quarta-feira, 4 de agosto de 2021

A PATOLOGIZAÇÃO DA VIDA


 SOBRE DIFERENÇAS, DESIGUALDADES, DIREITOS: RAÍZES DA PATOLOGIZAÇÃO DA VIDA

        Maria Aparecida Affonso Moysés

        Cecilia Azevedo Lima Collares

Dani es un niño que no sabe andar en bicicleta. Todos los demás niños de su barrio ya andan en bicicleta; los de su “cole” ya andan en bicicleta; los de su edad ya andan en bicicleta. Han llamado a un psicólogo para que estudie su caso. Ha hecho una exploración, le ha pasado unas pruebas (coordinación motriz, fuerza, equilibrio y muchas más; ha hablado con los padres, con los profesores, con los vecinos, con los compañeros de clase) y ha llegado a una conclusión: ese niño tiene un problema, tiene dificultades para andar en bicicleta. Dani es “disbiciclético”. Ahora ya podemos estar todos tranquilos, ya tenemos un diagnóstico. A partir de ese momento todo tiene explicación: el niño no anda en bicicleta porque es disbiciclético y es disbiciclético porque no anda en bicicleta. (RUIZ, 2005)

    A diferença identifica

    Eu sei andar de bicicleta, Dani não sabe. Dani é diferente de mim. Portanto, Dani deve ter um problema. Não, não é assim. Dani não é diferente de mim. Existem diferenças entre nós. O “diferente” não existe. As diferenças se concretizam nas relações; existem diferenças entre duas ou mais pessoas, entre nós que agora escrevemos e você que nos lê. Mas você não é diferente de nós, pois não somos o referencial do correto, do adequado; não somos, enfim, o centro do mundo. Somos todos diferentes de todos. Existem diferenças entre todos nós. Diferenças nos modos de ser, de agir e reagir, afetar e ser afetado, aprender e lidar com o aprendido, sofrer e se alegrar. Somos diferentes nos “modos de levar a vida” (CANGUILHEM, 1982) Exatamente porque somos diferentes podemos nos identificar com o outro, conseguimos nos aproximar de suas emoções, sofremos com as injustiças que sofre, lutamos contra a violência que o atinge. As diferenças não constituem problema, ao contrário, são solução, uma das riquezas da humanidade e devem ser valorizadas, respeitadas, acolhidas. Marcar alguém como diferente revela muito de “quem marca”, como alguém incapaz de se perceber na alteridade e de reconhecer o outro como uma pessoa igual a si. Essa intolerância constitui um dos elementos fundantes do fascismo. Quem vê o outro como diferente, desvela sua pretensão de ser o ponto central da humanidade. A humanidade não tem ponto(s) de centralidade, a humanidade se constitui de pessoas iguais em sua condição de humanos, com diferenças entre todos. Se o outro não é visto como igual a mim, ele não é visto como humano; aí, não há possibilidade de respeito, e está pronto o chão da intolerância e do ódio que dela brota.

    A desigualdade deforma

    Vivemos uma sociedade permeada por problemas coletivos, de ordem social, política, econômica. Problemas que geram desigualdades, especialmente de inserção social, etnia e gênero. Desigualdades geradas pelos modelos de desenvolvimento das sociedades, desigualdades que mantém e legitimam tais modelos. Homens e mulheres são diferentes, sem dúvida; porém não é pela diferença que ela recebe um salário menor pelo mesmo trabalho. Um homem de pele de cor negra tem a cor da pele diferente de um homem de pele de cor branca, mas não é pela diferença na cor da pele que negros foram escravizados e continuam sendo marginalizados e sem acesso a melhores condições de vida. Se diferenças permitem a identificação entre humanos, iguais porque diferentes, a desigualdade deforma. Deforma as relações. Deforma minha visão do outro, impedindo que me identifique com ele – como me identificar com um ser deformado? – destruindo sua humanidade; se deformo o outro com meu olhar, também me deformo, mesmo que não perceba; destruo o humano em nós. No extremo, deforma e destrói a própria humanidade. A diferença somente pode acontecer entre iguais, que se completam exatamente pelas diferenças, um preenchendo a incompletude do outro. Em contraste, a desigualdade anula o outro, cria hierarquias, discriminações. (GERALDI, 2003). Se as diferenças devem ser valorizadas e acolhidas, a desigualdade deve ser intransigentemente combatida.

    Vivemos tempos de intolerância

    Vivemos tempos em que diferenças e desigualdades são tornadas iguais, no mesmo incômodo que provocam nas pessoas que nem são diferentes nem sofrem desigualdades. A diversidade dos seres humanos vem se tornando cada vez mais um problema a ser sanado. Se possível, extirpado. Se necessário, extirpando os portadores de tal problema, os diferentes. A propalada cordialidade dos brasileiros se retira de cena e revela no fundo do palco pessoas prestes a explodir sua raiva e frustração no primeiro “diferente” que passe em seu caminho. Pode ser um jovem negro, uma transexual, um indígena, um militante político, uma umbandista, um torcedor de outro time… Porém, a violência também assume outras máscaras, disfarçando-se para se invisibilizar, como os laudos médicos e psicológicos, que sustentam e realizam os processos de medicalização e patologização da vida.

