sábado, 31 de dezembro de 2022

MUNDO SEM FREIO

 

O desenvolvimento: da euforia ao desencanto Por quase meio século, a boa vizinhança no planeta foi concebida à luz do “desenvolvimento. Hoje, esse farol revela suas rachaduras. Começou a desmoronar. A ideia de desenvolvimento se ergue como uma ruína na paisagem intelectual.


O engano e a desilusão, os fracassos e os crimes têm sido companheiros permanentes do desenvolvimento. Contam uma mesma história: não funcionou. Além disso, desapareceram as condições históricas que possibilitaram a proeminência dessa ideia: o desenvolvimento tornou-se antiquado. Sobretudo, as esperanças e os desejos que lhe deram asas estão agora esgotados: o desenvolvimento ficou obsoleto.

 

Wolfgang Sachs

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - 56 ANOS DEPOIS

"Sociedade do espetáculo": esta expressão já está em voga, especialmente ao se falar de televisão. No Brasil, parece se impor mais do que em outros lugares. Poucos, porém, sabem que, na origem, este era o título de um livro de Guy Debord. Lançado na França em 1967, A Sociedade do Espetáculo tornou-se inicialmente livro de culto da ala mais extremista do Maio de 68, em Paris; tornou-se um clássico em muitos países. Em um prefácio de 1982, o autor sustentava com orgulho que o seu livro não necessitava de nenhuma correção.O "espetáculo" de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.


Têm de olhar para outros (estrelas, homens políticos...) que vivem em seu lugar. A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no plano da imagem. Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ser em ter, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do aparecer. As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria de que Marx falou, mas diretamente pelas imagens. Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica própria, como pensam, ao contrário, os pós-modernos "a la Baudrillard", que saquearam amplamente Debord.


A imagem é uma abstração do real, e o seu predomínio, isto é, o espetáculo, significa um "tornar-se abstrato" do mundo. A abstração generalizada, porém, é uma consequência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas as qualidades concretas do objeto são anuladas em favor da quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo, a economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os homens submetem-se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice: o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê governado por algo que, na realidade, ele próprio criou.


Nessa base, Debord condena toda a sociedade existente, não somente fraquezas individuais e imperfeições. Em 1967, Debord distinguia dois tipos de espetáculo. O "difundido" (o tipo ocidental, "democrático") caracterizava-se pela abundância de mercadorias e por uma aparente liberdade de escolha. No espetáculo "concentrado", ou seja, nos regimes totalitários de toda a espécie, a identificação mágica com a ideologia no poder era imposta a todos para suprir a falta de um real desenvolvimento econômico. Toda a forma de poder espetacular justificava-se denunciando a outra; e nenhum sistema, além destes dois, devia ser imaginável.


Debord, portanto, reconheceu na antiga e extinta URSS, nada menos do que 25 anos antes de seu fim, uma forma subalterna – e destinada, enfim, a sucumbir - da sociedade da mercadoria. Mas, por um longo período, enquanto existia um proletariado inquieto, o comunismo de Estado desempenhou uma função essencial para o espetáculo ocidental: a de assegurar que os rebeldes potenciais se identificassem com a mera imagem da revolução, delegando a ação real aos Estados e aos partidos comunistas totalmente cúmplices do espetáculo ocidental; ou, então, a pressupostos revolucionários muito distantes, no Terceiro Mundo.




Debord anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação de tipo novo: retomando o conteúdo liberatório da arte moderna, teria como programa a revolução da vida cotidiana, a realização dos desejos oprimidos, a recusa dos partidos, dos sindicatos e de todas as outras formas de luta alienadas e hierárquicas, a abolição do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Por isto, Debord sempre considerou o conteúdo profundo de 1968 como uma confirmação de suas ideias.

Teve, porém, de admitir, em Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo (1988), que o domínio espetacular conseguiu se aperfeiçoar e vencer todos os seus adversários; de modo que agora é a sua própria dinâmica, a sua desenfreada loucura econômica a arrastá-lo em direção à irracionalidade total e à ruína. Os dois tipos anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um único tipo: o "integrado". Sob a máscara da democracia, este remodelou totalmente a sociedade segundo a própria imagem, pretendendo que nenhuma alternativa seja sequer concebível. Nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar tudo, desde a cerveja, o pensamento e até os próprios revolucionários. Ninguém pode verificar nada pessoalmente. Ao contrário, temos de confiar em imagens, e, como senão bastasse, imagens que outros escolheram. Para os donos da sociedade, o espetáculo integrado é muito mais conveniente do que os velhos totalitarismos. A América Latina sabe algo a respeito. Mas Debord (1931-1994) não é apenas um dos poucos autores de inspiração marxista que hoje podem dar uma contribuição válida para a análise do capitalismo globalizado e pós-moderno. Ele também fascina por sua vida singular, sem compromissos e conforme as suas teorias.


