sexta-feira, 20 de agosto de 2021

O ENGESSAMENTO DAS AFLIÇÕES EMOCIONAIS DENTRO DE UM MANUAL

 

    É normal ter problemas e a aflição emocional não é necessariamente uma doença. As pessoas que estão procurando uma maneira de driblar, contornar, viver e administrar um mundo que está se tornando deveras mais complexo não precisam ser rotuladas como portadoras de um distúrbio, afinal, estão simplesmente percorrendo um caminho consagrado pelo tempo para uma vida mais realizada.

"[...] a noção de doença mental é usada hoje sobretudo para esconder e 'invalidar' problemas de relacionamento pessoal e social, assim como a noção de bruxaria foi utilizada do começo da Idade Média até bem depois da Renascença. " — THOMAS SZASZ

    A vida não é uma doença. E mudar o passado é impossível (pelo menos até o momento presente). O número de diagnósticos de transtornos mentais aumentou estratosfericamente com os incrementos das edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM. Dentre as novas categorias propostas, os responsáveis pela elaboração da quinta versão do manual apresentou a "síndrome de risco para psicose", substituída pela "síndrome de psicose atenuada" antes da publicação. A substituição da palavra risco por sintomas atenuados mantém a perspectiva de patologizar o não patológico da condição, fomentando a medicalização da vida e a produção de intervenções desnecessárias sem falar na estigmatização social.

    O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria - APA, é o dispositivo oficial para estabelecer diagnósticos de distúrbios mentais nos Estados Unidos, tendo ampla utilização internacional e influência sobre a Classificação Internacional de Transtornos Mentais da Organização Mundial de Saúde - OMS. As classificações foram criadas no intuito de estabelecer uma linguagem universal sobre as patologias mentais, além de possibilitar a obtenção de dados estatísticos sobre a população. O manual busca padronizar os sistemas diagnósticos não apenas no campo da saúde, mas também na atuação jurídica, escolar, organizacional .... Enquanto a versão primeira do manual, publicada em 1952, contava com 106 categorias diagnósticas, a última versão, publicada em 2013, apresenta mais de 300 diagnósticos distribuídos em 947 páginas (haja transtorno!).

    Neste sentido, seria possível questionar se essa proliferação seria um indicativo de que a população está tomada por problemas de saúde mental ou se seria um efeito produzido com a patologização dos comportamentos e experiências da vida. Enquanto a segunda versão, publicada em 1968, apresentava 182 categorias, a número três, publicada em 1980, contava com 265 categorias, substituindo a abordagem psicodinâmica predominante até então por uma orientação baseada em critérios diagnósticos objetivamente definidos.

    A partir da terceira edição, o manual passa a ser apresentado como ateórico e supostamente neutro, inserindo uma lógica de causalidade multifatorial no contexto de biomedicalização da prática da saúde mental. As mudanças na concepção de enfermidade mental passam de um modelo psicodinâmico orientado pelo insight para um modo descritivo orientado pelo sintoma na terceira edição do manual, reverberando nas práticas da saúde ao priorizar a classificação das queixas em categorias definidas por agrupamentos de sintomas, levando à supressão das histórias de vida.

    Na primeira e segunda edição, o manual era pouco conhecido e utilizado, até a publicação da terceira, em 1980. O êxito obtido a partir da terceira edição pode ser explicado pelo estabelecimento crucial entre a normalidade e a doença mental, obtendo relevância social ao determinar questões que impactam significativamente na vida das pessoas, tais como: a fronteira entre a saúde e a enfermidade; a oferta de tratamentos e seu financiamento; a avaliação na colocação profissional; nos critérios para receber benefícios por invalidez; na determinação da periculosidade. As versões seguintes do manual estabelecem mudanças e ampliações nos diagnósticos e na metodologia de classificação. A versão quatro, publicada em 1994, contava com 297 categorias diagnósticas e incluía o critério de significância clínica, excluindo a perspectiva psicodinâmica da etiologia conversiva, substituindo-a pelo enfoque neo-organicista (neo = novo; organicismo = medicina, sociologia).

    Em 2013, foi publicada a última edição do manual, a versão cinco, que apresenta mais de 300 categorias. Esta versão mantém a fundamentação no modelo categorial, propondo um enfoque dimensional quanto à intensidade dos sintomas e organiza os capítulos de modo a considerar o ciclo vida, além de excluir um sistema dotado de vários eixos devido à pouca utilização. As novas categorias apresentadas nesta edição são questionadas por muitos profissionais da saúde por não se configurar como descoberta científica, mas redefinições dos conceitos atrelados aos sintomas e definições operacionais de síndromes. A quinta edição lista um conjunto de questões sociais e da vida que passam a ser consideradas na perspectiva patológica, tais como: problemas de relacionamento; violência doméstica ou sexual; negligência ou abuso; problemas ocupacionais e profissionais; situações de falta de domicílio; pobreza extrema; discriminação social; a não aderência ao tratamento médico.

