quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

HERANÇAS DE NOSSA NATUREZA PRIMITIVA

Por Heitor Jorge Lau
Relações Públicas, Pós-Graduado em Gestão de Pessoas
Mestrando em Educação

Ensaio do filme: O Senhor das Moscas

Os comentários redigidos a seguir são oriundos da observação e interpretação de um filme bastante antigo: O Senhor das Moscas. O olhar crítico sobre as particularidades exibidas foi associado fundamentalmente aos aspectos filosóficos do enredo. Porém, a análise dessas particularidades também encontrou ancoradouro nos universos da psicologia, sociologia e antropologia. Por que este passeio por diversas linhas de estudo? Justamente pela riqueza de situações verificadas através de atitudes individuais e grupais, pró-ativas e reativas, racionais e irracionais. Enfim, a diversidade de detalhes comportamentais é tão abrangente que se tornou praticamente impossível uma visão limitada aos aspectos filosóficos fortemente percebidos.

    O filme expõe os instintos mais primitivos da natureza humana. A desordem social, a disputa pelo poder, o controle do fogo, o instinto de caçar, o instinto de sobrevivência... Não seria exagero compará-lo a uma versão do filme Guerra do Fogo vivenciado em tempos modernos. Aspectos do elenco, caracterizados pela figura masculina pré-adolescente e militarizados, foram desconsiderados, levando-se em conta somente atitudes e aprendizado.

    Uma sociedade doutrinada
Virtualmente, todas as sociedades desenvolvem estruturas hierárquicas nas quais certas pessoas são investidas de poder e autoridade sobre as outras. Em nossa sociedade, por exemplo, pais, diretores de escola, gerentes, etc., são investidos de vários graus de autoridade. O relacionamento entre figuras de autoridade e seus subordinados quase sempre provoca conflitos morais. Isto pode ser ilustrado de maneira vigorosa pela história de Abraão, a quem Deus ordenou que matasse seu filho Isaac. O dilema de Abraão é que ele sentia amor por Deus e pelo seu filho, mas havia sido colocado numa posição em que era aparentemente solicitado a trair um ou outro. Até que ponto deveria ir sua obediência a Deus?

    Um conflito semelhante ocorre quando, numa guerra, soldados recebem ordens de matar civis indefesos, como aconteceu durante a Guerra do Vietnã, quando o tenente Calley ordenou o massacre de civis em My Lai. A defesa de Calley fundamentou-se na afirmação de que estava obedecendo a ordens dos seus superiores – em outras palavras simplesmente “cumprindo o seu dever”. Aqui ocorre o conflito entre os requisitos da disciplina do exército e o respeito à vida humana.

    No exemplo citado, é nítida a disposição das pessoas de irem a extremos a fim de serem obedientes às ordens de uma autoridade. Vale a pena lembrar como colaboradores agem no trabalho em relação aos seus superiores. Pessoas em posição de autoridade dizem e fazem coisas obviamente erradas ou inadequadas, mas mesmo assim existe uma relutância generalizada entre os subordinados em desafiar suas decisões.

    Culturalmente coloca-se uma ênfase muito grande na necessidade de se obedecer à autoridade, sob o argumento de que uma sociedade eficiente e bem organizada só pode existir quando há uma hierarquia razoavelmente estável na qual algumas pessoas são investidas de poder sobre as outras. E, a maioria das sociedades tenta garantir a obediência fazendo com que o indivíduo obediente ocupe um lugar na hierarquia.

    Na vida diária, colocamos a responsabilidade pela nossa saúde nas mãos do nosso médico, procuramos um contador quando precisamos de orientação financeira, etc. Temos a necessidade de confiar nas opiniões de várias figuras de autoridade e isto é exatamente o que os participantes da experiência fictícia do filme retratam. Um impulso incontrolável, uma necessidade inconsciente de prestar obediência a uma autoridade.

    Também não podemos ignorar o fato de que toda trama acontece num ambiente hostil, totalmente desprovido de leis sociais que regem a conduta moral, ética e dos bons costumes. Pode não parecer óbvio, mas o contexto geográfico pode validar ou rejeitar determinadas ações. Por exemplo, qualquer homem é capaz de expor o pescoço a alguém munido de uma navalha numa barbearia, mas não numa sapataria.

    O lado primitivo do humano
Bem, misturando o ambiente errado com a influência inadequada, teremos inevitavelmente, a receita da capacidade do homem de abandonar sua humanidade na medida em que ele funde sua personalidade única nas estruturas institucionais defeituosas. Talvez esse seja o defeito fatal com que a natureza nos dotou e que em longo prazo dá a nossa espécie apenas uma modesta chance de sobrevivência.

    Pessimismo ou não, basta resgatar a teoria da evolução de Charles Darwin que afirma que os seres humanos compartilham uma descendência comum com os mais primitivos dos animais. Esta herança aplica-se tanto ao cérebro humano, o berço da razão e da sensação, quanto a qualquer outra parte de nossa estrutura física e psicológica. Mas como estamos analisando comportamento ignoremos do “pescoço para baixo”.

    A ciência comprovou a existência de duas partes importantes do nosso cérebro: o paleocórtex e neocórtex. O paleocórtex ou sistema límbico é uma estrutura cerebral que se desenvolveu posteriormente e que governa a expressão das emoções. O neocórtex ou massa cinzenta é que distingue o homem dos outros animais. É justamente o neocórtex que permite o raciocínio lógico, o uso da linguagem complexa e a quebra das barreiras da evolução biológica.

    O homem herda algo mais do que genes, ele herda também as culturas complexas que ele mesmo cria. Naturalmente, existe certo grau de intercomunicação entre as duas partes, mesmo assim todas elas têm suas funções separadas e nenhuma tentativa de explicar a natureza humana pode ser bem-sucedida se não levarmos em conta essas diferenças.

    O desenvolvimento do neocórtex tornou possíveis as funções inter-relacionadas do raciocínio e da linguagem, mas como derivam de uma estrutura posterior, separada, o raciocínio e a linguagem têm pouco poder sobre o sistema límbico do paleocórtex e as emoções que ele governa. Esta pode ser a causa mais provável de nosso elenco desesperado ter migrado do imaginário moral e eticamente correto para um mundo onde a luta pela sobrevivência era mister.

   Considerações finais
   Conflitos extremamente poderosos podem ocorrer quando as pessoas são levadas a cometer atos imorais por uma figura de autoridade, e esses conflitos podem produzir níveis de tensão quase intoleráveis. A obediência é mais provável quando o indivíduo está mais envolvido com a figura de autoridade do que com a vítima e a desobediência quando o indivíduo testemunha o sofrimento da vítima.

   Questões como: Somente situações extremas fazem aflorar nossos instintos mais primitivos? - ou - Será que somos selvagens em nosso cotidiano de forma institucionalizada? Resta refletir sobre estas e outras tantas situações que assolam nosso desenvolvimento social. Quem sabe um dia as pessoas passem de candidatos à categoria efetiva de seres humanos, na verdadeira concepção da palavra.


“Não existe arte mais difícil que a de viver. Porque para as demais artes e ciências há mestres por toda parte. Até os jovens acreditam haver aprendido essas artes de tal maneira que podem ensiná-las a outros: durante a vida inteira a criatura tem que continuar aprendendo a viver e, coisa que surpreenderá ainda mais, tem , durante a vida inteira, que aprender a morrer.”
Sênega