Gabriela é uma garota de 6 anos, que há um ano começou a brigar com colegas de escola e desobedecer a professora. Nesse período, sua agressividade veio aumentando e foi encaminhada a uma psiquiatra que diagnosticou Transtorno por Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Oposicionista Desafiante (TOD) e prescreveu Ritalina® e Risperdal®, com melhora discreta dos sintomas.

    Vivemos tempos em que diferenças e desigualdades são artificialmente transformadas em doenças, transtornos, por meio de discursos cientificistas. Capturados por normas e padrões artificiais, que retiram a vida de cena e criam uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais. Os processos de medicalização e patologização, baseados em discursos e práticas normativos e autoritários, colocam todos nós em risco de sermos rotulados como “disbicicléticos”, ou “dis…”, ou “trans…”, apenas por sermos “diferentes” ou por sofrermos as desigualdades geradas em uma sociedade fundada na desigualdade.

    Rotular, classificar, diagnosticar

    Ao longo da história do mundo ocidental, as pessoas que não se submetem aos padrões de comportamento ditos normais, apresentando comportamentos distintos ou questionando tais padrões, sempre incomodaram a maioria, docilmente submetida, sendo alvo de perseguições. Por que alguém que exibe comportamentos acima de qualquer suspeita é tão afetado por um outro alguém diferente, a ponto de precisar retirá-lo de seu campo de visão, e mesmo eliminá-lo? Talvez porque ver uma pessoa que não se enquadra nas normas escancare que pode ser diferente, isto é, que os padrões não são naturais, não foram e não serão sempre os mesmos. O comportamento humano não é biologicamente determinado, mas tramado no tempo e nos espaços geográficos e sociais, histórico enfim. O ser humano é essencialmente um ser histórico e cultural; entretecido em um substrato biológico, sim, porém datado e situado, como diria Paulo Freire. A naturalização dos padrões de comportamento, levando à crença generalizada de que se deve agir segundo determinados moldes, é fundante da submissão, do não questionamento, da docilização de corpos e mentes, tão cara e necessária à manutenção da ordem vigente, em todos os tempos. A partir dessa naturalização, está pronto o terreno para afastar/eliminar os que perturbam a ordem. Só faltam os critérios, os rótulos e, mais importante, o grupo a ser investido de poder para julgar e definir punições.

    Até o século 16, o poder advinha da religião; autoridades eclesiásticas torturavam e condenavam à morte ateus, hereges, bruxas… Com o advento da ciência moderna, esta passa a ocupar os espaços discursivos do saber e do poder, tornando-se a autoridade investida de poder para exercer as mesmas ações, agora renomeadas: identificar, avaliar, tratar, isolar. A medicina será o campo científico a ocupar, privilegiadamente, esse espaço, passando mais e mais a legislar sobre a normalidade e a anormalidade, a definir o que é saúde e o que é doença, o que é saudável e o que não é, o que é bom e o que é ruim para a vida. E a definição do comportamento desviante, ou anormal, será feita em oposição ao modelo de homem saudável, ou homem médio, estatisticamente definido. A normalidade estatística, definida por frequências e um raciocínio probabilístico, não por acaso coincidente com a norma socialmente estabelecida, é transformada em critério de saúde e doença. (MOYSÉS, 2002). Através dessa atuação normatizadora da vida, a medicina assume, na nova ordem social que surge, um antigo papel. O controle social dos questionamentos definindo critérios para identificar os transgressores. E os critérios anteriores começam a ser substituídos por outros. Ateus, hereges, bruxas são substituídos por loucos, criminosos, epilépticos. Mais recentemente, serão portadores de transtornos mentais. A medicina, logo acompanhada pela psicologia, tem exercido esse papel com eficácia. De que modo? Naturalizando os processos, naturalizando os modos de levar a vida. Basta recordar suas “grandes contribuições” nos anos 1960, quando jovens em quase todo o mundo questionavam o estabelecido, as normas e ordens postas. Nessa época, Arthur Jensen defendia que a inteligência seria geneticamente determinada e que os negros seriam naturalmente inferiores aos brancos.

    Também foi provado que a agressividade seria biologicamente determinada por disfunções cerebrais e a solução proposta para a violência nos guetos foi a psicocirurgia (eufemismo para lobotomia); também se provou que, por determinação genética, os homens desenvolveriam melhor o raciocínio matemático e abstrato, enquanto as mulheres desenvolveriam mais o domínio da linguagem e as emoções, o que explicaria que homens se encaminhassem naturalmente para profissões como engenheiro, enquanto mulheres se encaminhariam naturalmente para profissões como secretária do engenheiro. (MOYSÉS, 2002) O desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que possibilita seu próprio avanço, exige complexificação e sofisticação. O campo médico se especializa. A psiquiatria e a neurologia tomam por seu objeto de saber/poder o comportamento e pouco depois também a aprendizagem. A psicologia se descola da psiquiatria, porém sem romper com sua filiação paradigmática. Surgem os especialistas, agora com poder ainda maior para definir os limites da normalidade. Surgem novos critérios, novos nomes, novas formas de avaliação, novas formas de punição. A vigilância se sofistica. Cérebros disfuncionais seriam agora a causa da violência. Cérebros disléxicos, hiperativos, desatentos, questionadores e baixos QI justificariam o fracasso da escola. Alterações genéticas explicariam os medos de viver em meio à violência. Frustrações na infância alterariam irreversivelmente circuitos neurais e, incrivelmente, provocariam transtornos neuropsiquiátricos de origem genética. De início, loucos e criminosos.... Trancafiados, isolados, para seu próprio bem e principalmente para o bem dos normais. Castrados para evitar que se reproduzam e se propaguem pela terra. Mortos, por condenação formal ou por acidente, nos interrogatórios de avaliação, nas prisões, nas enfermarias.... Até ontem, pessoas com transtornos mentais, quimicamente submetidos e assujeitados.