    Além disso, o tempo que os sintomas persistem para realizar o diagnóstico varia nas diversas edições, como no luto, por exemplo, caracterizado como episódio depressivo na edição quatro quando os sintomas persistiam por mais de dois meses, enquanto na edição quinta o período é reduzido para duas semanas. A inflação diagnóstica de transtornos mentais geradas com as edições do manual reverbera, também, no aumento do uso de medicamentos, tornando-se importante fonte das indústrias interesseiras. Michel Foucault (filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France) investigou como as pessoas se tornam sujeitos de determinados discursos engendrados por regimes de verdade e relações de poder que balizam os processos de subjetivação. Ele estudou as condições para a emergência de determinados saberes em jogos de poder que configuram a legitimidade da verdade para cada período, o que opera como dispositivo político para que os sujeitos possam se constituir em determinadas práticas.

    A análise de determinadas práticas possibilitou identificar que o risco não se distribui igualmente para todos os indivíduos, aspecto que engendra práticas pautadas por antecipar e impedir um acontecimento indesejável, conhecido a partir dos dados gerados por sistemas de informação. Assim, cabe questionar a quem interessa a inclusão de diagnósticos pautados na noção de risco de desenvolver um transtorno mental, como no caso da proposta da síndrome de risco para psicose. Por um lado, a justificativa se delineia por meio da identificação e intervenção precoce. Por outro lado, uma nova categoria diagnóstica relacionada ao risco de desenvolver um transtorno pode incrementar as intervenções desnecessárias e prevalência do uso de medicamentos. No final das contas, as possibilidades de tratamento na prevenção de certos riscos possibilitam imaginar um futuro promissor que beneficie apenas as empresas interessadas na prática da prevenção, conferindo-lhes o título de defensoras da ordem social, reclamando para si um poder ainda maior que o dos juristas e higienistas, pois demanda a gestão da anormalidade.

    O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta edição, tem sido fortemente criticado pela tendência inexorável de transformar comportamentos e experiências da vida diária em transtornos mentais. Ela modificou a nomenclatura inicialmente proposta da Síndrome de Risco para Psicose por Síndrome de Psicose Atenuada. A substituição da palavra risco por sintomas atenuados mantém a perspectiva de patologizar o não patológico da condição que não necessariamente será desenvolvida, fomentando a medicalização da vida.

    Por um lado, um grupo defende o reconhecimento da categoria justificando a importância de identificá-la para intervir precocemente, embora não se tenha garantia de eficácia dos tratamentos para uma síndrome de psicose atenuada. Por outro lado, prevalece a preocupação com a medicalização e produção de intervenções desnecessárias que podem ser prejudiciais, além da estigmatização e incremento do número de “falsos positivos”. Ademais, ao deslocar o que era um apêndice nas edições anteriores para estruturar uma seção na versão atual, os organizadores optaram por destacar as “Medidas Emergentes e Modelos” na Seção III, suavizando a ideia de novas categorias nosológicas (nosologia = ramo da medicina que estuda e classifica as doenças) como condições para estudo, incentivando a sua utilização.

    Ao ampliar as categorias nosológicas e utilizar critérios abrangentes e pouco precisos, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, alarga as fronteiras entre o normal e o patológico, nas quais a atribuição de um diagnóstico depende da perspectiva clínica e do uso que se faz do manual. Esse aspecto é explicitado nos argumentos da quinta edição do manual ao situar que esse alargamento permitirá enriquecer o estabelecimento de diagnósticos para pacientes cujos sintomas não se encaixam nos distúrbios atuais. As concepções diagnósticas e estatísticas do não patológico a partir da introdução da ideia de risco ampliam os mecanismos de saber-poder para além das estratégias de intervenção. Torna-se necessário problematizar os regimes de verdade que mantêm as práticas, principalmente dentro dos campos em que os saberes científicos são convocados a construir modos de entender e intervir. Além disso, a patologização de eventos da vida no diagnóstico que se limita a identificar a presença de sintomas em um determinado tempo reduz a compreensão do sofrimento psíquico e da subjetividade.

    Pelo jeito como as coisas vão, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM - poderá ser comparado a uma famosa explicação sobre o ópio que data da Idade Média. A pergunta era: por que o ópio adormece as pessoas? A resposta dada pelos médicos da época era que o ópio adormece as pessoas por causa de suas "propriedades dormitivas". Todo mundo concordava sensatamente e aceitou durante anos que isto realmente explicava alguma coisa. Mas não explica nada. Dormitivo vem do latim dormire, dormir. Explicar que o ópio adormece as pessoas por suas propriedades dormitivas é o mesmo que dizer que o ópio adormece as pessoas porque as adormece. Afinal, nada científico — apenas uma explicação em círculo.

    Então, o que acontece quando aplicamos definições circulares de doenças físicas literais a doenças mentais metafóricas? Obtemos o caos dos chamados distúrbios. Você tem um problema emocional originado de uma experiência passada desagradável? No DSM ele passa a ser uma doença mental: distúrbio de tensão pós-traumática. Seu filho está tendo problemas para aprender aritmética? Há uma boa probabilidade de ser porque a professora não conhece nenhum método didático mais apropriado ou porque os métodos didáticos atuais afirmem que a resposta certa de 2 + 2 é qualquer número que faça o aluno se sentir bem, mas no DSM, torna-se uma doença mental: distúrbio de desenvolvimento da aritmética. Você está decepcionado porque não ganhou na última loteria? No DSM, também isso se torna uma doença mental: distúrbio de tensão da loteria. Recusaria tratamento psiquiátrico para si mesmo ou para o seu filho se fosse confrontado com este tipo de diagnóstico? No DSM, a sua recusa também se torna uma doença mental: distúrbio de não-concordância com o tratamento.