A busca da aventura e da vida "verdadeira" esteve na base de sua vida pessoal - da qual a sua autobiografia Panegírico e os seus filmes falam -, assim como de sua teoria. Levou uma existência intencionalmente "maldita", às margens da sociedade, sem um trabalho reconhecido, sem nenhum contato com as instituições, sem nunca ter frequentado uma universidade, concedido uma entrevista ou participado de um congresso e, no entanto, conseguiu fazer com que fosse ouvido. Levou adiante a sua batalha contra a sociedade espetacular exclusivamente com os meios que ele próprio criou para si: em primeiro lugar, com a Internacional Situacionista, uma pequena organização que existiu entre 1957 e 1972 e que se originou da decomposição do surrealismo parisiense e de outras experiências artísticas.


Com a revista homônima e novos meios de agitação (quadrinhos, organização de escândalos), os situacionistas souberam prefigurar, muito melhor do que a esquerda "política", as novas linhas de conflito na sociedade "da abundância". Entre outras coisas, criticavam impiedosamente a nova arquitetura, o vazio e o tédio do pós-guerra. Com poucas intervenções miradas, os situacionistas fizeram com que ideias subversivas - que, por volta de 1960, eram compartilhadas por um punhado de pessoas - se tornassem, em 1968 e posteriormente, um fator histórico de primeira ordem. Os situacionistas, e particularmente Debord, distinguem-se pelo estilo inconfundível, e não somente no plano literário. Era o resultado da mistura entre um conteúdo radical - que remetia, entre outros, aos dadaístas, aos anárquicos e à vida popular parisiense - e um tom sofisticado e aristocrático, com muitas referências à cultura clássica francesa.


Este estilo, assim como a sua verve polêmica, mesmo para com todos os supostos contestadores (esquerda oficial, artistas "engajados"...), sua inacessibilidade e a sua transgressividade nas formas, logo os cercou de um ódio significativo, mas sobretudo de uma aura de mistério. Que ainda vive, 30 anos depois: com efeito, ainda se publicam textos dos situacionistas e sobre eles, embora amiúde procurem fazê-los passar exclusivamente por última "vanguarda cultural". Na França, ao contrário, só querem enxergar em Debord o escritor. Ainda hoje não querem perdoá-lo por ter escrito A Sociedade do Espetáculo.

 


 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

MODELOS DE GESTÃO ULTRAPASSADOS


 Um dos desenhos animados mais populares da história da humanidade foi Os Jetsons – que fascinava a audiência com um mágico exercício de futurologia –, produzido pelo lendário estúdio Hanna-Barbera, responsável por obras-primas, como Os Flintstones, Tom e Jerry, dentre tantas outras animações que marcaram a vida de milhões de brasileiros. Em Orbit City, George Jetson lidera uma divertida família típica norteamericana com a esposa Jane, dois filhos, Elroy e Judy, um simpático cão, Astor, e uma empregada doméstica robô, Rosie, que cuida da limpeza do lar com uma infinidade de quinquilharias e ferramentas acionadas automaticamente por diversos botões. A série foi lançada na década de 1960, porém só nos anos 1980 adquiriu imensa popularidade entre as famílias brasileiras que se encantavam, debruçadas em seus televisores, com carros voadores, cidades suspensas, trabalho automatizado, robôs realizando atividades de seres humanos e toda a sorte de aparelhos eletrodomésticos e de entretenimento autônomos.

Ao longo de mais de cinquenta anos, essa realidade fez parte de um imaginário distante, inacessível. Nos últimos anos, entretanto, o que era uma abstração tem se tornado, a passos cada vez mais largos, uma realidade onipresente. As transformações pelas quais passa a sociedade são tão velozes que os indivíduos não conseguem perceber racionalmente o processo de mudança. Seus impactos, no entanto, são e serão mais sentidos do que nunca, e, como resultado, emergem discussões e reflexões profundas sobre o futuro da humanidade. Qual será o futuro do trabalho com a automatização crescente? Os robôs irão substituir o ser humano? Qual é o limite da tecnologia e como ela impactará a sociedade?

