sexta-feira, 17 de abril de 2020

TRANSFERÊNCIA: UM RESGATE DO PASSADO


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Por: Ms. Heitor Jorge Lau
Formando em Psicanálise
Mestre em Educação
Pós-graduado em Gestão de Pessoas
Bacharel em Comunicação Social
           
            As ponderações a seguir não intentam obter o título de verdade absoluta ou até mesmo parcial. Elas visam instigar a mente da comunidade psicanalítica através de provocações e concepções diferenciadas. Com o objetivo de não repetir considerações sobre os conteúdos abordados na redação anterior - que expressaram ideias e reflexões sobre Resistência -, esta, irá discorrer somente sobre Transferência. Através de uma perspectiva otimista, este processo que acontece no decorrer das sessões da psicoterapia, será compreendido como favorável, indispensável, tanto para o Analista quanto paciente. Para o Psicoterapeuta a Transferência servirá como aporte para a observação e interpretação das Resistências e, consequentemente, dos seus respectivos malfadados prenunciadores inconscientes. Para o paciente a Transferência servirá como indicador (desde que o Psicanalista consiga faze-lo perceber como tal) de que ele está inconscientemente resistindo a terapia, tentando impedir o acesso aos conteúdos recalcados que lhe importunam. Enfim, Transferência, um processo que promove no aparelho psíquico do ser humano o reviver das representações que foram aprisionadas nos confins do inconsciente por intermédio do Terapeuta.

            A interpretação do inconsciente através da Transferência
            Seria coerente e possível afirmar que a Transferência não consubstancia somente simbologia das representações inconscientes do paciente, traduzem também, a forma e disposição da estrutura do aparelho psíquico – como ele se situa no momento e de que forma reage frente ao mundo presente e passado. Desta manifestação emerge a possibilidade de esclarecer o ‘porquê’, ‘o quê’ e ‘como’ o paciente está se autopreservando. Como afirmou Goethe: “[...] a parte não permite reconhecer o todo, nem o conjunto deve ser reconhecido nas partes [...]”. Antes da Psicoterapia pretender curar o paciente de suas próprias emoções, propõe descobrir, conhecer, revelar a lógica do inconsciente por intermédio dos “porquês” e “comos”. No fundo, o paciente precisa compreender que as emoções inconvenientes não irão evaporar, elas serão moderadas por intermédio da inteligência emocional, ou seja, através do equilíbrio da razão e emoção. Contudo, aprender a sustentar tal verticalidade exige renúncia de hábitos e declínio de pragmatismos autoconstituídos e perpetuados. Enquanto o equilíbrio não for suficiente, Transferências Positivas, Negativas ou ambas, surgirão.

            Transferência Positiva - Negativa
            A definição conceitual de Transferência Positiva e Negativa distintamente formatada é clara: se positiva, resultam em sentimentos de gostar, admirar, confiar e seus respectivos derivados; se negativa, desgostar, menosprezar, suspeitar, .... Existe uma certa correlação entre tais reações e o sentimento de ‘ser aceito’, ‘ser reconhecido’. Alguém gosta, admira ou confia em outrem diante do reconhecimento e aceitação da sua originalidade, do seu perfil. De idêntica forma desgosta, menospreza ou suspeita se perceber renúncia e desaprovação. Por conseguinte, os sentimentos transferenciais positivos ou negativos parecem se originar conforme a aceitação ou rejeição, reconhecimento ou renúncia, expressões advindas de qualquer indivíduo que manifestar alguma destas comoções, seja ele terapeuta ou não.

            Em vista disso, o insucesso de uma investida num relacionamento (desprezo = insucesso = transferência), o fracasso no exercício de uma determinada atividade profissional (renúncia = fracasso = transferência), a frustração de uma tentativa malsucedida de inserção num grupo social (desaprovação = frustração = transferência), ..., não seriam consequências da rejeição e renúncia? Por conseguinte, diante de sentimentos históricos desta natureza, o Aparelho Psíquico fica vulnerável ao ponto de criar uma Transferência oportunista. Positiva se perceber no Analista uma atmosfera de aceitação e reconhecimento (compreensão) por rejeições e renúncias do passado. Negativa na medida em que o paciente reconheça no Analista uma similitude com um indivíduo ou pessoas que marcaram duramente a psique enfraquecida no passado.

