segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Solidão: um sentimento que avassala as emoções

 

      Um resgate da ancestralidade não humana

    O que melhor nos caracteriza, o ódio ou o amor? O que é mais crucial para a sobrevivência, a competição ou a cooperação? Somos mais parecidos com os Chimpanzés ou com os Bonobos? Essas questões são perda de tempo para criaturas bipolares como os seres humanos. Equivalem a perguntar se é melhor medir uma superfície pela largura ou pelo comprimento. Pior ainda é a tentativa de considerar apenas um polo em detrimento do outro. No entanto, é o que o Ocidente tem feito há séculos, retratando o lado humano competitivo como mais autêntico do que o lado social. Mas, se as pessoas fossem tão egoístas como se supõe, como formariam sociedades? A ideia tradicional é a de um contrato entre ancestrais, que decidiram viver juntos “apenas por um pacto, o que é artificial”, nas palavras de Thomas Hobbes. O ser humano é visto como solitário que une as forças relutantemente: espertos o bastante para reunir os recursos, mas desprovidos de verdadeira atração pelos da sua espécie. O antigo provérbio romano Homo Homini Lupus — “O homem é o lobo do homem” — capta essa visão antissocial que ainda hoje inspira o direito, a economia e a ciência política. O problema não é apenas que esse ditado representa erroneamente os seres humanos; ele também insulta um dos mais gregários e leais cooperadores do reino animal. Tão leal, de fato, que nossos ancestrais sabiamente o domesticaram. Os lobos sobrevivem derrubando presas maiores do que eles e fazem isso com trabalho em equipe. Ao voltarem da caça, regurgitam a carne para as mães lactantes, os filhotes e às vezes os velhos e doentes que ficaram para trás. Reforçam a união da matilha uivando em conjunto antes e depois da caçada. A competição existe, mas os lobos não podem se dar ao luxo de permitir que ela siga seu curso. Lealdade e confiança vêm primeiro. Comportamentos que solapam o alicerce da cooperação são reprimidos para impedir a erosão da harmonia, a base da sobrevivência. Um lobo que permitisse a prevalência de seus limitados interesses individuais logo se veria sozinho caçando ratos.

    Os grandes primatas não humanos conhecem essa mesma solidariedade. Um estudo constatou que no Parque Nacional de Tai, na Costa do Marfim, os chimpanzés cuidavam de companheiros feridos por leopardos: lambiam o sangue, removiam cuidadosamente a sujeira e impediam as moscas de chegar perto das feridas. Enxotavam os insetos, protegiam companheiros feridos e se deslocavam devagar quando estes tinham dificuldade para acompanhá-los. Tudo isso faz sentido, pois os chimpanzés vivem em grupo por uma razão, assim como lobos e humanos são animais que vivem em grupo por uma razão. Não seríamos o que somos hoje se nossos ancestrais houvessem sido socialmente arredios. Portanto, é o oposto da tradicional imagem da natureza “rubra nos dentes e garras”, na qual o indivíduo vem primeiro e a sociedade é apenas uma ideia surgida posteriormente. Não se pode colher os benecios da vida em grupo sem contribuir para ela. Todo animal social atinge o próprio equilíbrio entre as duas. Alguns são relativamente desagradáveis, outros relativamente amáveis. Mas até as sociedades mais implacáveis, como a dos babuínos e a dos símios do gênero Macacus, limitam os conflitos internos. Muitos imaginam que, na natureza, fraqueza automaticamente significa eliminação — princípio alardeado como “lei da selva”—, mas na realidade os animais sociais desfrutam de tolerância e apoio consideráveis. Do contrário, por que viver junto? Para exemplificar, num grupo selvagem de símios do gênero Macacus nos Alpes japoneses havia uma fêmea com deficiência congênita chamada Mozu, que quase não conseguia andar e certamente era incapaz de subir em árvores, pois não tinha mãos nem pés. Estrela frequente de documentários japoneses sobre vida selvagem, Mozu era totalmente aceita por seu grupo, tanto assim que teve uma vida longa e criou cinco filhotes. Então não vale a sobrevivência dos mais aptos? Ela vigora em muitos casos também, é claro, mas não há necessidade de caricaturar a vida de nossos parentes como dominada pela desconfiança. Os primatas são imensamente beneficiados pela companhia uns dos outros. Dar-se bem com os outros é uma habilidade crucial, pois as chances de sobreviver fora do grupo, em meio a predadores e vizinhos hostis, são desalentadoras. Os primatas que se veem sozinhos logo defrontam a morte. Isso explica por que gastam um tempo enorme — até 10% do seu dia—a serviço dos laços sociais. Estudos de campo mostraram que a prole das fêmeas de macaco com as melhores relações sociais tem maiores índices de sobrevivência.