    Hoje, novamente “eletrochocados”. Amanhã, talvez, novamente lobotomizados. A normatização da vida tem por corolário a transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. O que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria… tudo é transformado em doença, em problema individual. Afasta-se a vida, para sobre ela legislar, muitas vezes destruindo-a violenta e irreversivelmente. A medicalização é primordial na desconstrução de direitos, uma violência contra a pessoa capturada em sua teia. Ao desconsiderar os problemas que ela sofre e enfrenta, ao escamotear as possibilidades ou barreiras impostas em uma sociedade construída no discurso da igualdade e fundada na desigualdade de fato, ao individualizar e atribuir seus modos de levar a vida à própria pessoa, a pretensos transtornos inerentes a ela, os processos patologizantes são novas formas de violência contra as pessoas. Novos modos de vigiar, novos modos de punir. E os profissionais, com sua formação acrítica e a-histórica, exercem, a maioria sem se dar conta, seu papel de vigilantes da ordem. Crentes nas promessas de neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se defrontam com ela. Sem disponibilidade para olhar o outro, protegem-se ancorando-se em frágeis instrumentos padronizados de avaliação. Sem preocupação com as consequências de seu diagnóstico e laudo para a vida do outro, o profissional nem mesmo se permite perceber que a classificação não decorre do diagnóstico, e este de uma avaliação adequada, como lhe ensinaram. Os rótulos se urdem já nas primeiras impressões, no olhar preconceituoso; rótulos que classificam e embasam diagnósticos que os confirmam…

Miguel tem 7 anos e há 4 anos é acompanhado pela equipe de pediatria em uma Unidade Básica de Saúde em Campinas, São Paulo. Recentemente, em um surto de agressividade, amassou 5 carros; desde então, passou a agredir seus companheiros de escola e desobedecer os professores. Foi encaminhado a um psiquiatra, que diagnosticou TDAH e TOD, prescrevendo Ritalina® y Risperdal®.

    O processo de medicalização e a desconstrução de direitos

    Existe uma crescente transferência de problemas inerentes à vida cotidiana para o campo da medicina, transformando problemas coletivos em individuais, de pretensa origem biológica. Preferencialmente, de ordem neuropsiquiátrica e genética. Tratar questões sociais como se fossem biológicas constrói um ideário em que o mundo da vida humana se iguala ao mundo da natureza, absolvendo de responsabilidade todas as instâncias de poder em que são gerados e perpetuados esses problemas. No mundo da natureza, processos e fenômenos são regidos por leis naturais, quase universais. A medicalização naturaliza a vida humana; processos e relações socialmente constituídos são desconstruídos, como o conceito de direitos humanos, conquista histórica de homens e mulheres. É no mesmo terreno que possibilitou a Revolução Francesa,

(…) que pode brotar e resistir a concepção de que todos os seres humanos têm os mesmos direitos inalienáveis. Trata-se, como em todos os conceitos e concepções, de uma construção histórico-cultural, e não de algo natural, inato ao ser humano ou inerente às sociedades humanas. Nem natural, nem biológico, e menos ainda genético. Uma construção cultural que só pode existir quando enxergo “o outro” como um sujeito como eu e me identifico com ele, o que faz com que eu seja afetada quando ele é atingido, sentindo e sabendo que “quem cala sobre seu corpo, consente na sua morte”. (MOYSÉS e COLLARES, 2007: 153)

    A medicina constitui seu estatuto de ciência moderna em pouco mais de 50 anos, na transição entre os séculos 18 e 19, atribuindo-se a competência de legislar e normatizar o que é saúde ou doença – o que significa definir o “homem modelo” – e, honrando suas raízes positivistas, passa a reger todos os aspectos da vida dos seres humanos a partir de um olhar biologizado, que reduz pessoas a corpos. Primeira área ligada aos seres humanos a se constituir como ciência moderna, a medicina será o modelo epistemológico para as ciências que estudam o homem. (FOUCAULT, 1980). O processo de biologização, em que todos os aspectos da vida estariam determinados por estruturas biológicas que não interagiriam com o ambiente, retira de cena todos os processos característicos da vida em sociedade: historicidade, cultura, organização social com suas iniquidades de inserção e acesso, valores, afetos… A redução da vida, em sua complexidade e diversidade, a apenas um aspecto – células e órgãos, tornados estáticos, determinados e deterministas –, é uma característica fundamental do positivismo, ao apregoar que o conhecimento das partes permitiria conhecer o todo.