O que era uma verdade apenas para a família Jetsons transformou-se em uma realidade inequívoca que dá novas cores à sociedade. Existe um conceito no campo da Física intitulado “ponto de bifurcação”. Simplificando uma definição complexa, um ponto de bifurcação representa uma mudança dramática e súbita na trajetória de um sistema que estava em equilíbrio. Nesse momento, ele pode se decompor ou imergir em novos estados. A complexidade desse movimento é tão grande que nunca é possível predizer o caminho que o sistema vai seguir e suas características. Tomando emprestada a definição do conceito físico para a realidade atual, a sociedade está diante de um ponto de bifurcação histórico. Coabitam o novo, representado pelas recentes tecnologias, inovações e rupturas, e o clássico, o tradicional, forjado ao longo de séculos de convivência e de desenvolvimento humano.

A nova era é conhecida como 4ª Revolução Industrial, a mais abrangente, profunda e ampla da história. Em um mesmo momento da humanidade, há confluências de forças tecnológicas que, por si sós, já teriam o potencial de transformar o planeta. Atuando de forma síncrona e em sinergia, no entanto, têm uma energia avassaladora. Essa revolução é poderosa, pois não transforma apenas as coisas. Ela está modificando a forma como indivíduos vivem, trabalham e se relacionam uns com os outros. Está alterando a vida tal como nos habituamos e conhecemos.

 Hoje, fazem parte do vocabulário corrente da população termos e conceitos – que estão mais presentes do que nunca e vieram para ficar –, como inteligência artificial, big data, internet das coisas, robótica, algoritmos, plataformas digitais, dentre tantos outros que até pouco tempo atrás estavam circunscritos a terminologia típica de cientistas e nerds. O mundo corporativo, com líderes encasulados em seus confortáveis e seguros gabinetes, não passa incólume a essa transformação. A arrogância proveniente de quem sabe de tudo e traz em seu repertório a certeza das verdades absolutas constrói uma barreira quase intransponível para a invasão do novo, e convicções muito arraigadas têm um efeito perverso que favorece a manutenção do status quo. O discurso pode ser modernoso, porém além da fala existe a prática.

Essa é a autêntica hora da verdade. É nesse universo que se proliferam modelos de gestão provenientes do período da 1ª Revolução Industrial, como os organogramas (representação gráfica utilizada, em larga escala, para as empresas mostrarem como estão dispostas suas unidades funcionais e hierarquia. Registros históricos apontam que o organograma foi criado em 1856). Faltam adjetivos para descrever quão bizarra é a constatação de que a maior parte das organizações do mundo utiliza, de forma central em seus negócios, uma ferramenta estratégica que foi desenvolvida há mais de 150 anos! O cenário, porém, é mais crítico ainda. O processo de transformação só acontece por intermédio das pessoas, sendo a educação um dos seus vetores mais relevantes. Para que o movimento se consubstancie na prática, é requerido que os indivíduos entendam a dinâmica das mudanças, que sejam educados conforme essa nova realidade. Como nossos mecanismos formais de educação e seus agentes estão lidando com esse novo mundo? A resposta para essa provocação é fácil: da mesma forma que estavam lidando em 1800, ou há mais de duzentos anos.

Não existe uma referência histórica definitiva, porém está claro que o modelo atual de educação com o formato da sala de aula e do professor consolidou-se na Revolução Francesa. Mais uma bizarrice contemporânea: nossos modelos formais de educação remontam a uma realidade de mais de duzentos anos e, se confrontados à luz de todos os avanços tecnológicos e sociais, tornam-se uma ficção tal qual eram os robôs dos Jetsons ou, para nos mantermos no campo das animações míticas, pré-históricos como os dinossauros dos Flintstones.

E os líderes atuais? Como têm se comportado perante um mundo em ebulição cuja natureza das relações obedece a uma nova ordem? A resposta, como não poderia ser diferente, não foge muito das provocações anteriores. Foi na primeira metade do século XX que Henri Fayol definiu alguns parâmetros críticos numa das primeiras incursões da chamada administração científica. Foram agregados conceitos, como autoridade, unidade de comando, hierarquia estrita, prioridade da organização em relação ao indivíduo, unidade de direção, dentre outros direcionamentos para o negócio que norteariam, a partir daquele ponto, a posição do líder no relacionamento com seus subordinados.

Não é necessária nenhuma pesquisa em profundidade para concluir que muitos dos executivos atuais continuam rezando na cartilha de Fayol que refletia uma sociedade de cem anos atrás. Pretensos líderes vão mais longe ainda: atuam como feitores do regime escravocrata, pautando seus atos e comportamentos pelo mais vil e ultrapassado autoritarismo. O mundo corporativo ainda está muito aferrado ao passado. É chegada a hora da mudança. É o momento definitivo da busca por novas referências para lidar com um novo mundo. Algumas organizações e líderes já se deram conta dessa demanda e se adaptaram rapidamente ao ambiente. Setores inteiros estão sendo disruptados (outra palavra nova que estará, cada vez mais, no centro das atenções) por empresas que começaram sua jornada por meio do voluntarismo de jovens impetuosos que, libertos das amarras do passado, se abriram ao novo e fizeram uma leitura adequada das transformações.