    Isto seria excelente se fosse ficção científica ou comédia. Porém, hoje, se disfarça de ciência séria. Em 1987, a Associação Psiquiátrica Americana votou na classificação da Síndrome de Distúrbio de Atenção e Comportamento (ADHD — Attention Deficit Hyperactivity Disorder) como doença mental. Naquele ano, meio milhão de crianças americanas foram diagnosticadas com ADHD. Em 1996, 5,2 milhões de crianças — 10% das crianças americanas em idade escolar foram diagnosticadas com distúrbio de atenção e comportamento. A "cura" para essa "epidemia" foi e continua sendo Ritalin, cuja produção e venda — e efeitos colaterais horripilantes — aumentaram rapidamente. É muito bom para o negócio de remédios; não tão bom para as crianças. Não existe a menor evidência clínica de que o ADHD seja causado por uma doença cerebral específica, mas é a queixa que justifica declarar mentalmente doentes milhões de crianças americanas (e do mundo afora), drogando-as por coerção e registrando de forma permanente o "diagnóstico" de "doença mental" em suas fichas.

    Por que crianças normais, saudáveis, curiosas — e às vezes indisciplinadas — têm problemas de prestar atenção na escola? O distúrbio de atenção e comportamento é uma possibilidade; porém, existem muitas outras. Também pode ser por falta de motivação, disciplina, um tema a ser estudado, falta de padrões que exijam uma aprendizagem, testes que avaliem o conhecimento, por causa de professores incompetentes e pais indiferentes. Pode ser porque padrões obrigatórios foram substituídos por slogans insensatos, e não exista nenhuma autoridade moral em casa ou na escola para inculcar virtudes nessas crianças. O sistema educacional foi transformado de um caminho de aprendizagem em um campo minado de debilitação — com alguns profissionais da saúde mental como cúmplices voluntárias. Parece que devanear é mais fácil para todos os envolvidos. Se o seu filho não presta atenção nas aulas, está sofrendo do distúrbio de atenção e comportamento. E se você se queixar desse tipo de diagnóstico, você tem o distúrbio de negação do distúrbio de atenção e comportamento, ou seja, medicalização para toda a família.

    Enfim, muito cuidado, se você suspirar em desarmonia ou chorar fora do tom, muito provavelmente correrá o risco de ser instantaneamente enquadrado em alguma definição de distúrbio mental no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Reflexões sobre os Mecanismos do Aparelho Psíquico

“Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa? ” Freud.

 Introdução

 

            O conteúdo a ser desenvolvido neste trabalho pretende estudar o quanto a mente do ser humano pode se tornar vulnerável e instável a partir de estruturas mentais herdadas e estruturas mentais estimuladas e constituídas pelo ambiente. Para tanto será realizada uma revisão bibliográfica para sustentar a redação. Algumas das bibliografias utilizadas para fundamentar o texto são de áreas distintas, porém, inter-relacionadas em alguns aspectos a fim de constituir um conteúdo multi-interdisciplinar reflexivo. Os capítulos I e II iniciais não se aprofundam muito no assunto por dois motivos: - o espaço total dedicado é deveras pequeno para uma extensão mais substancial; - opcionalmente foram dedicadas mais linhas para os capítulos subsequentes. A intenção primeira da essência do trabalho é discorrer, também, sobre assuntos transversais à Psicanálise, porém, relacionados. Replicar em outras palavras as questões e ideias que já foram debatidas ou redigidas, talvez, não agregue tanto valor e seja repetitivo. Cabe ressaltar que neste contexto intencionalmente reflexivo, o olhar da argumentação estará fixado sobre psiconeuroses de caráter psicológico e intátil, nunca sobre problemas mentais de ordem física porque tal enfoque exigiria um artigo exclusivo para tal viés.

            O intuito deste tema é provocar a reflexão sobre o quanto o Psicanalista precisa estar preparado para “ler” discursos, sentimentos, comportamentos e reações inesperadas e abruptas, oriundas de estruturas mentais alicerçadas muito antes do nascimento e outras fomentadas após. Intrinsicamente, objetiva também, acenar para o fato de que tal interpretação somente será possível mediante uma mente psicanalítica sem fronteiras e preconceitos, não engessada e isenta de soluções pré-formatadas. Afinal, as neuroses frutificam por “gatilhos traumáticos” porque nas profundezas da mente já existiam aptidões para tal, à espera da ocasião oportunista.

