sábado, 25 de outubro de 2025

A FENOMENOLOGIA NO COTIDIANO: DESVELANDO O SENTIDO PARA DECISÕES AUTÊNTICAS.

 


Por Heitor Jorge Lau

            Desvendar a fenomenologia e a relacionar intrinsecamente ao cotidiano do ser humano é, em si, um convite a uma jornada. É um chamado para mergulhar na essência do que se mostra, para suspender o juízo prévio e permitir que o significado brote da própria experiência, tal como a disciplina filosófica em questão propõe. A fenomenologia, cunhada por Edmund Husserl no início do século XX e desdobrada por gigantes como Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre, não é um arcabouço teórico distante das preocupações mundanas, mas sim uma atitude fundamental, um método rigoroso que nos convida a "ir às próprias coisas", ao modo como o mundo se manifesta diretamente à nossa consciência. Essa atitude de retorno à experiência imediata é o que confere à fenomenologia sua validade inestimável para a análise do cotidiano e, consequentemente, para a tomada de decisões mais acertadas.

            No cerne da fenomenologia reside a noção de intencionalidade. A consciência não é um receptáculo vazio, mas está sempre direcionada para algo. Toda consciência é "consciência de algo". O ato de ver é ver algo, o ato de pensar é pensar em algo, o ato de sentir é sentir algo. Essa relação inquebrável entre o sujeito e o objeto, entre a consciência e o mundo, é o que estrutura nossa vivência. No nosso dia a dia, muitas vezes, agimos de forma automática, imersos em um fluxo de hábitos e preconceitos herdados (preconceitos no sentido de conceitos pré elaborados ou herdados). A rotina, com suas demandas e expectativas sociais, tende a ofuscar a experiência nua e crua, o fenômeno em sua manifestação mais pura. Tomamos decisões baseadas no que "se diz", no que "sempre foi feito" ou no que a "ciência" ou a "tradição" prescrevem, sem antes examinar a situação em sua singularidade e em seu modo de ser para nós. Reações tipicamente humanas.

            É aqui que a redução fenomenológica - ou epoché - se torna uma ferramenta poderosa para o ser humano no cotidiano. A epoché é a suspensão do juízo sobre a existência objetiva do mundo. Não se trata de duvidar da realidade, como um cético, mas de colocar "entre parênteses" todas as nossas crenças, pressupostos e teorias sobre o fenômeno que se apresenta. Ao fazê-lo, abrimos espaço para que o fenômeno se mostre por si mesmo, em sua essência. Por exemplo, ao encarar uma decisão profissional complexa, o sujeito pode estar condicionado por preconceitos sociais sobre o sucesso, pela pressão familiar ou por modelos idealizados. A epoché exige que ele suspenda o que o "mundo da vida" (o Lebenswelt de Husserl) lhe impõe e se volte para o modo como essa situação lhe aparece, qual o sentido que essa escolha tem para sua existência, desvelando a essência da experiência para além da casca das convenções. Essa atitude radicalmente reflexiva é o primeiro passo para uma decisão mais autêntica e, portanto, mais acertada.

            Martin Heidegger, ao desenvolver a fenomenologia hermenêutica em Ser e Tempo, desloca a atenção de Husserl para o Dasein - o ser-aí, o ser humano cuja essência é a própria existência e que se encontra sempre "lançado no mundo". Para Heidegger, o cotidiano, ou a quotidianidade, é o modo de ser mais comum e, paradoxalmente, mais inautêntico do Dasein. Na rotina, o ser se perde no impessoal "se" (das Man): "se faz assim", "se pensa daquele modo". O ser humano vive alienado, mergulhado em um falatório superficial (Gerede), na curiosidade insaciável e na ambiguidade do mundo compartilhado. A preocupação do Dasein, no entanto, é o seu próprio ser. A tomada de decisão no cotidiano, nesse contexto, é frequentemente uma fuga da própria liberdade e responsabilidade, um deixar-se levar pela maré do senso comum.