Organizações seculares perdem relevância e são subjugadas à segunda divisão do mundo empresarial, tornando seus negócios obsoletos, ultrapassados. A boa notícia é que tudo está em aberto. Tal qual um jogo de videogame, as organizações estão começando uma nova jornada do zero e devem se esmerar para “passar de fase” e considerar que tudo o que fizeram serve como repertório e experiência, porém não como chave para a prosperidade. Muito se fala das características do ambiente apresentado, do potencial das novas tecnologias, da magia existente por trás disso tudo. É necessário, porém, sair do campo da ficção, da animação dos Jetsons e partir para a prática.

Como as organizações e seus líderes devem se comportar para superar os desafios e, sobretudo, aproveitar as imensas oportunidades advindas desse admirável mundo novo? Para prever as possibilidades do futuro, é necessário entender a essência do passado, dos fundamentos, das raízes da nossa origem. A primeira etapa dessa jornada se dedica a construir uma visão sobre a história do mundo do management. Mais do que uma linha do tempo, o objetivo é mostrar como as principais transformações do ambiente corporativo foram provenientes de mudanças sociais que são as catapultas de qualquer processo de evolução empresarial.

Uma organização é uma entidade social e é nesse ambiente que ela milita e realiza seu processo de troca com a sociedade. Para ter referências, indícios, dicas sobre o que está por vir, é preciso entender, em profundidade, a origem de tudo. A transformação no ambiente empresarial vai demandar novos modelos de gestão, novos processos de aprendizagem e novos líderes. Não existe outro momento mais vibrante na história recente da humanidade. Um ambiente repleto de desafios reserva oportunidades até então não mapeadas. O mundo está em aberto. A vida está em aberto. Não há tempo a perder. É necessário arregaçar as mangas e fazer acontecer.

sábado, 11 de junho de 2022

Um processo que está fadado a continuar fracassando por excesso de arrogância

 

Até meados do final do século 20, um cidadão procurava um novo trabalho nos jornais e agências de emprego, levava pessoalmente o seu currículo em papel para o setor de recursos humanos da empresa e depois era submetido a testes e entrevistas. Com a internet, o envio do currículo passou a ser por e-mail, mas o restante do processo não mudou muito. Mas agora quase tudo é online, da inscrição à aprovação ou recusa. As plataformas de recrutamento, com ferramentas que automatizam algumas das etapas, sem dúvida deixaram tudo mais eficaz e pragmático, mas nem tudo é tão perfeito quanto muitos pensam (e não são os candidatos).

Nas redes sociais (e pessoalmente com quem converso), participantes de seleções reclamam ao usar serviços do gênero. Entre os pontos criticados estão a demora ou inexistência de comunicação para informar que o candidato foi reprovado; testes longos, complexos ou pouco alinhados com as requisições da vaga; longas fichas de cadastro com perguntas pessoais demasiadas; incoerências na forma como os profissionais pontuam nos testes; e e-mails escritos com erros, com erros de dados pessoais ou incoerentes com a situação da pessoa.

Os comentários trazem experiências ruins como: “passei um ano amargando com esses testes. Um dos testes era um GMAT (teste usado para fazer MBA nos EUA), e outro de português eram questões baseadas no livro 'Dom Casmurro'. Eram perguntas de vestibular para Fuvest (universidade de São Paulo), sendo que a vaga desse último teste era de atendimento, para ganhar R$ 2.000 [por mês]", respondeu uma profissional candidata.

O diferencial desses serviços em relação aos modos anteriores de recrutamento e seleção pode ser resumido em duas palavras: inteligência artificial. O termo, excessivamente usado hoje em dia, pode significar muitas coisas, mas no caso é um algoritmo feito para automatizar alguns processos, principalmente a triagem de currículos e o ranqueamento dos “melhores” candidatos. O objetivo é criar um "match" entre candidato e empresa recrutadora de forma similar ao do aplicativo de namoro Tinder: se a empresa gostaria de ver profissionais com certas características, o programa vai fazer um megafiltro para apresentar apenas os que cumprem esses requisitos.

O uso de inteligência artificial leva a algumas questões. Quais são os critérios que orientam a seleção? Como sabemos que o algoritmo escolhe de fato os melhores candidatos e não comete erros? Como temos certeza que não existem vieses neste julgamento? Das críticas apontadas nas redes sociais, até que ponto a responsabilidade é das plataformas ou das empresas recrutadoras? Será que elas têm seguido a Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD) e tratam devidamente os dados pessoais dos candidatos sob o consentimento deles?