    Tal pressuposto não se sustenta nem mesmo nas ciências exatas, com os novos conceitos da física quântica e da teoria do caos; em biologia, a mudança de um elemento pode modificar toda a configuração do objeto de estudo. Porém, o reducionismo persiste alimentando preconceitos baseados em estereótipos: um homem de 40 anos, de São Paulo, professor, casado, com pele negra, será apenas e irremediavelmente um homem negro; uma adolescente baiana, de 17 anos, questionadora e comprometida com um mundo melhor, é vista como portadora de TOD; um garoto de 9 anos, habitante dos subúrbios do Rio de Janeiro, filho de trabalhadores, que vai mal em uma escola precária, é somente um “menino que não aprende”, ou melhor ainda, um disléxico. Reduzida a vida ao substrato biológico, o futuro fica irreversivelmente determinado desde o início; fica preparado o terreno para a medicalização e seu ideário de que os problemas sociais seriam consequência de dificuldades de origem e solução no campo médico. Na atualidade, uma epidemia de diagnósticos patologiza a vida. É um tempo em que qualquer mal-estar é rapidamente transformado em síndrome, enfermidade, transtorno. Sem dúvida, os avanços científicos e tecnológicos possibilitam diagnósticos mais precoces e precisos, tratamentos mais eficientes, melhoras na qualidade de vida. Sem dúvida, o acesso a essas possibilidades é restrito, a maioria das pessoas não se beneficiam delas. Assim mesmo, promovem a amplificação da medicalização, tanto para os que tem acesso como para os que não tem. Professores de Dartmouth Medical School, alertam:

A avançada tecnologia permite que os médicos olhem profundamente para as coisas que estão erradas. Nós podemos detectar marcadores no sangue. Nós podemos direcionar aparelhos de fibra ótica dentro de qualquer orifício. Além disso, tomografias computadorizadas, ultrassonografia, ressonâncias magnéticas e tomografias por emissão de pósitrons permitem que os médicos exponham, com precisão, tênues defeitos estruturais do organismo. Essas tecnologias tornam possíveis quaisquer diagnósticos em qualquer pessoa: artrite em pessoas sem dores nas juntas, úlcera em pessoas sem dores no estômago e câncer de próstata em milhões de pessoas que, não fosse pelos exames, viveriam da mesma forma e sem serem consideradas pacientes com câncer. (WELCH et al, 2008: 8)

    Nessa epidemia de diagnósticos, o mundo e a vida são observados por um prisma no qual o que não se enquadra em rígidos padrões e normas se converte em doenças a serem tratadas. Os infinitos modos possíveis de levar a vida e de aprender sofrem a imposição de padrões homogeneizantes; campos de maior diversidade, sofisticação e complexidade nos seres humanos são reduzidos a regras verificáveis em checklists. Não estranha que modos de se (des)comportar e de (dis)aprender sejam alvos prioritários na disseminação desses diagnósticos/rótulos; daí, decorre que crianças e adolescentes sejam alvos estratégicos.

Talvez ainda mais preocupante seja a medicalização da infância. Se uma criança tossir depois de fazer exercícios, ela tem asma. Se tiver problemas com leitura, é disléxica. Se estiver infeliz, tem depressão. Se alternar entre euforia e tristeza, tem distúrbio bipolar. (WELCH et al, 2008: 8)

    Se você, como Dani, não souber – ou não gostar de – andar de bicicleta, com certeza será um “disbiciclético”. Mesmo que ninguém lhe tenha ensinado… O diagnóstico/rótulo está previamente definido: disbiciclético! Agora, só falta elaborar uma sofisticada explicação de fisiopatologia neuronal. Basta elaborar, não precisa ser comprovada, nem mesmo testada; se for embalada em um discurso cientificista convincente e conquistar divulgação pela mídia, será suficiente; depois, os pais de Dani e de outras crianças que não andam de bicicleta serão envolvidos pelo discurso de entidades, associações, pesquisadores, profissionais, todos extremamente preocupados em ajudar Dani a superar o estigma que lhe foi imposto por eles mesmos. E então, o mundo estará preparado para o lançamento da fantástica nova droga: a miraculosa EasyBike! Estigma inscrito a ferro e fogo no corpo e na mente, a institucionalização em uma doença inexistente agride psiquicamente, corrói as potencialidades da pessoa André, 9 anos, é encaminhado a consulta com a pediatra porque ainda não sabe ler; entra no consultório arrastrado por sua mãe. Forçado a se sentar, dispara: “Vou ficar internado? ”.

    A pergunta surpreende médica, que devolve: “internado por quê? ”. Ele responde: “Porque não sei ler”. Na consulta, anamnese, exame físico, exame neurológico e desenvolvimento cognitivo eram normais. André não tem nenhum problema que dificulte aprender a ler e escrever. Ao sair, pergunta novamente: “Então, não vão me internar? ”. A médica pergunta: “Internar por quê? ” e ele responde: “Pensei que tinha que ficar internado para aprender a ler. Eu não queria vir, tinha medo que iam me deixar internado e não ia mais voltar para casa. Sonhei com isso a noite inteira. ” As violências contra “os Andrés” já eram muitas: a desigualdade social e de acesso cultural; o acesso à escola que encobre sua falta de acesso à ensinagem; os preconceitos contra seus valores, seus saberes, sua linguagem. (COLLARES e MOYSÉS, 2015) E agora, somam-se novas violências: a incorporação do rótulo que lhe atribuem de fracassado, por incapaz, por doente; a imposição de uma “doença” jamais comprovada pela medicina; a crença de que todas as desigualdades que continuará vivendo, sofrendo e transmitindo são por “sua culpa”. Porque, ao final, quem mais poderia ser responsável? O destino? Os deuses? Andrés, Josés, Marías... Crianças inicialmente normais, reféns de incapacidades que lhes atribuem, confinados em doenças ou transtornos que não tem. Estigmatizados, discriminados, incapazes, doentes e ainda confinados. Confinados, disciplinados, controlados. Controlados a céu aberto, por uma instituição invisível, virtual, etérea, porém muito concreta em suas mentes e corações. Institucionalizados!