            O despertar para a inautenticidade do cotidiano, para Heidegger, é mediado pela angústia. A angústia, diferente do medo que tem um objeto específico, é o sentimento de desamparo diante do "nada" que subjaz à existência. É a revelação de que o Dasein é um ser-para-a-morte, um ser finito e responsável por suas escolhas. É na angústia que o Dasein é chamado à resolução (Entschlossenheit), o ato de se colocar diante de sua possibilidade mais própria - a morte - e, a partir dela, assumir a responsabilidade por sua existência. Uma decisão "acertada", nesse prisma, não é a que traz o maior benefício material ou a aprovação social, mas sim a que é tomada a partir da autenticidade, do resgate do seu próprio projeto de ser. O estudante que decide abandonar o curso "promissor" para se dedicar a uma paixão, contra todas as expectativas, toma uma decisão fenomenologicamente mais "acertada" se ela for fruto de uma resolução autêntica, de um desvelamento do sentido de sua própria existência, e não de um mero capricho.

            Maurice Merleau-Ponty, por sua vez, traz o corpo para o centro da análise fenomenológica. Para ele, somos seres-no-mundo primordialmente através do nosso corpo, que é nosso veículo de ser e de percepção. O cotidiano não é apenas o mundo dos objetos e das interações sociais, mas é o mundo vivido, percebido e significado pelo corpo. A percepção não é um processo passivo de captação de dados sensoriais, mas um ato intencional e engajado do corpo-próprio. A maneira como me sinto ao entrar em um ambiente (o "clima", a "atmosfera"), o conforto ou o desconforto na interação com o outro, tudo isso é mediado por uma fenomenologia da percepção corporal.

            Em termos de tomada de decisão, o corpo-próprio tem uma sabedoria que a razão abstrata muitas vezes ignora. Pense no atleta que toma uma decisão em milissegundos, não por um cálculo lógico, mas por uma "intuição" corporal forjada em anos de prática. Ou no terapeuta que "sente" a tensão ou a verdade na postura do paciente. A decisão acertada, na perspectiva de Merleau-Ponty, exige que se leve a sério essa dimensão pré-reflexiva, o saber-fazer incorporado. Ignorar as sensações viscerais, o aperto no peito ou a leveza sentida diante de uma escolha, em nome de uma racionalidade fria, é mutilar a totalidade da experiência vivida e se afastar do caminho da sabedoria prática. A fenomenologia nos ensina a habitar nosso corpo, a escutar os sentidos que brotam de nossa inserção perceptiva no mundo.

            Jean-Paul Sartre, com sua fenomenologia existencialista, enfatiza a liberdade radical e a responsabilidade. O ser humano é "condenado a ser livre". A existência precede a essência, o que significa que não nascemos com uma natureza pré-determinada; somos o que escolhemos ser. Cada decisão, por mais trivial que pareça no cotidiano, é um ato de criação de nossa essência e, fundamentalmente, uma escolha para toda a humanidade. Ao tomar uma decisão, o sujeito engaja a si mesmo e, na visão sartreana, projeta uma imagem de como ele crê que o ser humano deve ser.

            Se a fenomenologia sartreana nos revela a angústia da responsabilidade total, é justamente nela que reside o potencial para decisões mais acertadas. Uma decisão é errada, ou inautêntica, quando é tomada de má-fé. A má-fé é a mentira para si mesmo, o ato de negar a própria liberdade e responsabilidade, seja se objetivando como uma "coisa" determinada pelas circunstâncias ("eu sou assim", "fui forçado pelas regras"), seja se perdendo na transcendência vaga e abstrata. A atitude fenomenológica, aqui, é a da lucidez radical, o reconhecimento de que, embora as circunstâncias sejam dadas, a significação que lhes atribuímos e a resposta que damos são sempre escolhas livres. Para Sartre, a decisão acertada é aquela que é assumida em plena consciência da própria liberdade e da responsabilidade irrestrita, aceitando o peso do risco e da criação de valor.

            Enfim, a fenomenologia, em suas diversas vertentes, oferece ao ser humano um antídoto contra a superficialidade e a inautenticidade do cotidiano massificado. Ela nos convida a sair do reino do "parecer" para buscar o ser, a transcender o mero fato para alcançar o sentido. Ela não oferece fórmulas prontas ou algoritmos de decisão, mas sim um método de elucidação. O cotidiano é, em grande parte, um fluxo de fenômenos não-examinados, de rotinas que nos fazem esquecer a maravilha e a estranheza de simplesmente ser. Desde a escolha mais simples, como o que comer no café da manhã, até a mais complexa, como a escolha de uma carreira ou de um parceiro, a fenomenologia nos exorta a uma pausa.

