quinta-feira, 29 de abril de 2021

A Sombra de Todo Ser Humano

 

                O LADO DA SOMBRA NA VIDA COTIDIANA

                Em 1886, mais de uma década antes de Freud sondar as profundezas da escuridão humana, Robert Louis Stevenson teve um sonho altamente revelador: um homem, perseguido por um crime, engolia um certo pó e passava por uma drástica mudança de caráter, tão drástica que ele se tornava irreconhecível. O amável e laborioso cientista Dr. Jekyll transformava-se no violento e implacável Mr. Hyde, cuja maldade assumia proporções cada vez mais grotescas à medida que o sonho se desenrolava. Stevenson desenvolveu o sonho no seu famoso romance The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde). Seu tema integrou-se de tal modo na cultura popular que se pensa nele quando alguém diz: "Eu não era eu mesmo", ou "Ele parecia possuído por um demônio", ou "Ela virou uma megera". Como dizia John Sanford (analista junguiano) se uma história como essa toca tão a fundo e soa tão verdadeira, é porque ela contém uma qualidade arquetípica — ela fala de um ponto no ser humano que é universal. Todos contêm um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde: uma persona agradável para o uso cotidiano e um eu oculto e noturno) que permanece amordaçado a maior parte do tempo. Emoções e comportamentos negativos — raiva, inveja, vergonha, falsidade, ressentimento, lascívia, cobiça, tendências suicidas e homicidas — ficam escondidos logo abaixo da superfície, mascarados pelo eu mais apropriado às conveniências.

                Em seu conjunto, são conhecidos na psicologia como a Sombra Pessoal, que continua a ser um território indomado e inexplorado para a maioria das pessoas.

                A apresentação da sombra

             A sombra pessoal desenvolve-se naturalmente em todas as crianças. Na medida da identificação com as características ideais de personalidade (tais como polidez e generosidade) que são encorajadas pelo ambiente, acontece a formatação daquilo que W. Brugh Joy chama de: "eu das decisões de Ano Novo". Ao mesmo tempo, vai enterrando na sombra aquelas qualidades que não são adequadas à autoimagem, como a rudeza e o egoísmo. O ego e a sombra, portanto, desenvolvem-se aos pares, criando-se mutuamente a partir da mesma experiência de vida. Carl Jung viu em si mesmo a inseparabilidade do ego e da sombra, num sonho que descreve em sua autobiografia Memories, Dreams, Reflections (Memórias, Sonhos, Reflexões): “Era noite, em algum lugar desconhecido, e eu avançava com muita dificuldade contra uma forte tempestade. Havia um denso nevoeiro. Eu segurava e protegia com as mãos uma pequena luz que ameaçava extinguir-se a qualquer momento. Eu sentia que precisava mantê-la acesa, pois tudo dependia disso. De súbito, tive a sensação de que estava sendo seguido. Olhei para trás e percebi uma gigantesca forma escura seguindo meus passos. Mas no mesmo instante tive consciência, apesar do meu terror, de que eu precisava atravessar a noite e o vento com a minha pequena luz, sem levar em conta perigo algum. Ao acordar, percebi de imediato que havia sonhado com a minha própria sombra, projetada no nevoeiro pela pequena luz que eu carregava. Entendi que essa pequena luz era a minha consciência, a única luz que possuo. Embora infinitamente pequena e frágil em comparação com os poderes das trevas, ela ainda é uma luz, a minha única luz”.

                Muitas forças estão em jogo na formação da sombra e, em última análise, determinam o que pode e o que não pode ser expresso. Pais, irmãos, professores, clérigos e amigos criam um ambiente complexo no qual se aprende aquilo que representa o comportamento gentil, conveniente e moral, e aquilo que é mesquinho, vergonhoso e pecaminoso. A sombra age como um sistema imunológico psíquico, definindo o que é eu e o que é não-eu. Pessoas diferentes, em diferentes famílias e culturas, consideram de modos diversos aquilo que pertence ao ego e aquilo que pertence à sombra. Por exemplo, alguns permitem a expressão da raiva ou da agressividade; a maioria, não. Alguns permitem a sexualidade, a vulnerabilidade ou as emoções fortes; muitos, não. Alguns permitem a ambição financeira, a expressão artística ou o desenvolvimento intelectual; outros, não. Todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e na sombra contribuem para o poder oculto do lado escuro da natureza humana. No entanto, nem todos eles são aquilo que se considera traços negativos. De acordo com Liliane FreyRohn (analista junguiana), esse escuro tesouro inclui a porção infantil, os apegos emocionais e sintomas neuróticos bem como os talentos e dons não-desenvolvidos. A sombra, diz ela, "mantém contato com as profundezas perdidas da alma, com a vida e a vitalidade — o superior, o universalmente humano, sim, mesmo o criativo pode ser percebido ali".

