde é substituído pela indiferença de uma sociedade que se habituou a ver o ódio como mero conteúdo. A verdadeira tragédia do Hyde digital é que ele não se contenta em ser apenas feio. Ele exige ser justificado pela sua "tribo", transformando a maldade em adesão ideológica e o crime em liberdade de expressão.
A analogia se aprofunda no terreno da corrupção sistêmica e das crises de figuras públicas. O erro fundamental do Dr. Jekyll foi abraçar a tentação da separação. Ele acreditava, ingenuamente, que poderia purificar sua vida pública ao desviar todos os seus vícios para uma entidade separada. Este é o mesmo erro que a sociedade comete ao permitir a existência de uma dupla moral institucionalizada. Quando um líder político, um ícone de caridade ou um pastor respeitado é exposto por escândalos de desvio ou má conduta, a sociedade se choca, mas a filosofia do caso sugere que não houve uma súbita transformação, mas sim a falência de uma tentativa artificial de separação. O Jekyll social - a figura de poder e prestígio - utilizou sua própria virtude como escudo para que o Hyde - o apetite por poder, dinheiro e prazeres ilícitos - pudesse operar livremente.
No mercado financeiro, a estrutura da responsabilidade limitada funciona como uma poção: permite que o indivíduo assuma riscos morais extremos (Hyde) em nome de uma entidade (Jekyll) que o protege legalmente das consequências totais. O dinheiro e a reputação de Jekyll financiam a depravação e o crime de Hyde. Escândalos globais de sonegação, manipulação de mercados ou abusos éticos em cadeias de suprimentos demonstram que o lado sombrio não apenas sobrevive, mas se alimenta da respeitabilidade do lado bom. O vício da separação, que fez Jekyll precisar cada vez mais da poção para libertar Hyde, traduz-se no vício da hipocrisia na sociedade: quanto mais a imagem pública (Jekyll) se torna perfeita e intocável, mais insaciável e perigoso se torna o apetite secreto (Hyde) que a sustenta e a destrói por dentro.
A grande crítica filosófica que a obra de Stevenson nos impõe é a do perigo de uma sociedade que exige a perfeição e ignora a sombra. Na narrativa, à medida que Jekyll se transforma em Hyde mais frequentemente, o monstro se torna fisicamente mais forte, e o médico, mais fraco, até que a transformação se torna involuntária e irreversível. Isso serve como uma terrível analogia para a erosão da moralidade individual e coletiva. A negação da dualidade, a tentativa de amputar o lado sombrio, é uma forma de autoengano que leva ao desastre. Nietzsche advertiu que "quem luta com monstros deve cuidar para que, ao fazê-lo, não se torne também um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olhará para dentro de você". A sociedade, ao tentar banir totalmente a sua sombra, acaba por mergulhar no abismo da irracionalidade de Hyde.
Quando a fachada social se torna insustentável, a libertação de Hyde é avassaladora. Vemos isso na escalada de fanatismos políticos, sociais e religiosos, onde a raiva e o ressentimento reprimidos de parcelas da população, cansadas de sustentar uma máscara de civismo esgotada, explodem em atos de violência irracional. Eles abraçam um Hyde coletivo, validado pela turba, que lhes dá permissão para destruir o que a persona Jekyll valorizava. A massa cede à tentação de ser Hyde sem as consequências da individualidade, diluindo a responsabilidade no fervor coletivo.
Enfim, a tragédia de Jekyll e Hyde é a nossa. Vivemos na era do Dr. Jekyll mais reluzente e tecnologicamente bem-sucedido que a história já conheceu, mas é também a era do Mr. Hyde mais virulento e anônimo. A lição derradeira não é a de banir o lado sombrio, mas sim a de reconhecê-lo e integrá-lo, numa tentativa constante de síntese. A poção que Stevenson nos oferece não é a da separação, mas a do autoconhecimento e da responsabilidade. A integridade, em seu sentido mais profundo, não é a ausência de mal, mas a consciência da dualidade e a capacidade de escolher, a cada momento, a resposta civilizada. Somente ao aceitar que o monstro vive dentro do médico - que o impulso obscuro está inextricavelmente ligado à nossa capacidade de civilidade - podemos começar a domesticar Hyde, em vez de apenas aprisioná-lo. A negação é o veneno... a consciência, a coragem e a integração são o único antídoto para evitar que o Hyde moderno consuma o mundo que o seu Jekyll se esforça tanto para construir.

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