    Vivemos a Era dos transtornos

    Atualmente, os processos de medicalização da vida se amplificam e sofisticam, com pretensas explicações no campo da biologia molecular. Patologiza-se o medo de viver em cidades violentas, assim como a própria violência, desconectando-a da exclusão social, de vidas sem perspectiva, tentando nos reduzir a seres estritamente biológicos. Células sem contexto e sem cultura. Genes atemporais, sem história, sem política. Na busca da homogeneização de modos de levar a vida e do silenciamento de conflitos, os que não se submetem sofrem processos destinados a lhes mostrar – assim como a aqueles que os rodeiam – que é melhor se conformar e deixar levar. Os que não se submetem são quimicamente assujeitados, institucionalizados em diagnósticos neuropsiquiátricos e drogas psicoativas, destituídos de sua subjetividade, da condição de sujeitos históricos e culturais. Na Era dos Transtornos, vivenciamos a escalada violenta dos diagnósticos de Dislexia, TDAH, TOD e todas demais nomenclaturas lançadas cotidianamente pela American Psychiatric Association (APA), como novos produtos de mercado, sempre acompanhados por novas drogas recém-lançadas no mesmo mercado. Muitas vezes, a nova droga surge antes que o novo transtorno.

Recompensados com toda razão quando salvam vidas humanas e reduzem sofrimentos, os gigantes farmacêuticos não se contentam mais em vender medicamentos para aqueles que precisam. Pela pura e simples razão que, como bem sabe Wall Street, dá muito lucro dizer às pessoas saudáveis que estão doentes. (...) Sob a liderança de marqueteiros da indústria farmacêutica, médicos especialistas e gurus sentam-se em volta de uma mesa para “criar novas ideias sobre doenças e estados de saúde”. O objetivo é fazer com que os clientes das empresas disponham, no mundo inteiro, “de uma nova maneira de pensar nessas coisas”. (MOYNIHAN e CASSELS, 2007: 151)

    Em um mundo em que pessoas são transformadas em corpos e mentes a docilizar e em potenciais bioconsumidores, é irrelevante que os anunciados efeitos terapêuticos sejam sinais de toxicidade, que indicam a suspensão imediata da droga (BREGGIN, 1999) ou a comprovação do aumento do risco de morte súbita inexplicada (GOULD et als., 2009) ou que, em todo o mundo, nas clínicas para tratamento de dependência química, 30 a 50% dos jovens em tratamento relatem que iniciaram o uso abusivo de substâncias psicoativas com Ritalina®, droga preferida porque, segundo eles, é barata, facilmente acessível e é receitada por médicos que dizem que é segura. (GENETIC SCIENCE LEARNING CENTER, 1969) O Brasil é um dos países com maior consumo de drogas psicoativas. Maior consumidor mundial de clonazepam, um dos maiores consumidores de metilfenidato. Isso está muito longe de significar acesso à qualidade na atenção à saúde; ao contrário, revela a intensidade e extensão da medicalização da vida. Os dispositivos patologizantes – realizados não somente pela medicina, mas por todas as áreas da saúde – cumprem uma tarefa fundamental para a manutenção de tudo que já está posto no mundo dos homens. Biologizar um problema é transformá-lo em algo “natural, inevitável”, isentando todas as instâncias nele envolvidas. A sociedade, com suas desigualdades, os governantes e suas opções, tudo é escamoteado pelo fato – talvez seja melhor falar em azar – de que existiriam defeitos que incidiriam de maneira aleatória, sem determinação social. Um ideário perfeito para que tudo permaneça como está.

Júlia tem 10 anos e ainda não sabe ler; graças a um laudo de fonoaudiólogo que afirma sua dislexia, não pode ser reprovada. Com o tempo, os professores deixaram de avaliar Júlia, pois “não adianta mesmo”. Agregue-se a isso que não se sentem preparados para lidar com uma doença neurológica que impediria, ou dificultaria, o domínio da língua escrita e o resultado será que Júlia é um tanto estrangeira na sala de aula, geralmente na periferia dos processos de ensino.

    Direitos não se inscrevem no mundo da natureza; são uma conquista histórica e política da humanidade, pela qual milhões morreram e continuam sendo mortos, e não tem espaço em território biologizado. A medicalização constitui elemento primordial na desconstrução de direitos.

Recentemente, uma amiga da mãe de Júlia a questionou se o fato de não poder ser reprovada não seria a negação do direito de aprender, provocando grande conflito na mãe, ao desenvolver sua lógica: se ela não pode ser reprovada, não precisa ser avaliada; se não precisa ser avaliada, não precisa aprender; se não precisa aprender, não precisa ser ensinada. E arrematou com o xeque-mate: por que o laudo não afirma que ela tem o direito de aprender, em seu tempo e de seu modo? Por que você luta para ela não ser reprovada em vez de lutar para que ela aprenda? E lhe entregou uma revista, dizendo leia essa “Carta a uma mãe”, veja o que essa pediatra diz: A maioria das crianças diagnosticadas como disléxicas são absolutamente normais, que apenas aprendem de modos diferentes. Aliás, não aprendemos todos do mesmo modo. Dizer isso não significa abandoná-lo à própria sorte (ou azar); ao contrário. Defendo que TODA CRIANÇA TEM DIREITO DE APRENDER E É CAPAZ, devendo ser atendida em suas necessidades e especificidades. (MOYSÉS, 2011)