                A rejeição da sombra

                Não se pode olhar diretamente para esse domínio oculto. A sombra é, por natureza, difícil de ser apreendida. Ela é perigosa, desordenada e eternamente oculta, como se a luz da consciência pudesse roubar-lhe a vida. James Hillman (analista junguiano), autor de diversas obras, diz: "O inconsciente não pode ser consciente; a Lua tem seu lado escuro, o Sol se põe e não pode iluminar o mundo todo ao mesmo tempo [...]. A atenção e o foco exigem que algumas coisas fiquem fora do campo visual, permaneçam no escuro. Não se pode olhar em duas direções ao mesmo tempo". Por essa razão, a sombra geralmente é percebida indiretamente, nos traços e ações desagradáveis das outras pessoas, lá fora, onde é mais seguro observá-la. Reações intensas a uma qualidade qualquer (preguiça, estupidez, sensualidade, espiritualidade, etc.) de uma pessoa ou grupo, e a pessoas se “enche” de grande aversão ou admiração — essa reação talvez seja a própria sombra se revelando. O ser humano se projeta ao atribuir essa qualidade à outra pessoa, num esforço inconsciente de bani-la de si mesmo, de evitar vê-la dentro de si.

                Marie-Louise von Franz (analista junguiana) sugere que essa projeção é como disparar uma flecha mágica. Se o destinatário tem um "ponto fraco" onde receber a projeção, então ela se mantém, se projetada a raiva sobre um companheiro insatisfeito, ou o poder de sedução sobre um atraente estranho, ou os atributos espirituais sobre um guru, então o alvo é atingido e a projeção se mantém. Daí em diante, emissor e receptor estarão unidos numa misteriosa aliança, como apaixonar-se ou encontrar o herói (ou vilão) perfeito. A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não desenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente se recusa a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros.

                O encontro com a sombra

                Embora não se possa fitá-la diretamente, a sombra surge na vida diária. Por exemplo, ela se encontra em tiradas humorísticas (tais como piadas sujas ou brincadeiras tolas) que expressam as emoções ocultas, inferiores ou temidas. Analisando de perto aquilo que é engraçado (como alguém escorregando numa casca de banana ou se referindo a uma parte "proibida" do corpo), se descobre que sombra pessoal está ativa. John Sanford diz que é possível que as pessoas destituídas de senso de humor tenham uma sombra muito reprimida. Em geral, é a sombra que ri das piadas. Molly Tuby (psicanalista inglesa) sugere seis outras maneiras pelas quais, mesmo sem saber, a sombra pode ser encontrada no dia-a-dia:

         Nos sentimentos exagerados em relação aos outros ("Eu simplesmente não acredito que ele tenha feito isso!", "Não consigo entender como ela é capaz de usar uma roupa dessas!")

         Na opinião negativa que se recebe daqueles que servem de espelhos ("Já é a terceira vez que você chega tarde sem me avisar.")

         Nas interações em que continuamente se exerce o mesmo efeito perturbador sobre diversas pessoas diferentes ("Eu e o Sam achamos que você não está sendo honesto com a gente.")

         Nos nossos atos impulsivos e não-intencionais ("Puxa, desculpe, eu não quis dizer isso!")

         Nas situações de humilhação ("Estou tão envergonhada com o jeito que ele me trata.")

         Na raiva exagerada em relação aos erros alheios ("Ela simplesmente não consegue fazer seu trabalho em tempo!", "Cara, mas ele perdeu totalmente o controle do peso!")