            O Aparelho Psíquico, teoricamente, parece ser dotado de duas “dimensões”: - Dimensão Natacapítulo 1.1 -, aquela que é herdada por intermédio do DNA, estritamente afiliada às heranças genéticas dos antepassados – avós, pais, tios, ...; - Dimensão da Natureza Humanacapítulo 1.2 -, herdada da própria espécie humana (animal), independente da hereditariedade sanguínea. A primeira dimensão comporta todas, muitas ou poucas características peculiares dos parentes antepassados, ou seja, restritas ao círculo familiar e que diferenciam indivíduos consanguíneos das outras pessoas por detalhes, talvez imperceptíveis. A segunda, muito mais genérica, insere no ser humano formas de pensar e agir que o diferencia das outras espécies.

            Diante destas duas dimensões inalienáveis resta perceber que ainda é possível conceber uma terceira dimensão: - Dimensão Socialcapítulo 1.3 -, na qual abarca a historicidade singular de cada ser humano, desde a gestação/nascimento até o presente momento. Esta dimensão comporta eventos das mais variadas espécies – estabelecidos pelo convívio familiar, escolar, social, profissional, sentimental, sexual e individual, este último plenamente sedimentado pelos demais. Surge então, os Mecanismos do Aparelho Psíquico capítulo 1.0 -. Mecanismos porque são três dimensões ou processos maquinais, espontâneos e independentes da vontade, os quais moldam ou dotam a mente de informações que irão em algum momento, de uma forma ou de outra, influenciar a construção de sentimentos e comportamentos.

            A saber, duas abordagens que antecedem as considerações finais foram inseridas neste trabalho: - A Força da Dimensão Social na Psiquecapítulo 2.0 -, que pretende salientar o poder de influência do meio social sobre os Mecanismos do Aparelho Psíquico; - A Interpretação das (Im)Possibilidadescapítulo 3.0 -, cujo conteúdo pretende destacar o grau de atenção que o Analista precisa dedicar no decorrer das Associações Livres durante as sessões. Os termos ora utilizados neste trabalho - dimensão e mecanismos do aparelho psíquico – não dizem respeito ou traduzem os modelos, teorias ou divisões do aparelho psíquico (Id, Ego, Superego, Cs, Pcs e Ics), e não intenta recriá-los ou refutá-los. Em suma, a concepção deste conteúdo é absolutamente teórica e especulativa, e foi sedimentada por um descortinamento científico e psicanalítico, sempre sob o prisma do despertar da curiosidade e olhar reflexivo.

 

1. Mecanismos do Aparelho Psíquico

1.1 Dimensão Nata

            A Dimensão Nata dos Mecanismos do Aparelho Psíquico é aquela na qual encontram-se as características hereditárias, ou seja, heranças congênitas provenientes da progênie – pais, avós, tios e demais parentes consanguíneos. A ancestralidade, segundo os geneticistas do comportamento, exerce influência considerável sobre o comportamento do ser humano além de determinadas características físicas como a matiz dos olhos, estatura, estrutura capilar, feições faciais, dentre outras. Existem estudos científicos que afirmam que a influição do DNA ocasiona comportamentos patogênicos como o alcoolismo, esquizofrenia, emoções destemperadas, dissociabilidade, dentre outras.

            Apesar desta dimensão ser inalienável porque independe da escolha do indivíduo ou de algum artifício científico modelador, ela não pode e sequer deve ser considerada determinante única do comportamento humano no decorrer da vida. Os traços físicos, na maioria dos casos, serão mais imperativos ao DNA, ao contrário das características comportamentais, as quais também são moldadas por outras dimensões que serão descritas adiante. Seria sensato reconhecer que toda laboração genética, por si só, isoladamente, não resulta em sistemas neurais prontos e comportamentais definitivos. Existe, sim, um processo epigenético capaz de concatenar aspectos ontogênicos com filogênicos e ambientais.

            Como exemplo seria interessante observar que nem todo descendente de progenitor ébrio nasce alcóolatra. O organismo humano não é dotado de um gene específico que conduz para a dependência química, seja ela qual for. Contudo, a copulação entre parceiros dependentes químicos (ou apenas um deles) pode resultar na deficiência do Sistema Dopaminérgico ou Serotoninérgico do ser humano em desenvolvimento uterino, ambos relacionados ao sistema nervoso. Portanto, é sensato e possível interpretar que a carga genética herdada por ancestralidade pode influenciar o comportamento humano.

 

1.2 Dimensão da Natureza Humana

            A Dimensão da Natureza Humana dos Mecanismos do Aparelho Psíquico é resultado independente da consanguinidade. Ela aproxima os seres humanos por características peculiares à espécie e os diferencia nitidamente das demais. Todavia, não há como ignorar o fato de que o ser humano, enquanto mamífero, compartilha muitas similitudes com várias outras espécies mamíferas. A principal delas que mais se assemelha aos humanos são os antropoides (gibões, orangotangos, gorilas e chimpanzés).