            Parece sensato compreender que a Transferência, seja ela Positiva ou Negativa, detém a sua gênese na história do paciente, todavia, o seu gatilho encontra-se no presente. A conceituação leva a crer que um trauma do passado pode gerar a Transferência Positiva se o paciente sentir aceitação por parte do Analista; Negativa, ao perceber rejeição. Portanto, o mesmo objeto pode produzir esta ou aquela manifestação, dependerá (quase que exclusivamente) da reação ou Contratransferência do Psicanalista. A Transferência se desenvolve a partir  de “alguma particularidade real habilmente aproveitada da pessoa ou das circunstâncias[1]” do Analista. Não seria tampouco desvairado pensar que o Psicoterapeuta possa “seduzir” ou induzir o paciente a incorporar a Transferência Positiva. Obviamente, na medida que o psicodoente[2] imagina qualquer reação ou semelhança no Psicanalista com o seu passado tortuoso, seja qual for a tentativa de persuasão, ela enfrentará maior resistência. Também, algum sentimento de intenso regozijo do passado pode motivar o paciente a deseja-lo, novamente, no presente. Momentos de felicidade vivenciados com o cônjuge falecido, por exemplo. O ente finado não retornará à vida, no entanto, existe a possibilidade de tentar recriar momentos aprazíveis similares.  É relevante intuir que a motivação para o trauma e a felicidade é subjetiva e estreitamente pessoal, ou seja, aquilo que perturba ou alegra uma pessoa pode sequer chamar a atenção de outra.

            A imaginação que vivifica a Transferência
            Freud exemplifica em ‘Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos’ (1901-1905), Volume VII, p. 28, com a situação de uma mulher que contrai matrimônio com um sujeito pouco atencioso, o qual promove nela sofrimento e sentimentos de desvalorização. Ela, ao submeter-se a este tratamento indesejado, acionara no Aparelho Psíquico a construção de uma ponte de comunicação com as vivências desagradáveis do passado. Gradualmente e inconscientemente, momentos em que os pais dividiam o amor, igualitariamente entre os demais filhos, emergem das memórias recalcadas, revivendo assim, episódios angustiantes e de menosprezo – segundo a sua mente. Por conseguinte, a maneira de captar a atenção do cônjuge (um aceno do Aparelho Psíquico) era clamar por atenção através da doença.

            Diante desta narrativa fica evidente os três parâmetros de Etchegoyen[3], realidade e fantasia, consciente e inconsciente, presente e passado, utilizados por Sigmund Freud para definir a Transferência como função aliada nas sessões de Psicoterapia. É possível utilizar a ilustração da seguinte forma para reflexão. O presente e passado se configuram entre: - presente, transferência direcionada ao Analista; - passado longínquo, no dividir o amor pelos pais; - passado aproximado, menosprezo do marido. O passado se subdividiu, mas se fundiu em um único sentir. Para ilustrar e enriquecer a reflexão será considerada uma possível manifestação de Transferência Positiva. Ou seja, o Psicanalista teria expressado aceitação e reconhecimento pelo perfil da paciente (não apenas pelo sofrimento) enquanto ser humano capaz de realizações saudáveis e independentes. 

            A mente da personagem ora revive sentimentos do passado longínquo inconsciente (com os pais e irmãos), ora do passado aproximado consciente (com o cônjuge), ora do presente consciente (com o Analista) – o passado se subdividiu novamente com a intervenção dos processos primários e secundários. Assim, aflora um transitar pela mente consciente e inconsciente. Onde entra a realidade e fantasia? O real e o imaginário, intensamente presentes no estado de vigilância, acabam por confundir a mente consciente, não somente por comportar representações simbólicas, mas, talvez por uma especificidade do Ic: por ser a região de intensa caracterização do comportamento infantil. As crianças, sabidamente, têm dificuldades em discernir e compreender as distinções entre aquilo que é real e fantasioso. Logo, a mente infante (mesmo inconsciente), igualmente, não teria condições de avaliar ou estremar uma atitude de compartilhamento de amor de outra que visa favorecimento ou preferência.

            No final das contas qualquer ser humano, seja ele um paciente acometido ou não de alguma psiconeurose, percebe as coisas como um espectro dos seus desejos pessoais. Logo, seria coerente entender que boa parte de tudo que o ser humano enxerga detém uma carga de deturpação da realidade, ou seja, ele vê aquilo que deseja (uma projeção de si) e não exatamente o que é literalmente. Portanto, para que a Transferência aconteça faz-se necessária a identificação com o Psicanalista, mais precisamente com a aceitação ou rejeição das representações simbólicas que o paciente articula. Levando-se em conta que a Transferência é inevitável e incontornável e que as sessões a revelam ao invés de cria-la, resta ao Psicoterapeuta não resistir, por outro lado, utilizá-la como vantagem psicanalítica em benefício da terapia e favorável ao paciente.