                Em momentos como esses, de dominação por fortes sentimentos de vergonha ou de raiva, ou quando se descobre que o próprio comportamento é inaceitável, é a sombra que está irrompendo de um modo inesperado. E em geral ela retrocede com igual velocidade; pois encontrar a sombra pode ser uma experiência assustadora e chocante para a autoimagem. Por essa razão, é possível mudar rapidamente para a negação, deixando de prestar atenção a fantasias homicidas, a pensamentos suicidas ou a embaraçosos sentimentos de inveja, que revelariam um pouco da própria escuridão. R. D. Laing (psiquiatra já falecido) descreve de modo poético o reflexo de negação da mente: “O alcance do que pensamos e fazemos é limitado pelo que deixamos de notar. E por deixarmos de notar que deixamos de notar pouco podemos fazer para mudar, até que notemos como o deixar de notar forma nossos pensamentos e ações”. Se a negação permanecer, então, como diz Laing, talvez nem sequer é notado que foi deixado de notar. Por exemplo, é comum encontrar a sombra na meia-idade, quando mais profundas necessidades e valores tendem a mudar de direção. Isso exige a quebra de velhos hábitos e o cultivo de talentos adormecidos. Ao não parar para ouvir atentamente o chamado e continuar a se mover na mesma direção anterior, se permanece inconsciente daquilo que a meia-idade tem a ensinar.

                A depressão também pode representar uma confrontação paralisante com o lado escuro, um equivalente moderno da "noite escura da alma" do místico. A exigência interior para que se desça ao mundo subterrâneo pode ser suplantada por considerações de ordem externa (como a necessidade de trabalhar por longas horas), pela interferência dos outros ou por drogas antidepressivas que amortecem a sensação de desespero. Nesse caso, se deixa de apreender o propósito da melancolia. Encontrar a sombra pede uma desaceleração do ritmo da vida, pede que se ouça as indicações do próprio corpo e que conceda tempo para estar a sós, a fim de poder digerir as mensagens misteriosas do mundo oculto.

                A sombra coletiva

                Hoje em dia, todos se defrontam com o lado escuro da natureza humana ao abrir um jornal ou ouvir o noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para toda a moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a sombra coletiva. A sombra coletiva — a maldade humana — encara de praticamente todas as partes: ela salta das manchetes dos jornais; vagueia pelas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas; entoca-se nas chamativas sexshops das cidades; desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional; corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos; vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários; por canos ocultos, despeja a poluição nos rios e oceanos; com invisíveis pesticidas, envenena o alimento.

                Essas observações não constituem algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. A época atual fez, de todos, testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há como evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos coniventes, os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. O anseio interior por integração — agora tornado manifesto na máquina de comunicação global — força todos a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda parte. Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida. Quando essas últimas se tomam objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de "bode expiatório" ou de criação do "inimigo". Para os americanos anticomunistas, a U.R.S.S. era o Império do Mal. Para os muçulmanos, os Estados Unidos são o Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são vermes bolcheviques. Para o monge asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo. Para os sul-africanos defensores do Apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os negros são subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos. O poder hipnótico e a natureza contagiosa dessas fortes emoções ficam evidentes na extensão e universalidade das perseguições raciais, das guerras religiosas e das táticas de busca de bodes expiatórios. E, é assim que os seres humanos tentam desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são superiores — e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a eles.

                Ao longo da história, a sombra tem surgido (através da imaginação humana) como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um extraterrestre ou um homem tão vil que não se pode nos espelhar nele — ele está tão distante quanto uma Górgona (criatura da mitologia grega). Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido, então, um dos propósitos básicos da arte e da literatura. Como disse Nietzsche: "Temos arte para que a realidade não nos mate." Usando as artes e a mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou demoníacas quanto à sombra, se tenta ganhar poder sobre ela, quebrar seu feitiço. Isso pode ajudar a explicar por que o ser humano fica tão excitados com as violentas arengas de arautos da guerra e de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do mundo.

                A projeção também pode ajudar a explicar a imensa popularidade dos filmes e romances de terror. Através de uma representação simbólica do lado da sombra, os impulsos para o mal podem ser encorajados, ou talvez aliviados, na segurança do livro ou da tela. As crianças, tipicamente, começam a aprender os assuntos da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra entre as forças do bem e do mal, fadas-madrinhas e terríveis demônios. As crianças, como os adultos, também sofrem simbolicamente as provações de seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os padrões universais do destino humano. Na batalha da censura que hoje se desenrola no campo da mídia e da música, aqueles que pretendem estrangular a voz da sombra talvez não compreendam sua urgente necessidade de ser ouvida. Num esforço para proteger os jovens, os censores reescrevem Chapeuzinho Vermelho e fazem com que ela não seja mais devorada pelo lobo; mas, desse modo, acabam deixando os jovens despreparados para enfrentar o mal com que irão se defrontar. Como a sociedade, cada família também constrói seus próprios tabus, suas áreas proibidas. A sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção consciente de uma família, aqueles sentimentos e ações que são considerados demasiado ameaçadores à sua autoimagem.

                Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça talvez seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião; numa família liberal e ateia, talvez seja a opção pelos relacionamentos homossexuais. Na sociedade, espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos na sombra familiar, mas hoje emergem, em proporções epidêmicas, à luz do dia. O lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de civilização e educação. Ele tem suas raízes numa sombra biológica, que se baseia nas próprias células. Os ancestrais animalescos, afinal de contas, sobreviveram graças às presas e às garras. A besta nas pessoas está viva, muito viva — só que a maior parte do tempo encarcerada. Muitos antropólogos e sociobiólogos acreditam que a maldade humana seja resultado do controle da agressividade animal, da opção pela cultura em detrimento da natureza e da perda de contato com a selvageria primitiva. Melvin Konner (médico e antropólogo) conta, em The Tangled Wing, que foi a um zoológico, viu uma placa que dizia "O Animal Mais Perigoso da Terra" e se descobriu olhando para um espelho. Conhece-te a ti mesmo. Em tempos remotos, o ser humano reconhecia as diversas dimensões da sombra: a pessoal, a coletiva, a familiar e a biológica. Nos degraus do templo de Apolo em Delfos — erigido na encosta do Monte Parnaso pelos gregos do período clássico e hoje destruído — os sacerdotes gravaram na pedra duas famosas inscrições, dois preceitos que ainda guardam imensa significação para nos dias de hoje.

                O primeiro deles, "Conhece-te a ti mesmo". Conheça tudo sobre você mesmo, aconselhavam os sacerdotes do deus da luz. É possível dizer: Conheça especialmente o lado escuro de você mesmo. Os seres humanos são descendentes diretos da mente grega. A sombra continua a ser o grande fardo do autoconhecimento, o elemento destrutivo que não quer ser conhecido. Os gregos entenderam muito bem esse problema e sua religião os compensava pelo lado de baixo da vida. Era na mesma encosta da montanha acima de Delfos que os gregos celebravam, todos os anos, as suas famosas bacanais, as orgias que glorificavam a poderosa e criativa presença do deus da natureza, Dioniso, nos seres humanos. Hoje, Dioniso foi aviltado e apenas subsiste nas imagens de Satã, o Diabo de cascos fendidos, personificação do mal. Não mais um deus a ser reverenciado e digno de receber um tributo, ele foi banido para o mundo dos anjos caídos. Marie-Louise von Franz reconhece a relação entre o diabo e a sombra pessoal quando diz: "Na verdade, o princípio da individuação está relacionado com o elemento diabólico na medida em que este último representa a separação do divino dentro da totalidade da natureza. Os aspectos diabólicos são os elementos destrutivos — os afetos, o impulso autônomo de poder e coisas semelhantes. Eles rompem a unidade da personalidade".

                Nada em excesso

                A outra inscrição em Delfos talvez seja mais representativa da época atual. "Nada em excesso", proclama o deus grego do alto de seu santuário terrestre hoje desmoronado. Dodds, estudioso dos clássicos, sugere uma interpretação para essa epígrafe. Só uma pessoa que conhece os excessos, diz ele, poderia viver segundo essa máxima. Só aqueles que conhecem a sua capacidade para a lascívia, a cobiça, a raiva, a glutonaria e todos os excessos — aqueles que compreenderam e aceitaram o seu próprio potencial para extremos inadequados — podem optar por controlar e humanizar suas ações. Atualmente se vive numa época de excessos críticos: gente demais, crime demais, exploração demais, poluição demais, armas demais. Esses são excessos que possíveis de reconhecer e condenar, mesmo que impotentes para fazer algo a respeito. E, afinal, existe algo que se possa fazer a respeito? Para muitas pessoas, as qualidades inaceitáveis do excesso vão diretamente para a sombra inconsciente ou se expressam em comportamentos indistintos. Para alguns, esses extremos tomam a forma de sintomas: sentimentos e ações intensamente negativos, sofrimento neurótico, doenças psicossomáticas, depressão e abuso das próprias forças. Os cenários podem parecer a estes: diante de um sentimento excessivo, ele é lançado na sombra e depois passado para o ato sem nenhuma preocupação pelos outros; diante de um sentimento de fome excessiva, ele é lançado na sombra e depois acontece o “empanturramento”, embriaguez e evacuação, tratando o corpo como lixo; diante de um sentimento de anseio excessivo pelo lado mais elevado da vida, ele é lançado na sombra e depois buscado através de gratificações instantâneas ou de atividades hedonísticas, como abuso de drogas ou de álcool. A lista continua. Na sociedade, é possível ver o crescimento dos excessos da sombra por todos os lados:

                - Num impulso descontrolado para conhecer e dominar a natureza (que se expressa na imoralidade da ciência e na união desregrada entre os negócios e a tecnologia).