            Apesar do homem não ser tão simiesco na aparência e nas faculdades mentais, incrivelmente, o percentual que difere o DNA humano de um chimpanzé é de 1,6% e 2,3% se comparado ao gorila[1]. Os percentuais aqui citados estão muito longe de serem considerados insignificantes, pelo contrário, qualquer índice mínimo no que diz respeito a estrutura genética do ser humano sempre é considerável. Certamente o “manual de instruções” do organismo humano, o genoma (parte funcional do DNA), responde por toda a estruturação do corpo desde a formação até o seu funcionamento. O cérebro humano deveras maior, herdou várias características dos antropoides, logo, não seria fantasioso presumir que algumas delas carregam por herança muitas formas instintivas ou primitivas de agir. Talvez a aptidão para os comportamentos compulsivos, esquizofrênicos, paranoicos, catatônicos, delirantes, psicóticos, enfim, várias idiossincrasias poderiam advir de heranças de outras espécies.

             O que existe de concreto é que o evolucionismo tratou de compensar as nítidas semelhanças e diferenças marcantes entre humanos e não humanos através do aperfeiçoamento da capacidade racional. É concreto que a evolução das faculdades mentais dos homens não lhe conferiu a perfeição nas funções sensoriais da visão, audição, olfato, ... e não lhe permitiu sobreviver naturalmente ao frio, calor, seca, ... enfim, dentre milhões de espécies, o ser humano está longe de ser detentor do melhor desempenho vital do planeta. Portanto, desconsiderando qualquer aspecto fenomenológico ou ontológico, com tantas heranças depreciativas, seria negligente ignorar que algumas deficiências mentais capazes de abalar o Aparelho Psíquico possam ter sido herdadas. Fica a questão: as Dimensões Nata e da Natureza Humana podem exercer influência sobre o Aparelho Psíquico? Provavelmente (ou especulativamente) sim!

 

1.3 Dimensão da Social

            Após uma breve “viajada” pelas dimensões genéticas é chegado o momento de discutir sobre a dimensão que não é herdada geneticamente, todavia, difícil de controlar e conduzir no decorrer do desenvolvimento do Aparelho Psíquico. Imprudente seria aquele que considerar a Dimensão Social (ou fator ambiental) menos intensa na influência do Aparelho Psíquico do que a hereditariedade. Talvez esta dimensão seja, supostamente, a mais preponderante. Mas é relevante refletir que uma experiência negativa no transcorrer da vida pode tanto resultar em comportamento desfavorável (menos intenso, igual ou mais intenso) como contrário a vivência. Como exemplo, uma criança que vivenciou cenas impróprias de um progenitor alcoólatra durante toda a infância pode evitar o consumo de bebida alcoólica na fase adulta, justamente por lembrar de fatos entristecedores. Mas, sendo o comportamento contrário ou imitativo, ainda assim, trata-se de uma influência do meio.

Um bebê recém-nascido, por exemplo, reage (e prefere) aos estímulos ambientais com fala serena, tom apropriado, temperatura ambiente acolhedora, ruídos estridentes abrandados, já no seu primeiro instante de vida, aparentemente, com mais tranquilidade. Afim de enriquecer esta argumentação, Wilhelm Ludvig Johannsen, botânico dinamarquês, fisiologista vegetal e geneticista que em 1909 criou o termo gene é “convidado” para esta discussão. A partir dos seus estudos ficou comprovado que o Fenótipo[2] é resultado direto das características dos genes humanos, porém, sob forte influência de fatores estritamente ambientais, e, por conseguinte, de uma forte possibilidade interativa entre ambos. Fica muito fácil de compreender o anteriormente expresso com a seguinte exemplificação: um filho adotado terá forte tendência de se comportar como os pais adotivos (força do meio ambiente), contudo, manterá os traços fisiológicos e orgânicos dos progenitores biológicos (força da hereditariedade). Portanto, é interessante considerar que o Fenótipo é a expressão do Genótipo[3] sob a influência direta da Dimensão Social, ou seja, as características genéticas advindas da ancestralidade, inevitavelmente, sofrerão alterações substanciais. Desta feita, tudo leva a crer que os Mecanismos do Aparelho Psíquico são “bombardeados” por três dimensões distintas, porém, interativas.

 

2. A força da Dimensão Social na Psique

            O pensador grego Heráclito[4] idealizou a Unidade dos Opostos. Segundo ele, tudo que porventura pudesse vir a existir na vida seria rigorosamente composto por eventos singularmente opostos, contudo complementares. O significado da ideia foi que naturalmente sempre existirão contradições ou divergências de opinião, concepções e percepções de vida em desacordo, mas, que invariavelmente devem ser entendidas como naturais, e consequentemente aceitas. Assim, qualquer tentativa de suprimir as contradições convergiria, segundo ele, na extinção da realidade porque ela é inconstante e detentora dos opostos.