    Legislar, Patologizar, Judicializar

    Porém, a destruição de direitos realizada pela patologização da vida é ainda maior, atingindo não apenas as pessoas capturadas em sua teia, mas a todos nós. Afinal, não existe um direito que não seja de todos; se todos não têm um direito, ninguém o tem. Se João não pode aprender a andar de bicicleta porque não tem bicicleta (por falta de salário, ou excesso de dias no salário dos pais) e eu posso, eu tenho privilégios e João tem carências, conceitos estranhos ao campo dos direitos. Na era dos transtornos, políticos apresentam uma profusão de leis normatizando temas estranhos ao mundo legislativo, legislando sobre procedimentos pedagógicos, diagnósticos e terapêuticos, estabelecendo o que e como profissionais da saúde e da educação devem fazer. Essa profusão dos mesmos Projetos de Lei em praticamente todas as casas legislativas do país – câmaras municipais, assembleias estaduais, congresso nacional –, apresentados por todos os partidos, com diferenças insignificantes entre eles, traduções quase literais de leis existentes nos Estados Unidos da América, é propalada como mais uma conquista de entidades que se afirmam de defesa dos direitos dos portadores de um ou outro transtorno mental. Como entender que parlamentares com posições políticas tão distintas apresentem o mesmo projeto de lei? Ou que o mesmo projeto seja apresentado por um vereador de uma pequena cidade nos Pampas e por outro de um município no sertão cearense? Quais as forças e interesses que movimentam esse jogo? Difícil crer que a motivação seja apenas a qualidade de vida das pessoas.

    Um efeito pode ser facilmente identificado: os familiares acreditam que seus filhos estão sendo acolhidos, respeitados e defendidos e assim são capturados pelos discursos de tais entidades e dos políticos que jogam o jogo. Ao determinar que os parcos recursos destinados à educação sejam usados para contratar profissionais estranhos à escola supostamente especializados em diagnosticar e tratar supostos transtornos de comportamento e aprendizagem no próprio ambiente escolar, transformado em espaço clínico, professores são transformados em triadores; ao obrigar a inclusão de determinadas drogas na lista de medicamentos do Sistema Único de Saúde, decisões técnicas embasadas em perfil epidemiológico e prioridades da população são jogadas no lixo. As políticas públicas de saúde e de educação são, assim, sumariamente atropeladas, expropriadas de sua competência técnica e política. Nesse contexto, tornou-se praticamente uma “cláusula pétrea” o direito de não ser reprovado (que, como bem notou a amiga da mãe de Júlia é a negação do direito de aprender); surgindo nas séries iniciais do ensino fundamental, rapidamente se alastrou por todos os níveis de ensino, inclusive no ensino superior.

João tem 19 anos e estuda medicina em uma renomada universidade; seu desempenho acadêmico é mediano, como sempre foi, sem grandes dificuldades. Há um ano, três meses antes de se inscrever no vestibular, João foi levado pelos pais a um médico por algumas dificuldades no estudo. Saiu com o diagnóstico de TDAH e um laudo que lhe garantiu condições especiais de exame, como 25% de tempo a maior em todas as provas.

    Pedro tem 19 anos e está fazendo novamente cursinho preparatório para vestibular em medicina. No ano passado, quase conseguiu a vaga em uma renomada universidade; se tivesse tido alguns minutos a mais na prova de química, certamente teria conseguido… João e Pedro são mais frequentes a cada dia…

    Medicalização: um álibi para a violência

    A medicalização do comportamento e da aprendizagem tem outra faceta ainda mais perversa. O afã de silenciar todo conflito, todo questionamento, toda diferença, de anular a possibilidade de futuros diferentes, aliado à ganância da indústria farmacêutica e ancorado na falta de ética e compromisso de muitas pessoas, não tem limites. Nos últimos anos, a medicalização dos modos de levar a vida e de aprender vem afetando cada vez mais crianças e adolescentes que vivem situações de violência física e/ ou psicológica, servindo como álibi para as agressões. Esses jovens podem ser encontrados em espaços neuropsiquiátricos e assim se oculta o problema real. Em vez de detectar sinais e indícios clássicos de agressões, médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, assistentes sociais, com espantosa facilidade e insensibilidade, assinam laudos com rótulos de transtornos neuropsiquiátricos e sedam com substâncias psicoativas. De vítimas a portadores de TDAH e TOD; de acolhimento e proteção a Ritalina® e Risperdal®...

    No Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, um programa acolhe e atende crianças e adolescentes em situação de violência. A análise das histórias desses jovens revelou que todos eram atendidos em serviços médicos, com diagnósticos de transtornos neuropsiquiátricos. Dificuldades de aprendizagem, déficit de atenção, agressividade, hiperatividade e fracasso escolar englobavam 68,54% dos 213 “diagnósticos”. Dos 150 jovens, 127 com mais de 5 anos de idade recebiam drogas psicoativas prescritas por médicos; 63% recebiam associações de drogas, em doses crescentes há mais de um ano, sem melhoras; 18% haviam recebido psicotrópicos por mais da metade de sua vida. 1/3 eram atendidos no próprio Hospital de Clínicas, sem que se suspeitasse das agressões sofridas. Alguns apresentavam danos neurológicos irreversíveis. As marcas psíquicas eram indeléveis e irremediáveis em todos. (PFEIFFER, 2011). Profissionais incapazes de suspeitar que uma criança é vítima de brutais agressões físicas e/ou psicológicas, tranquilizados por diagnósticos/rótulos que violentam mais uma vez. Crianças silenciadas e sedadas que se convertem em alvo mais fácil das agressões. Ainda mais perverso que não identificar, é saber e desconsiderar o sabido. Crianças e adolescentes em situação de amparo judicial (retiradas judicialmente de suas famílias pelas agressões), com comportamentos esperáveis por sua história de vida sofrem nova violência: a medicalização. Retomemos agora a história de Miguel, o garoto a que nos referimos neste texto.