                - Numa pretensiosa compulsão de ajudar e curar os outros (que se expressa na distorção e na dependência do papel dos profissionais da área de saúde e na cobiça de médicos e companhias farmacêuticas).

                - No ritmo acelerado e desumanizado do mercado de trabalho (que se expressa na apatia de uma força de trabalho alienada, na obsolescência não-planejada, causada pela automação, e na arrogância do sucesso).

                - Na maximização do crescimento e expansão dos negócios (que se expressa nas aquisições fraudulentas de controle acionário, no enriquecimento ilícito, no uso privilegiado de informações confidenciais e no colapso do sistema de financiamento habitacional).

                - Num hedonismo materialista (que se expressa no consumo exacerbado, na propaganda enganosa, no desperdício e na poluição devastadora).

                - No desejo de controlar a vida íntima, que é incontrolável por sua própria natureza (que se expressa no narcisismo generalizado, na exploração pessoal, na manipulação dos outros e no abuso de mulheres e crianças).

                - E no incessante medo da morte (que se expressa na obsessão com a saúde e a forma física, dietas, medicamentos e longevidade a qualquer preço).

                Esses aspectos da sombra atingem toda a sociedade. No entanto, algumas soluções que foram experimentadas para curar o excesso coletivo podem ser ainda mais perigosas que o problema. Basta considerar, por exemplo, o fascismo e o autoritarismo — horrores que surgiram das tentativas reacionárias de deter a desordem social e a decadência e permissividade generalizadas na Europa. Em tempos mais recentes e como reação a ideias progressistas, o fervor do fundamentalismo religioso e político voltou a despertar nos Estados Unidos e na Europa, encorajando, nas palavras de William B. Yeats (poeta), que a "anarquia seja lançada sobre o mundo". Jung atenuou a questão ao afirmar que: "Ingenuamente, esquecemos que por debaixo do nosso mundo racional jaz um outro enterrado. Não sei o que a humanidade ainda terá de sofrer até que ouse reconhecê-lo." Se não agora, quando?

                A história registra, desde tempos imemoriais, os tormentos causados pela maldade humana. Nações inteiras deixaram-se levar a histerias de massa de proporções devastadoras. Desde o término aparente da Guerra Fria, existem algumas esperançosas exceções. Pela primeira vez, nações inteiras pararam para refletir e tentaram a direção oposta. Relato de jornal da época, que fala por si mesmo (conforme citado por Jerome S. Bernstein em seu livro Power and Politics (O Poder e a Política)): "O governo soviético anuncia a suspensão temporária de todas as provas de História no país." O jornal Philadelphia Inquirer de 11 de junho de 1988 informava: A União Soviética, declarando que os manuais de História ensinaram a gerações de crianças soviéticas mentiras que envenenaram suas "mentes e almas", anunciou ontem o cancelamento dos exames finais de História para mais de 53 milhões de estudantes. Ao anunciar o cancelamento, o jornal oficial Isvestia informou que a extraordinária decisão visava pôr um término à transmissão de mentiras de uma geração para outra, processo esse que consolidou o sistema político e econômico stalinista que a atual liderança pretende encerrar. "A culpa daqueles que iludiram uma geração após outra... é imensurável", declara o jornal num comentário de primeira página. "Hoje estamos colhendo os frutos amargos da nossa própria lassidão moral, estamos pagando por termos sucumbido ao conformismo e, assim, dado nossa aprovação silenciosa a tudo aquilo que hoje nos enche de vergonha e que não sabemos explicar honestamente aos nossos filhos."