O recrutamento automatizado de plataformas de RH é apontado como um dos motivos do desemprego de pessoas capacitadas, afinal, critérios curriculares como lacunas de tempo sem emprego de tempo integral viram pretexto para rejeitar candidatos com experiência adequada à vaga.

Pelo menos no discurso as startups afirmam se importar tanto com seus clientes quanto com os candidatos e tentam evitar a chance de enviesar o recrutamento. Parabéns para estes empreendedores que, pelo visto, estão anos luz a frente das empresas que juram de pés juntos que sabem contratar. As startups querem que a experiência do candidato também seja incrível durante todo o processo. Porque, quando uma pessoa tem um contato negativo com uma empresa, ela vira uma detratora, não vai recomendar aquela marca para os amigos, no futuro. Se o recrutador souber as características das pessoas que está buscando, é possível ignorar dados como faculdade em que os candidatos estudaram (ou idade, ou cursos, etc.) e tomar uma decisão mais assertiva.

Talvez em teoria, utilizar a identificação complexa de padrões e indicadores para prever se uma pessoa se adequa à empresa é um objetivo eficiente. Mas a tecnologia não consegue considerar fatores de cultura organizacional, machismo, racismo e capacitismo que afetam as pessoas no dia a dia. Então reproduzir grandes bases de dados costuma não ser uma boa ideia quando se fala sobre seres humanos. Aliás, muitas empresas discursam magnificamente sobre a importância das relações humanas, mas na prática, destoam. Enfim, não é à toa que o “entra e sai” nas empresas é infindável e, pior, custa caro. E... se o candidato obter êxito na etapa automatizada: prepare-se! É de ficar boquiaberto presenciar as perguntas dos “profissionais que fazem as entrevistas” – Você gosta de fazer horas extras? – Você gosta de trabalhar em equipe? E aí vai... Perguntas muito espertas! Depois a culpa é do governo, da economia, do covid.........

terça-feira, 3 de maio de 2022

Conflito entre gerações? Será?

 

    Muitos acreditavam e ainda acreditam que a juventude é uma época de rebeldia, independência, amor à liberdade... Não seria mais para um grupo de companheiros de geração, com espírito de rebanho, temor do isolamento, subserviência à voz corrente, ânsia de sentir-se igual e aceito pela maioria cínica e autoritária, disposição de tudo ceder e prostituir em troca de uma vaguinha de neófito no grupo dos sujeitos bacanas. O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores, mas é porque sabe que no fundo estão do seu lado e jamais revidarão suas agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo de cartas marcadas no qual um dos briguentos luta para vencer e o outro para ajudá-lo a vencer. Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não têm para com ele as complacências do paternalismo. Longe de protegê-lo, essa massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade que lhe mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir. É dos companheiros de geração que ele obtém a primeira experiência de um confronto com o poder, sem a mediação daquela diferença de idade que dá direito a descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes e mais descarados, que se afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do recém-chegado, impondo-lhe provações e exigências antes de aceitá-lo como membro da horda. A quantos ritos e protocolos, a quantas humilhações não se submete o postulante, para escapar à perspectiva aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não ser devolvido, impotente e humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser aprovado num exame que lhe exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos caprichos da maioria — a supressão, em suma, da personalidade.

    É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de apaixonado que tudo fará em troca de um sorriso condescendente. A massa de companheiros de geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual o adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o ingresso custa caro. O candidato deve, desde logo, aprender todo um vocabulário de palavras, gestos, olhares, todo um código de senhas e símbolos: a mínima falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral implícita, devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada antes de adivinhada. O modo de aprendizado é sempre a imitação — literal, servil e sem questionamentos. O ingresso no mundo juvenil dispara a toda velocidade o motor de todos os desvarios humanos: o desejo mimético onde o objeto não atrai por suas qualidades intrínsecas, mas por ser simultaneamente desejado por um outro, o mediador. Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto investimento psicológico, termine por levar o jovem à completa exasperação, impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta sobre o grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de transfigurar cada impulso de rancor em novo investimento amoroso. Para onde, então, se voltará o rancor, senão para a direção menos perigosa.

    A família surge como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no seu rito de passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que lhe há de ocorrer será atribuir a culpa de sua situação à vaidade e ao cinismo dos que o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações não será atribuída àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles que o aceitam como criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas maldades da horda que tudo lhe exige. Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama. Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e o não ser: o jovem, em trânsito entre o que já não é e o que não é ainda, é, por fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas de quanto se passa dentro e em torno dele...