Miguel vive sob amparo judicial há 5 anos; o judiciário retirou o pátrio poder de seus pais por atos de violência física contra a criança. Aos 2 anos, foi com os pais visitar um irmão, que já vivia em abrigo judicial, pela violência dos pais; no próprio abrigo, Miguel levou uma surra violenta dos pais, sendo imediatamente protegido pelos responsáveis pelo abrigo e rápida e oficialmente institucionalizado. Durante 2 anos Miguel foi acompanhado por uma psiquiatra, por seus medos e sofrimentos, que reincidiam cada vez que um amigo saia da instituição; em algumas ocasiões, foi medicado com drogas psicoativas, porém sempre por períodos curtos e para que possa suportar sua vida, segundo as anotações da psiquiatra. Nunca recebeu nenhum diagnóstico psiquiátrico; ao contrário, no prontuário é possível enxergar uma relação de respeito, empatia e acolhimento, um saber/querer enxergar o outro; as anotações, em consultas semanais, falam de seu sofrimento pelas perdas constantes e do plano terapêutico para aliviar sua vida. Miguel também era atendido por uma psicanalista. Em 5 anos, não houve nenhuma tentativa de adoção; então, um casal se interessou, aconteceram sucessivos encontros, cada vez mais prolongados, até que por fim o juiz autorizou um fim de semana juntos. Aí, na casa, Miguel encontrou um garoto pouco mais velho que ele, filho do casal, cuja existência desconhecia (também a equipe do abrigo desconhecia). Após algumas tentativas de aproximação e estranhamentos, os dois garotos brigaram e a avó materna, o expulsou aos gritos de “tirem este negrinho daqui, ninguém vai adotar ninguém”. Miguel correu para a garagem e saltou repetidamente sobre os carros, amassando-os. Foi devolvido ao abrigo; o casal nunca mais apareceu. A partir daí, Miguel tornou-se agressivo, briguento, desobediente. Por exigência da escola, foi levado a outra psiquiatra (a anterior havia se mudado) que, mesmo informada, desconsiderou todo o acontecido e diagnosticou TDAH e TOD, prescrevendo Ritalina® e Risperdal®.

    A história de Miguel foi apagada pela médica, em uma nova agressão. Tudo que sofreu, todas as violências, todas as violações de seus direitos, nada disso existia. Era simplesmente o portador de um cérebro com neurotransmissores geneticamente defeituosos. E Gabriela? Qual sua história de vida?

Aos 11 anos Gabriela foi encaminhada a consulta médica pelo Juiz de Menores, após ter sido retirada da casa dos pais e colocada em um abrigo judicial. Os pais perderam o pátrio poder e sua guarda quando, a partir da denúncia de vizinhos, se comprovou que Gabriela era abusada sexualmente por seu pai todas as noites desde os 5 anos. Pouco depois, passou a se apresentar agressiva na escola; sem dúvida, os profissionais que a atenderam na época não pensaram que comportamento é apenas uma manifestação, expressão do que acontece com a pessoa, de como está sua vida, suas relações com os outros e consigo mesma. Em visão reducionista e simplificadora, pensaram que o comportamento é, em si mesmo, um problema, uma doença. Durante 5 anos Gabriela continuou sendo sexualmente violentada por seu pai, todas as noites, porém agora já não reagia mais. Devemos destacar que nesse período, segundo a família, a escola e o médico que a atendia, sua agressividade e desobediência melhoraram com a medicação…

    Silenciar questionamentos, homogeneizar comportamentos, abortar o futuro, abolir sonhos, utopias e ilusões. Extirpar a vida por ser irregular e imprevisível. São essas as metas? Os índices de drogadição, a dependência psíquica e química, as taxas de suicídio e morte súbita em adolescentes, nada parece capaz de afetar as indústrias farmacêuticas e os profissionais que se colocam a seu serviço; nada parece capaz de provocar que os profissionais se disponham a enxergar e ouvir o outro, buscando entender os conflitos que se manifestam em seus modos de ser e agir. Classificar crianças e adolescentes por meio de observação que os reduz a casos, geralmente perdidos, intratáveis, é um olhar que lhes subtrai a condição de sujeitos e avaliza, cientificisticamente, o bloqueio que lhes é imposto de acesso ao futuro. Nunca é demais lembrar que se, numa relação entre duas pessoas, como a relação médico paciente, uma delas transforma a outra em objeto, a relação não será mais sujeito-sujeito, nem mesmo sujeito-objeto, mas sim, objeto-objeto. Se meu olhar destitui o outro de sua condição de sujeito, no mesmo movimento a retira de mim. (MOYSÉS e COLLARES, 1997)