                Essa surpreendente confissão de toda uma nação poderia marcar o fim de uma era. De acordo com Sam Keen, autor de Faces of the Enemy (As Faces do Inimigo), "As únicas nações a salvo são aquelas que se vacinam sistematicamente, através de uma imprensa livre e da voz de uma minoria profética, contra a intoxicação de destinos divinos e purificações paranoicas". Hoje o mundo move-se em duas direções aparentemente opostas: alguns fogem dos regimes fanáticos e totalitários; outros enterram-se neles até o pescoço. Talvez as pessoas se sintam impotentes diante de forças tão poderosas. Ou, se pensar no assunto, o que se sente é certamente a consciência culpada diante da cumplicidade involuntária nas dificuldades coletivas. Esse perturbador estado de coisas foi acuradamente expresso por Jung na metade do século: "A voz interior traz à consciência tudo aquilo de que padece o todo — seja a nação à qual pertencemos ou a humanidade da qual fazemos parte. Mas ela apresenta esse mal em uma forma individual, de modo que, no início, era possível supor que todo esse mal é apenas um traço do caráter individua”. A proteção contra a maldade humana que essas forças inconscientes de massa podem representar, dispõe de uma única arma: maior conscientização individual.  Ao deixar de aprender ou agir com base naquilo que se aprende com o drama do comportamento humano, o poder pessoal se perde, enquanto indivíduos, de alterar a si mesmo e, assim, salvar o mundo. Sim, o mal estará sempre presente. Mas as consequências do mal irrefreado não precisam ser toleradas. “Uma grande mudança na atitude psicológica está iminente", disse Jung em 1959. “O único perigo verdadeiro que existe é o próprio homem. Ele é o grande [...]. Nós somos a origem de todo o mal vindouro." O personagem Pogo, do cartunista Walt Kelly, apresentou a questão de maneira bastante simples: "Encontramos o inimigo, e ele somos nós." Hoje se pode dar um renovado significado psicológico à ideia de poder individual. Os limites para a ação de confrontar a sombra estão — como sempre estiveram — no indivíduo.

                A aceitação da sombra

                O objetivo de encontrar a sombra é desenvolver um relacionamento progressivo com ela e expandir o senso do eu alcançando o equilíbrio entre a unilateralidade das atitudes conscientes e as profundezas inconscientes. Tom Robbins (romancista) diz: "O propósito de encontrar a sombra é estar no lugar certo da maneira certa”. Quando se mantém um relacionamento adequado com ele, o inconsciente não é um monstro demoníaco; diz-nos Jung: "Ele só se torna perigoso quando a atenção consciente que lhe dedicamos é desesperadoramente errada." Um relacionamento correto com a sombra oferece um presente valioso: leva ao reencontro das potencialidades enterradas. Através do trabalho com a sombra (expressão para referir ao esforço continuado no sentido de desenvolver um relacionamento criativo com a sombra), é possível:

                - Chegar a uma autoaceitação mais genuína, baseada num conhecimento mais completo do eu;

                - Desativar as emoções negativas que irrompem inesperadamente na vida cotidiana;

                - Eliminar sentimentos de culpa e vergonha associadas aos sentimentos e atos negativos; reconhecer as projeções que matizam as opiniões sobre os outros; curar relacionamentos através de um autoexame mais honesto e de uma comunicação direta;

                - E, usar a imaginação criativa (através de sonhos, desenhos, escrita e rituais) para aceitar o eu reprimido.

                Talvez, também se possa, desse modo, evitar acrescentar a sombra pessoal à densidade da sombra coletiva. Liz Greene (analista junguiana e astróloga britânica) mostra a natureza paradoxal da sombra enquanto receptáculo de escuridão e facho de luz. "O lado sofredor e aleijado da nossa personalidade é aquela sombra escura e imutável, mas também é o redentor que poderá transformar nossa vida e alterar nossos valores. O redentor tem condições de encontrar o tesouro oculto, conquistar a princesa e derrotar o dragão... pois ele está, de algum modo, marcado — ele é anormal. A sombra é, ao mesmo tempo, aquela coisa horrível que precisa de redenção e o sofrido salvador que pode redimi-la”.

 

“Todo homem tem uma sombra e, quanto menos ela se incorporar à sua vida consciente, mais escura e densa ela será. De todo modo, ela forma uma trava inconsciente que frustra nossas melhores intenções”. Jung.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

O Homem e a Solidão

 

            
            
            Para algumas pessoas, a solidão é percebida como um gigantesco problema, uma monstruosidade terrível e insuportável insurgida de angústias pessoais. Contudo, ao passo que alguns indivíduos buscam fugir da solidão estando rodeados de “amigos”, outros nem tanto...por espontânea vontade decidem ficar em casa ou moram sós sem grandes problemas. Estes, normalmente, são encarados como seres tristes, solitários, afinal, “não têm família ou amigos”.