            A partir desta conjectura seria possível assumir que o desenvolvimento da mente humana tem a sua gênese no exercício da percepção de si e das experiências sociais, na geração de novos saberes e, particularmente, na adaptação as novas realidades, muitas delas completamente avessas as próprias convicções. Sob uma ótica confiante seria quase um aprendizado a partir da tolerância, entretanto, muitas vezes o aprendizado converte-se em adversidade. O grau de tolerância existente em cada indivíduo é oriundo dos paradigmas elaborados e praticados durante a vida por motivos síncronos: os psicológicos. O exemplo disso pode ser percebido nos reflexos que o grau de autoestima, a capacidade adaptativa e a tolerância as imposições da vida social exercem sobre a vida pessoal. O desenvolvimento e aprimoramento (ou o desarranjo) do Aparelho Psíquico ocorre a partir do estado intelectual e emocional derivado da Dimensão Social. “Engana-se quem diz que o homem é um animal que aprendeu a pensar. Na verdade, ele continua aprendendo a pensar. [...] Mas o ato de pensar não é uma dádiva apenas da biologia; depende também da vida social. [...] o que difere o homem dos animais é o pensamento, mas não se deve esquecer que o que difere os homens uns dos outros é a qualidade desse pensamento”. (MUSSAK, 2003, p. 29)

            O tempo que o ser humano convive com diversas pessoas no cotidiano é recheado de expressões de euforia e ódio, desfechos de contentamento e insatisfações. Assim, o grau de dificuldade e complexidade para “forjar uma armadura” capaz de proteger a mente das perturbações psíquicas oportunistas é imenso. O homem, obrigatoriamente, é um ser social. Logo, ele encontra-se infinitamente distante da condição de homo clausus (homem fechado em si mesmo) porque simultaneamente influencia e é influenciado pelo mundo que o cerca. É possível compreender esta alegação bilateral na medida em que se reflita sobre o ciclo inicial de vida de todo indivíduo. O homem ao nascer é recebido e amparado por várias pessoas que, provavelmente, nunca mais cruzarão no seu caminho. Posteriormente, outras, muitas delas residentes fora do seu círculo de familiares e amigos, nortearão rumos a percorrer durante grande parte da sua vida, o que, aliás, é condição básica para a sua sobrevivência em sociedade. Qual o significado disto? Esta ordem natural dos fatos evita que o homem se torne um eremita por natureza, e propicia relações, até certo ponto, estáveis com o mundo.

            Assim, a biografia do homem é configurada, desde o nascimento, por intermédio das relações com os outros, sendo que por uma ótica sociológica ninguém teria condições de desenvolver-se completamente sem passar pela experimentação social (sendo elas boas ou ruins). São as experiências com os outros que irão, indubitavelmente, determinar aptidões, tendências, atitudes, virtudes e imperfeições mentais e comportamentais, suficientes e capazes de conectar ou distanciar uma pessoa das outras e vice-versa. É possível afirmar que este processo de aprendizado induzido, cuja gênese inicia no momento do nascimento, é vitalício e impossível de interrompê-lo. A evolução da mente atinge o ápice da contrariedade a cada momento (e não são poucos) em que tudo aquilo que lhe foi dito e ensinado depara-se com controvérsias ou vieses que vão de encontro às convicções assumidas.

            As pessoas chegam à fase adulta “recheadas” de padrões e regras sociais, muitas delas sequer questionadas até então, tornando-as até certo ponto um tanto bitoladas. Mas é importante salientar que apesar de todas as forças modeladoras que acompanham cada indivíduo desde a infância, os parâmetros instituídos podem ser modificados e revestidos com outra roupagem, mesmo porque são todos resultantes de apropriações e criações de novos modelos ou possibilidades de viver em sociedade.

 

      3. A interpretação das (Im)Possibilidades

            Diante de três dimensões detentoras da capacidade de interferir nos Mecanismos do Aparelho Psíquico, fica uma interrogação: - como lidar com isto? A metodologia psicanalítica é, sobretudo, a “arte” de interpretar tudo que o paciente expor como sendo possível e impossível durante as Associações Livres. Possível porque muitas perturbações neuróticas possuem causas concretas, históricas, perceptíveis e com “endereço” certo - origem perceptível dentro de parâmetros reais. Impossível uma vez que o imaginário é um forte aliado ou protagonista das construções hipotéticas ou umbráticas, quiméricas ou utópicas. Diante das “prováveis impossibilidades” ou “improváveis possibilidades” mentais, o Psicanalista precisa manter-se lúcido, afinal, em algum grau e alguma circunstância, ele também pode tornar-se suscetível as mesmas probabilidades genéticas e ambientais que atormentam um paciente.

            As Psiconeuroses são como andar em terreno arenoso, apenas os passos finais são perceptíveis. E os passos anteriores? Estes não! Impossível avistar nitidamente as pegadas anteriores e de onde vieram, por onde andaram e quais foram os caminhos percorridos. Surge, então, a interpretação, atenta aos sinais, às marcas que o tempo e as situações deixaram encrustadas na mente e no corpo. No percurso as situações produzem a sua comunicação e que, certamente, será traduzida de maneira estritamente pessoal e interpretada de forma exclusivamente particular. Existe uma possibilidade de que tudo ou parte daquilo que as comunicações representavam tenha sido interpretado equivocadamente pelo paciente. E os efeitos provocados? É difícil de perceber a “olhos nus”. Os efeitos são reais, contudo, muitas vezes de origens irreais. Portanto, ao Analista resta a árdua tarefa de interpretar não somente o significado das Associações Livres, mas também, interpretar o interpretado pelo paciente. Enfim, descobrir por que o paciente interpretou uma situação de forma incorreta ou incoerente ou até “loucamente” (ou corretamente).