            Essa pausa é a epoché em ação: parar, suspender o turbilhão de opiniões, medos, esperanças e convenções, e perguntar: O que é que se mostra aqui, para mim, agora? Qual a essência dessa situação? Qual o sentido que meu corpo, minha angústia, minha liberdade me revelam sobre essa possibilidade?

            A validade da fenomenologia para a tomada de decisões reside precisamente na sua capacidade de aprofundar a experiência. Uma decisão acertada não é apenas uma que gera um resultado positivo em termos externos, mas uma que ressoa com o projeto de ser autêntico do indivíduo. É a decisão que não trai a si mesmo, que não é fruto da alienação no das Man, mas da resolução do Dasein em assumir sua finitude e sua liberdade. Ao voltarmos a atenção para a correlação intencional entre consciência e fenômeno, descobrimos que não somos meros produtos passivos de um mundo objetivo, mas cocriadores de sentido. O mundo da vida (Lebenswelt) é a totalidade de nossas experiências pré-científicas e pré-reflexivas, o solo de toda a nossa compreensão. A fenomenologia nos permite mergulhar nesse solo, desvelar os significados sedimentados e, se necessário, ressignificar o que se apresenta.

            A decisão de perdoar, por exemplo, não pode ser tomada apenas a partir de um cálculo moral ou social. Requer que se suspenda a indignação reativa, o ressentimento e o julgamento prévio, e que se tente desvelar a essência do ato do outro e o impacto desse ato na própria existência. O perdão, visto fenomenologicamente, é uma emergência de sentido, uma abertura para uma nova possibilidade de relação consigo e com o outro, que só se torna acessível quando se coloca a experiência vivida (o sofrimento, a ofensa) em sua plena manifestação. Portanto, a fenomenologia não é um manual de autoajuda, mas uma atitude filosófica que, quando incorporada ao cotidiano, transforma o modo como vivemos e decidimos. Ela nos liberta da tirania das aparências e dos preconceitos, forçando-nos a encarar a estrutura intencional de nossa consciência, a angústia de nossa liberdade e a sabedoria de nosso corpo. Uma decisão só é verdadeiramente acertada quando é autêntica, ou seja, quando é o resultado desse confronto corajoso e lúcido com o modo como o mundo se manifesta para nós. A fenomenologia é, portanto, a disciplina da lucidez existencial, o caminho para transformar o "eu se faz" impessoal do cotidiano em um "eu faço" resoluto e responsável, conferindo peso e sentido à cada um dos nossos atos no mundo. O convite é permanente: saia do automatismo, suspenda o que lhe é dado e vá às próprias coisas; só assim a essência se desvela e a decisão se torna, em sua raiz mais profunda, própria. Essa é a validade perene da fenomenologia no eterno e complexo teatro da existência humana.

            A proposta de adotar a fenomenologia como uma "filosofia de vida- uma atitude de constante retorno à experiência e de busca pelo sentido autêntico do ser- inevitavelmente nos lança em um confronto dramático com os preceitos morais e culturais pré-estabelecidos. A questão não é se iremos de encontro a eles, mas sim em que medida e a que custo. A moral e a cultura são, fenomenologicamente, parte do nosso Lebenswelt (Mundo da Vida). Elas são o sedimento histórico, social e intersubjetivo que nos fornece um chão, um repertório de valores e expectativas (o "se" impessoal de Heidegger). Elas nos dizem "como se deve" amar, trabalhar, ter sucesso e, acima de tudo, "como se deve" decidir. Ao nos submetermos à epoché fenomenológica, ao "colocar entre parênteses" esses preceitos, estamos, por definição, questionando a sua autoridade cega sobre a nossa existência. Não se trata de uma negação niilista, mas de uma suspensão para a elucidação do sentido.