                Entretanto, algumas pessoas, mesmo vivendo sozinhas, em determinados momentos sentem uma necessidade desesperada de correr para algum lugar (seja qual for) repleto de gente (seja quem for), que transmita a ilusória sensação de segurança. É interessante entender que existem determinados padrões culturais que delineiam as interações no mundo, muitas vezes com incentivo insistente do vínculo social; a valorização da convivência familiar e a amizade são exemplos do modelo cultural vigente.

                A angustia de lidar com a solidão emerge da dificuldade em integrar e administrar as seguintes influências da vida: demandas interiores versus demandas sociais. A dificuldade acontece, justamente, pela frágil consciência que o ser humano (pelo menos a maioria) tem dos próprios sentimentos e que favorecem esse movimento inautêntico no mundo. A sensação é de que viver resulta da perspectiva de agradar ou mostrar coisas aos outros.

                É possível conhecer a si! E, a solidão é o momento adequado e propício para isso, afinal, é na solidão que o ser humano encontra-se só, consigo mesmo. Entretanto, em certos momentos a solidão pode causar um vazio. O ser humano é um ser social e precisa de outro para “se sentir vivo”. As interações interpessoais revelam aspectos humanos individuais que somente são percebidos nas relações com os “outros”. O estar só e estar acompanhado é particular de cada pessoa.

                Assim, é mister aliar a consciência de si com a consciência das forças culturais a fim de fazer as escolhas mais acertadas de acordo com os próprios desejos. Por isso, nem sempre casar, ter filhos, cursar uma faculdade, trabalhar em um emprego formal ou conquistar um status social seja o melhor para todos os indivíduos - na perspectiva de seus desejos particulares.

                A Psicanálise Culturalista que trata das relações humanas a parir do estudo das culturas, explica ou procura explicar, a essência da solidão. Adler, por exemplo, afirma que o poder e a notoriedade são os princípios determinantes na vida de todo ser humano. Erich Fromm, declara que apesar do homem buscar a liberdade na vida, acaba se aproximando da solidão através das condições conflitantes das relações em sociedade. Sullivan, entende que o homem nasce em uma situação interpessoal, e mesmo que venha a ser um eremita -  isolado da sociedade -, levará consigo a solidão através das lembranças das suas relações interpessoais anteriores e que continuarão exercendo influência no seu modo de pensar e ser no mundo. May, percebe a solidão e a sensação do vazio como intimamente ligados às convenções que foram impostas. Por conseguinte, a reação natural diante do sentimento de vazio e solidão é a busca de um “outro” (seja um amigo, familiar, terapeuta, conselheiro religioso, ...) que acolha e console em meio a toda confusão e mudanças da sociedade.

                A percepção da solidão é determinada pela interpretação que o ser humano tem sobre a própria liberdade. Portanto, existem duas maneiras de viver: o autêntico, quando aceita que a solidão é o preço a pagar pela liberdade; e, o inautêntico, quando interpreta a situação como abandono. Maslow, Psicólogo americano, que propôs a Hierarquia das Necessidades, sugeriu um caminho para abrandar os sentimentos (insistentes) de solidão e abandono: a busca pela qualidade do desprendimento, da necessidade de privacidade, individualidade, autonomia e independência com relação à cultura e ao meio que vive. Para este Psicólogo o homem deve respeitar as regras da sociedade, entretanto, sem se submeter cegamente aos padrões. Fromm propõe a espontaneidade como único meio de vencer a solidão sem sacrificar a integridade da personalidade. E isso se faz, através da atividade livre do eu. Ele também confirma que o vazio e a solidão são sentimentos relacionados a ausência de espontaneidade e, portanto, pensar, sentir e se autodescrever conduz a segurança pessoal.

                Uma saída para evitar a solidão, e consequentemente o vazio e ansiedade, é o autoconhecimento. Mas, é sensato e prudente reconhecer que apesar do homem se conhecer, os sofrimentos estarão sempre por aí, pois, o sofrimento e a dor de existir são inerentes à existência humana.

Referência: Os grandes conflitos interiores do homem contemporâneo: solidão, vazio e ansiedade. De: DUARTE, Livia Peretti Duarte.