       A comunicação que revela os sentimentos

    Criar vínculos é tão fundamental que uma americana com Síndrome de Asperger (síndrome que leva a uma condição semelhante ao Autismo, que se manifesta desde a infância e que leva a pessoa com Asperger a ver, ouvir e sentir o mundo de forma diferente, o que acaba provocando alterações na forma de se relacionar e comunicar com os outros), sempre sofrendo com sua condição em meio aos humanos, encontrou a paz interior depois que começou a tratar de Gorilas em um zoológico. Ou talvez fossem os Gorilas que tratassem dela. Ela, Dawn Prince-Hughes, contou que as pessoas a enervavam com seus olhares e perguntas diretas, querendo respostas imediatas. Já os Gorilas davam-lhe espaço, evitavam contato visual e transmitiam uma calma tranquilizadora. Acima de tudo, eram pacientes. Gorilas são criaturas “oblíquas”: raramente procuram o contato direto, face a face. Além disso, como todos os grandes primatas não humanos, eles não têm ao redor da íris a esclera (túnica externa branca e fibrosa do globo ocular, comumente chamada de branco do olho ou simplesmente branco), que faz do olhar humano quando nos fita intensamente um sinal tão perturbador. O colorido dos nossos olhos acentua a comunicação, mas também impede as sutilezas de comunicação disponíveis aos outros grandes primatas de olhos totalmente escuros. E eles raramente fitam como nós fazemos; olham de relance. Têm excelente visão periférica e acompanham grande parte do que ocorre à sua volta pelo canto dos olhos. Para um humano, é difícil acostumar-se a isso. Muitas vezes se pensa que os primatas não estão prestando atenção, contudo, não tinham deixado escapar nada. O modo como os Gorilas mostravam empatia com Prince-Hughes, “olhando sem olhar e compreendendo sem falar”, como ela explicou, baseava-se em posturas e mímicas corporais, a imemorial linguagem animal da conexão. Congo, o imponente Gorila de dorso prateado da colônia, era o mais sensível e tranquilizador. Ele reagia diretamente aos sinais de aflição. Isso não surpreende, pois, o Gorila macho, apesar de sua reputação de “King Kong” feroz, é um protetor nato. Os horripilantes relatos de ataques de Gorila que os caçadores costumavam contar em casa destinavam-se a impressionar com a bravura dos humanos, e não a dos Gorilas. Mas, de fato, um Gorila macho que ataca está disposto a morrer por sua família. É notável que seja preciso uma pessoa autista — alguém considerado deficiente em habilidades interpessoais — para captar a primazia do vínculo entre os grandes primatas não humanos, assim como o forte parentesco que sentimos com aqueles corpos peludos tão semelhantes ao nosso. Considerando o temperamento dos Gorilas, é possível compreender por que Prince-Hugues foi arrancada de sua solidão por eles, e não por Chimpanzés ou Bonobos. Os Gorilas estão longe de ser extrovertidos como os Chimpanzés e Bonobos.

    Na nossa linhagem, vínculos e apoio são o estado natural, em um grau capaz de ser percebido até por um portador de autismo. Ou talvez precisamente por uma pessoa assim, considerando que nossa obsessão pela palavra falada nos impede de avaliar plenamente as pistas não verbais como posturas, gestos, expressões e tom de voz. Sem indicações corporais, nossa comunicação perde seu conteúdo emocional e se torna mera informação técnica. Obteríamos o mesmo efeito usando cartões que lampejam mensagens de “eu te amo” ou “estou zangado”. É fato bem conhecido que as pessoas cujo rosto perde a expressividade em razão de algum distúrbio neurológico, e por isso não conseguem demonstrar sintonia com as emoções dos outros (sorrindo ou franzindo o rosto, por exemplo), mergulham em arrasadora solidão. Nossa espécie não vê graça em viver sem a linguagem corporal que nos aglutina. As hipóteses sobre nossas origens que negligenciam essa profunda conexão retratando-nos como solitários que se uniram relutantemente ignoram a evolução dos primatas. Pertencemos a uma categoria de animais conhecida entre os zoólogos como “obrigatoriamente gregários”, ou seja, não temos alternativa senão viver juntos. É por isso que o medo do ostracismo espreita nos recônditos de toda mente humana: ser expulso é a pior coisa que pode nos acontecer. Assim era nos tempos bíblicos, assim continua a ser hoje. A evolução incutiu a necessidade de pertencer a um grupo e sentir-se aceito. Somos essencialmente sociais.