            O enfrentamento das Neuroses na raiz
            “O ser humano aprendeu a atuar no teatro social com brilho, mas não no teatro psíquico, onde é preciso filtrar estímulos estressantes, gerir seus pensamentos, proteger sua emoção. No dia-a-dia, a mente pensa tolices, a emoção dá créditos a elas e o eu ingênuo [...] paga a conta por não saber filtrar os pensamentos[4]”. É humanamente impossível voltar no tempo ou tampouco recuá-lo, em contrapartida, é possível sim, compreender o passado a fim de amenizar o status quo do presente e evitar um futuro angustiante. A lucidez não evita a estupidez súbita e muito menos a tranquilidade isenta do desespero inesperado, porém, momentos de ansiedade e indelicadeza quando encarados com uma boa dose de autoestima não germinam danos tão intensos e duradouros.

            Este termo: autoestima. Qual seria o peso deste elemento sensório na psique do paciente? Como moldar uma boa autoestima? Quem seria o responsável pela formação de uma autoestima robusta? Antes mesmo de o ser humano ser inteiramente responsável por sua autoestima, os seus cuidadores (na infância, pré-adolescência e adolescência) serão inteiramente responsáveis por direcionar ou indicar o caminho do autoconhecimento. Nada adianta falar sobre autoestima sem a base fundamental do autoconhecimento, capaz de desenvolver o self material, self social e self psicológico do sujeito. Cada um deles, constituídos a partir de aquisições materiais (bens), interações sociais (aceitação e/ou rejeição) e faculdades psíquicas (arquitetada, construída e apropriada).

            Investigar, descobrir e reconhecer potenciais positivos e negativos pessoais é a base do autoconhecimento. Apoderar-se das potencialidades próprias e aprimora-las, substitui-las, ignora-las, ..., é o princípio da construção da boa autoestima. É sensato conjecturar que as Neuroses podem frutificar adiante da autoestima debilitada, mal formatada durante a formação da personalidade. Cury (2008) alertara sobre as quatro armadilhas da mente que emergem em grau e intensidade variadas face as fragilidades da psique: o conformismo; o coitadismo; o medo de reconhecer os erros; e, o medo de correr riscos.

            O caso anteriormente descrito da esposa angustiada pela ausência de valorização do marido ergue a seguinte interrogação: por que ela se conforma com o descaso e assume uma postura de coitada, obscurecendo a possiblidade de reconhecer uma parcela de erro na situação, talvez, impedindo a busca por solução pelo medo de correr algum risco? Uma possibilidade seria a sua autoestima estar enfermiça, diluída em pensamentos repletos de culpas imaginárias e desejos insatisfeitos. Dentre tantas dúvidas e questionamentos uma certeza resplandece: algo inconsciente está ensombrando a realidade dela; algo inconsciente está criando caminhos e artifícios para evitar o confronto de consciências; algo inconsciente está represando a vontade e iniciativa de seguir em frente. Muitas perguntas, porém, nenhuma resposta instantaneamente manifesta.

            Considerações finais
            Psicotratar um paciente e modificar as sensações oriundas de representações do passado está longe de ser comparado com o escritor que apaga o recente parágrafo redigido para em seguida reescreve-lo. O cenário teatral do Aparelho Psíquico e as suas respectivas manifestações simbólicas é forjado por sentimentos fóbicos, traumas, compulsões, depressões, angustias, ..., por uma variedade conhecida e ainda desconhecida de psiconeuroses. Notoriamente, deletar traumas e cicatrizes da psique a fim de repaginar o inconsciente para regenerar o consciente presente é utopia. Entretanto, a correta condução das técnicas psicoterápicas pode abrandar a psique com uma nova forma de ser, responder, perceber e apreciar a vida presente.

            Em síntese, um Psicanalista deveria percorrer e transitar por áreas do inconsciente perturbado, identificar as psiconeuroses, observar em qual período da vida e de que forma elas acometeram o paciente. Por fim, tentar reeditar os episódios angustiantes do inconsciente e edificar episódios paralelos saudáveis em torno dos perceptivelmente traumáticos. Quem dera, o passo seguinte ou final, fosse ensinar o paciente a se tornar dono dos seus pensamentos, sentimentos e reações emocionais. Quem dera, conseguir criar na mente do paciente um Eu soberano, majestoso, predominante, soberbo diante dos pensamentos tempestuosos que margeiam a consciência. Tudo isto... a partir das Transferências!

“Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa”. Freud.




[1] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Volume VII. p. 72.
[2] Termo do autor: paciente acometido de alguma psiconeurose.
[3] ETCHEGOYEN, Ricardo Horacio. Médico, psiquiatra, psicanalista, autor de numerosos trabalhos versando sobre diferentes temas da técnica psicanalítica e do clássico livro Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Profundo conhecedor da obra de Freud, Klein e pós-kleinianos, estudou por muitos anos a teoria de Lacan e os desenvolvimentos da epistemologia e suas aplicações à psicanálise.
[4] CURY, Augusto. O código da inteligência: a formação de mentes brilhantes e a busca pela excelência emocional e profissional. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.