    De volta a um futuro sem futuro

    É a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades. A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências físicas e psicológicas, transformando essas pessoas em “portadores de distúrbios de comportamento e de aprendizagem”. Aprendizagem e comportamento; exatamente os campos de maior diversidade e complexidade, constituintes da, e constituídos pela, subjetividade e singularidade; campos em que a avaliação é mais complexa e mais questionada. Aprendizagem e comportamento; crianças e adolescentes. Esses os alvos preferenciais dos processos que buscam padronizar, normatizar, homogeneizar, controlar a vida. Processos que patologizam a vida. E nesses processos de medicalização, controle e judicialização da vida um instrumento é fundamental: os laudos. Médicos, psicológicos, fonoaudiólogos, pedagógicos etc. Instrumento fundamental porque realiza a função de julgamento, condenação e sentença. Fundamental porque desvela o protagonismo dos profissionais, atuando de modo acrítico e quase em modo automático, em função de vários fatores, entre os quais devemos destacar a formação tecnificada, regida pelo e para o mercado, em uma sociedade fundada em uma vida cada vez mais produtivista e consumista.

    Vivemos uma sociedade que vem se constituindo cada vez mais como formada não por cidadãos, mas por consumidores, preferencialmente bioconsumidores, homogeneizados (IRIART e IGLESIAS-RIOS, 2013). Cabe por fim, nos perguntarmos sobre que futuro estamos construindo. Transformar em doenças mentais sonhos, utopias, devaneios, questionamentos, discordâncias; aborta-los com substâncias psicoativas pode resultar em impossibilidades de futuros diferentes. Podemos legar a nossos filhos e netos, como bem disse Victor Guerra, o genocídio do futuro. A disponibilidade para se identificar com os Reginaldos, Gabrielas, Andrés, Marias, Miguéis pode recuperar a sensibilidade de enxergar o outro, a capacidade de indignação. Defender a vida resistindo aos processos de patologização pode significar um passo mais para a construção de um mundo em que o futuro mereça este nome. Esse futuro somente existirá quando todas as pessoas sejam sujeitos de fato, e não sejam transformadas em objetos que podem ficar à margem dos destinos da humanidade, à margem de sua própria vida.

 

Referências

BREGGIN, Peter R. Psychostimulants in the treatment of children diagnosed with ADHD: Risks and mechanism of action. International Journal of Risk e Safety in Medicine 12: 3–35, 1999

CANGUILHEM, Georges O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2ª ed. Brasileira. 1982

COLLARES, CAL & MOYSÉS, MAA Preconceitos no cotidiano escolar: Ensino e medicalização. 2a edição. Edição eletrônica das autoras. 2015.

FOUCAULT, Michel O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária. 2ª ed. brasileira, 1980

GENETIC SCIENCE LEARNING CENTER Ritalin and Cocaine: The Connection and the Controversy. Learn Genetics. 1969, December 31. Disponível em http: //learn.genetics.utah.edu/ content/ addiction/ issues/ritalin.html Acesso em 03/04/2009

GERALDI, João Wanderley A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos Bakhtinianos de construção Ética através da Estética. Blog do Geraldi. 28 dez 2018.

GOULD, M.S.; WALSH, B.T.; MUNFKL, J.L.; KLEINMAN, M.; DUAN, N.; OLFSON, M.; GREENHILL. L.; COOPER, T. Sudden Death and Use of Stimulant Medications in Youths. Am J Psychiatry 166: 992-1001, 2009

IRIART, Celia e IGLESIAS-RIOS, Lisbeth 2013 La (re)creación del consumidor de salud y la biomedicalización de la infância. In: Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos Transtornos. Org. CAL Collares,

MAA Moysés e MCF Ribeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013 p 21-40

MOYNIHAN, R. e CASSELS, A (2007) Vendedores de doença: estratégias da indústria farmacêutica para multiplicar lucros. In: Bioética como novo paradigma. Por um novo modelo bioético e biotecnológico. org. ML Pelizzoli. Petrópolis: Vozes. pp 151-156

MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso A institucionalização invisível. Crianças que não aprendem na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2002

___________________________ Carta a uma mãe. Nov 2011. Disponível em: https:// docs.wixstatic.com/ ugd/ f07548_b724807f8da141159ae5634378564844.pdf Acesso em 11/01/2019

MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso e COLLARES, Cecília Azevedo Lima Medicalização: elemento de desconstrução dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos? O que temos a ver com isso? Org . Comissão Regional de Direitos Humanos do CRP-RJ. Petrópolis: Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, pp 153-168. 2007

_________________________. Inteligência Abstraída, Crianças Silenciadas: as Avaliações de Inteligência. Psicol. USP, São Paulo , v. 8, n. 1, p. 63-89, 1997

PFEIFFER, Luci Método de Classificação em Níveis de Gravidade da Violência contra Crianças e Adolescentes. Tese de Doutorado em Saúde da Criança e do Adolescente, Universidade Federal do Paraná. 2011

RUIZ, Emilio Disbicicléticos Revista Síndrome de Down 22: 73-74, 2005

WELCH, G.; SCHWARTZ, L.; WOLOSHIN, S. O que está nos deixando doentes é uma epidemia de diagnósticos. Jornal do Cremesp, p. 12, fev. 2008 (publicado em The New York Times, 02/01/2007; tradução de Daniel de Menezes Pereira)

 

 

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