            Como a Psicanálise é essencialmente interpretativa, seria prudente admitir a necessidade de inclusão de outras áreas de estudo - antropologia, sociologia, filosofia, psicologia, ...- como aliadas ao método. O Inconsciente é um “organismo vivo”. Ele detém certa autonomia que nenhum órgão da estrutura física humana possui, como o Sistema Respiratório que é constituído pelos pulmões e as respectivas vias respiratórias, os quais, todos são interdependentes em maior ou menor grau e não sobrevivem independentemente. Alguém poderia afirmar: - certo, mas o Inconsciente depende do sistema neurológico para sobreviver. Sistemas abstratos não carecem ou dependem de órgãos físicos para a sobrevivência, eles são “passageiros oportunistas” dos pensamentos humanos, sejam eles bons ou ruins. Na ausência destes, aqueles não morrem, apenas deixam de existir.

            O Inconsciente, enquanto “sistema autocéfalo”, desenvolve pensamentos e consequentemente sentimentos que, por conseguinte, resultam em comportamentos. O Inconsciente, independente, provoca o deslocamento, a condensação, projeção, identificação, ignora a cronologia dos fatos, desconsidera a contradição, supervaloriza a “realidade” interna em detrimento da externa, delibera o predomínio do princípio do prazer, enfim, se autodetermina. Esta energia que “pega carona sem pedir licença” para a mente humana, ebuli e extravasa por intermédio de Pulsões. Na vida de todo homem surgirão incontáveis episódios marcantes, muitos deles portadores da felicidade e satisfação, geradores da alegria e do bem-estar. Outros, nem tanto, emissários da infelicidade e insatisfação, geradores da tristeza e do desgosto traumático (recalque). Os momentos felizes automaticamente se convergem em eventos memoráveis. Mas, e aqueles que são agravantes? Qual o destino reservar para eles? Não existe uma destinação controlada, eles simplesmente irão se acondicionar nas profundezas do Aparelho Psíquico, se tornarão “âncoras” que aprisionarão o homem no passado, podendo transformá-lo na vítima do futuro, encobertos de autopiedade e autocomplacência com os problemas e desgostos ou fracassos pessoais.

 

Considerações finais

            A comunicação sempre ocupou um lugar de destaque na evolução do ser humano. Todavia, é importante que o Psicanalista compreenda os efeitos das interações, sejam elas verbais ou não verbais. Interagir significa colocar-se na condição de vulnerable hominem (homem vulnerável), e as interações comportam, simultaneamente, as possibilidades da harmonia e do ressentimento. O estado harmônico floresce a partir de palavras ou gestos que combinem com os interesses, predileções, similitudes pessoais e apaziguamento. Por outro lado, um estado de ressentimento surge por intermédio de palavras ou gestos que expressem antipatia, desprezo, rudeza, desrespeito, desamor, enfim, a relação para este gênero de sentimento parece ser mais extensa do que o anterior. A sensação é de que o homem esquece rapidamente os estados de contentamento e rememora repetitivamente (e infinitamente) os estados de descontentamento. E, se existe um lugar onde todas as forças possíveis da emoção e imaginação acontecem, este lugar é no divã.

            Considerando que a comunicação acontece concomitantemente de forma verbal e não-verbal, a interpretação analítica por sua vez, igualmente, não se resume apenas em focar nas palavras. Nos instantes do divã o Psicanalista deve transcender o entendimento daquilo que foi enfaticamente ou sutilmente explícito no discurso verbal do seu paciente. É imperativo que a interpretação ou decodificação atente, também, para as mensagens tácitas subjacentes as palavras ditas. Até mesmo o silêncio expressa um significado imenso, quase esclarecedor. Faz-se necessário um olhar holístico, abrangente, tanto quanto possível for. O Psicoterapeuta precisa ser detentor de uma capacidade perceptiva comunicacional acentuada porque o homem nasce dotado da capacidade natural de encenar episódios, ocultar informações, silenciar deliberadamente e somatizar inconscientemente desarranjos psicológicos. Tudo isso requer observação e interpretação hábil e proficiente. Contudo, erra quem pensa que o paciente não está, igualmente, analisando e interpretando o seu Psicoterapeuta. Trata-se de uma análise e interpretação não psicanalítica, é óbvio, mas certamente ocorre na maioria das vezes. Assim, as expressões verbais e não-verbais do Analista precisam de alto comedimento no decorrer das sessões, cujo objetivo é evitar qualquer possibilidade de comunhão recíproca de sentimentos ou representações mentais.

            Os homens, assim como as demais espécies, são “esponjas” sensoriais, ou seja, percebem naturalmente o mundo através da visão, audição, olfato, tato, paladar cuja única condição é que o meio sensorial esteja operante. Mas a mente humana, particularmente, absorve o mundo mecanicamente como dito anteriormente - Dimensão Nata, Dimensão da Natureza Humana e Dimensão Social. Destarte, a mente e os sentimentos são formatados por inúmeras condições internas e externas, e as reações comportamentais provenientes deste composto, sejam elas espontâneas, resignadas ou inconformadas, surtirão de acordo com os contextos e acontecimentos transitórios. É possível crer que entre o sentir e reagir existam “filtros” que poderão ser considerados ou ignorados, integralmente ou parcialmente, constituídos de regras, normas, condutas sociais, leis, costumes, ritos, religiosidade, dentre outros, cada qual com as especificidades do sujeito (eis a Dimensão Social).