            O conflito surge porque a autenticidade, conforme delineada por Heidegger e Sartre, é um chamado individual à resolução, que se opõe ao conforto e à irresponsabilidade do que é meramente "dado" ou "compartilhado". O sujeito que decide autenticamente é aquele que assume a sua liberdade radical e o seu projeto de ser, mesmo que esse projeto o coloque em desalinho com o ethos de sua comunidade. A decisão acertada, do ponto de vista fenomenológico, é a que honra a singularidade irredutível do Dasein; do ponto de vista social, ela pode ser vista como um ato de rebeldia, egoísmo ou incompreensão. O custo da autenticidade, portanto, é a angústia do isolamento social, uma preocupação perfeitamente legítima e central na filosofia existencial.

            É preciso reconhecer que o medo do isolamento não é um mero capricho, mas uma manifestação da nossa estrutura de ser-com-o-outro. O ser humano, como Merleau-Ponty nos lembra, é um ser engajado no mundo, e esse engajamento é sempre mediado pela presença e pelo olhar do outro. A negação completa das normas sociais pode levar a uma incomunicabilidade, a uma ruptura da malha intersubjetiva que nos sustenta. O indivíduo que tenta viver em um vácuo de convenções pode descobrir que a sua "liberdade" se transforma em solidão estéril, pois o sentido da sua existência é, em parte, construído na ressonância com o outro. O extremo da autenticidade pode, paradoxalmente, paralisar a ação no mundo.

            Entretanto, a fenomenologia não é uma apologia ao eremitismo (indivíduo que, usualmente por penitência, religiosidade, misantropia ou simples amor à natureza, vive em um lugar deserto, isolado). O cerne da questão reside na distinção entre pertencimento inautêntico e comunhão autêntica. O isolamento inautêntico (o preço da má-fé) que é o maior custo para o ser humano é, na verdade, o isolamento que surge da má-fé. É a solidão de estar rodeado de pessoas, mas sentir-se invisível ou incompreendido porque se vive uma vida emprestada, conforme o script do "se". A negação da própria liberdade e o refúgio nos papéis sociais predefinidos ("eu sou apenas um pai", "eu sou apenas um funcionário") podem evitar o conflito externo, mas geram uma profunda cisão interna, que é a forma mais dolorosa e limitante de isolamento. O indivíduo se torna um estranho para si mesmo.

            O risco da autenticidade (o preço da coragem) seria a impopularidade; na verdade, ela quase sempre exige a disposição de ficar só consigo mesmo em face da incompreensão alheia. O indivíduo autêntico não renega a cultura e a moral, mas as acolhe criticamente. Ele as submete à epoché, extrai delas o sentido que lhe é próprio e rejeita aquilo que o impede de realizar seu projeto existencial. Ele pode ter que abrir mão de certas conexões superficiais e confortáveis (o Gerede, o falatório heideggeriano), mas é através dessa renúncia que se abre a possibilidade de conexões mais profundas e verdadeiras — as relações autênticas, onde o ser-com-o-outro é uma cocriação de sentido e não uma mera conformidade.

            Portanto, o risco de isolamento social não é o custo de uma disciplina filosófica, mas sim o custo intrínseco de ser livre. A fenomenologia, ao nos convidar a tomar decisões acertadas, nos orienta a priorizar o valor autêntico em detrimento do conforto social. A decisão mais acertada, à luz da fenomenologia, não é aquela que elimina o risco de isolamento, mas a que é tomada com a plena consciência desse risco. É um ato de coragem em que o indivíduo assume a totalidade de sua existência: seu Dasein finito, sua liberdade radical, sua responsabilidade perante a humanidade e, sim, sua vulnerabilidade diante do tribunal da sociedade. Se a autêntica tomada de decisão resultar em isolamento, não é a filosofia que falhou, mas a sociedade que não pôde acompanhar o passo do indivíduo (ou não quer e não aceita a livre expressão).

            O desfecho desse breve texto sobre fenomenologia, então, é uma convocação à responsabilidade lúcida: a fenomenologia não é uma rota de fuga do convívio, mas um convite a torná-lo mais significativo. Que as decisões sejam tomadas com os olhos abertos para o fenômeno, com a escuta atenta ao corpo, e com a coragem inabalável de ser o autor de sua própria essência, mesmo que o caminho da autenticidade seja mais solitário, ele é o único que é, de fato, o seu. A escolha final, como sempre, é sua!


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