            Cabe ressaltar que a sociedade é a principal impositora do que pode ou não ser realizado ou desejado. Talvez o fato da decisão de tudo que é aceito e permitido permanecer sob o domínio dos “outros” leve um paciente a alçar mão do imaginário para saciar os seus desejos e as suas insatisfações. É curioso o fato de que até mesmo o imaginário aceitável é instituído pela sociedade. Como exemplo, o criacionismo faz parte do imaginário há milênios e ninguém neste período foi considerado insano por acreditar em algo impalpável ou improvável. Por outro lado, qualquer cidadão que insinuar “ouvir vozes do além” será imediatamente considerado desequilibrado (pelo menos por grande parte da população).

            O ser humano está fadado a herdar características físicas e comportamentais e, talvez, a possibilidade de desenvolver alguma Psiconeurose. Logo, resta ao Psicanalista conduzir o paciente rumo a uma qualidade que proscreve todas as dúvidas, temores, desânimos e desesperanças: a autoconfiança. O médico Alfred Adler, também filósofo e psicoterapeuta, afirmou que todo neurótico tenta, em vão, ser melhor do que é na realidade. O desejo é adquirir importância para si a para os demais, porém, quando a tentativa fracassa o paciente passa a se autodenominar como um ser inferior e sem qualquer importância. O sentimento recorrente é de desajuste e o desânimo aflora no divã com a declaração de complexo de inferioridade. Neste instante de ausência de discernimento do paciente surge a Resistência, cuja tendência é rejeitar qualquer experiência que não satisfaça a sua autoimagem. O paciente irá lutar obstinadamente contra a ideia de encarar o mundo de maneira diferente daquela na qual havia concebido. Este comportamento inconsciente encontra-se presente nos indivíduos que necessitam de orientação. A desorientação comumente conduz à infelicidade e uma condução viável seria a mudança de atitude. O caminho para “colocar rédeas” em uma neurose poderia ser eclipsar as resistências e alterar o autorretrato mental.

            O homem neurótico nada mais é do que o resultado das tentativas estéreis de ajustar a personalidade enferma e insegura ao mundo externo. As investidas frustradas para a adaptação ou readaptação despertam na mente os pensamentos imagéticos que culminam na inquietação, insegurança, incerteza e dúvida. Por vezes, não raramente, os neuróticos apresentam-se com sintomatologia essencialmente polimorfa, sem hora para despertar ou adormentar. Ao observar determinados indivíduos (não pacientes), parece que eles já nasceram neuróticos, ou seja, vieram à vida com uma indissimulável e irremediável constituição psíquica em constante agonia. A consequência do acúmulo de ansiedades (intermináveis) pode conduzir, na maioria das vezes, o paciente ao paroxismo ansioso. Talvez por fatores somato-psiquícos adversos e intrincados, algumas pessoas tenham prematuramente adquirido as aptidões para ampliar os estados ansiosos patológicos (Dimensão Nata e/ou Dimensão da Natureza Humana).

            Seria prudente considerar que a regra hegemônica é que seja qual for a magnitude dos acontecimentos desfavoráveis que atuaram ou atuam por demasiado tempo sobre um ser humano acabarão, a qualquer instante, provocando um desequilíbrio neurótico por vezes durável, por vezes passageiro (Dimensão Social). A aptidão para as psiconeuroses de uma pessoa para outra sempre será variável, ou seja, cada indivíduo reagirá particularmente de acordo com a sua historicidade genética e social. Contudo, tal aptidão não se converterá em sintomas neuróticos se, porventura, algum fato ou acontecimento relevante ou irrisório não a fizer emergir. Uma boa comparação para melhor reflexão seria a correlação entre: aptidão x neurose versus terreno x grão. Quanto mais fértil for o terreno tanto menos hercúleo precisa ser o grão para resultar em um vegetal viçoso e vigoroso; todavia, quanto mais vigorosa for o grão tanto menos fértil necessita ser o terreno. Enfim, um ser humano está sujeito a variáveis influenciadoras da sua psique, muitas delas fora das possibilidades de controle. Diante disso, é necessário muito cuidado para não perceber um paciente como detentor de total responsabilidade por sua fragilidade psíquica. Afinal, todo indivíduo nasce e fenece rodeado de pessoas, nem sempre soberanas e regentes da sua saúde mental.


 

Referências bibliográficas

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[1] Diamond, J. O Terceiro Chimpanzé – a evolução e o futuro do ser humano. Tradução de Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2010.

[2] Resultado da combinação das informações hereditárias + a influência do meio ambiente.

[3] Informações hereditárias de um organismo contidas em seu genoma.

[4] Heráclito de Éfeso. Filósofo grego pré-socrático considerado por muitos estudiosos o pensador pré-socrático mais importante, por formular com veemência o problema da unidade permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas transitórias. Http:// educacao.uol.com.br/ biografias/ heraclito-de-efeso.htm. Acesso em 11/09/20.