Por: Ms. Heitor Jorge Lau
Formando em Psicanálise
Mestre em Educação
Pós-graduado em Gestão de Pessoas
Bacharel em Comunicação Social
As ponderações a seguir não intentam
obter o título de verdade absoluta ou até mesmo parcial. Elas visam instigar a
mente da comunidade psicanalítica através de provocações e concepções
diferenciadas. Com o objetivo de não repetir considerações sobre os conteúdos
abordados na redação anterior - que expressaram ideias e reflexões sobre
Resistência -, esta, irá discorrer somente sobre Transferência. Através de uma
perspectiva otimista, este processo que acontece no decorrer das sessões da
psicoterapia, será compreendido como favorável, indispensável, tanto para o
Analista quanto paciente. Para o Psicoterapeuta a Transferência servirá como
aporte para a observação e interpretação das Resistências e, consequentemente, dos
seus respectivos malfadados prenunciadores inconscientes. Para o paciente a
Transferência servirá como indicador (desde que o Psicanalista consiga faze-lo
perceber como tal) de que ele está inconscientemente resistindo a terapia,
tentando impedir o acesso aos conteúdos recalcados que lhe importunam. Enfim,
Transferência, um processo que promove no aparelho psíquico do ser humano o reviver
das representações que foram aprisionadas nos confins do inconsciente por
intermédio do Terapeuta.
A
interpretação do inconsciente através da Transferência
Seria coerente e possível afirmar
que a Transferência não consubstancia somente simbologia das representações inconscientes
do paciente, traduzem também, a forma e disposição da estrutura do aparelho psíquico
– como ele se situa no momento e de que forma reage frente ao mundo presente e
passado. Desta manifestação emerge a possibilidade de esclarecer o ‘porquê’, ‘o
quê’ e ‘como’ o paciente está se autopreservando. Como afirmou Goethe: “[...] a
parte não permite reconhecer o todo, nem o conjunto deve ser reconhecido nas
partes [...]”. Antes da Psicoterapia pretender curar o paciente de suas
próprias emoções, propõe descobrir, conhecer, revelar a lógica do inconsciente
por intermédio dos “porquês” e “comos”. No fundo, o paciente precisa
compreender que as emoções inconvenientes não irão evaporar, elas serão
moderadas por intermédio da inteligência emocional, ou seja, através do equilíbrio
da razão e emoção. Contudo, aprender a sustentar tal verticalidade exige
renúncia de hábitos e declínio de pragmatismos autoconstituídos e perpetuados.
Enquanto o equilíbrio não for suficiente, Transferências Positivas, Negativas
ou ambas, surgirão.
Transferência
Positiva - Negativa
A definição conceitual de
Transferência Positiva e Negativa distintamente formatada é clara: se positiva,
resultam em sentimentos de gostar, admirar, confiar e seus respectivos
derivados; se negativa, desgostar, menosprezar, suspeitar, .... Existe uma
certa correlação entre tais reações e o sentimento de ‘ser aceito’, ‘ser
reconhecido’. Alguém gosta, admira ou confia em outrem diante do reconhecimento
e aceitação da sua originalidade, do seu perfil. De idêntica forma desgosta,
menospreza ou suspeita se perceber renúncia e desaprovação. Por conseguinte, os
sentimentos transferenciais positivos ou negativos parecem se originar conforme
a aceitação ou rejeição, reconhecimento
ou renúncia, expressões advindas de
qualquer indivíduo que manifestar alguma destas comoções, seja ele terapeuta ou
não.
Em vista disso, o insucesso de uma
investida num relacionamento (desprezo = insucesso = transferência), o fracasso
no exercício de uma determinada atividade profissional (renúncia = fracasso =
transferência), a frustração de uma tentativa malsucedida de inserção num grupo
social (desaprovação = frustração = transferência), ..., não seriam consequências
da rejeição e renúncia? Por conseguinte, diante de sentimentos históricos desta
natureza, o Aparelho Psíquico fica vulnerável ao ponto de criar uma
Transferência oportunista. Positiva se perceber no Analista uma atmosfera de
aceitação e reconhecimento (compreensão) por rejeições e renúncias do passado. Negativa
na medida em que o paciente reconheça no Analista uma similitude com um
indivíduo ou pessoas que marcaram duramente a psique enfraquecida no passado.
Parece sensato compreender que a
Transferência, seja ela Positiva ou Negativa, detém a sua gênese na história do
paciente, todavia, o seu gatilho encontra-se no presente. A conceituação leva a
crer que um trauma do passado pode gerar a Transferência Positiva se o paciente
sentir aceitação por parte do Analista; Negativa, ao perceber rejeição.
Portanto, o mesmo objeto pode produzir esta ou aquela manifestação, dependerá (quase
que exclusivamente) da reação ou Contratransferência do Psicanalista. A
Transferência se desenvolve a partir de “alguma
particularidade real habilmente aproveitada da pessoa ou das circunstâncias[1]” do Analista. Não seria tampouco
desvairado pensar que o Psicoterapeuta possa “seduzir” ou induzir o paciente a incorporar a Transferência Positiva. Obviamente,
na medida que o psicodoente[2] imagina qualquer reação ou
semelhança no Psicanalista com o seu passado tortuoso, seja qual for a
tentativa de persuasão, ela enfrentará maior resistência. Também, algum
sentimento de intenso regozijo do passado pode motivar o paciente a deseja-lo,
novamente, no presente. Momentos de felicidade vivenciados com o cônjuge
falecido, por exemplo. O ente finado não retornará à vida, no entanto, existe a
possibilidade de tentar recriar momentos aprazíveis similares. É relevante intuir que a motivação para o
trauma e a felicidade é subjetiva e estreitamente pessoal, ou seja, aquilo que
perturba ou alegra uma pessoa pode sequer chamar a atenção de outra.
A
imaginação que vivifica a Transferência
Freud exemplifica em ‘Um caso de
histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos’ (1901-1905),
Volume VII, p. 28, com a situação de uma mulher que contrai matrimônio com um
sujeito pouco atencioso, o qual promove nela sofrimento e sentimentos de
desvalorização. Ela, ao submeter-se a este tratamento indesejado, acionara no
Aparelho Psíquico a construção de uma ponte de comunicação com as vivências desagradáveis
do passado. Gradualmente e inconscientemente, momentos em que os pais dividiam
o amor, igualitariamente entre os demais filhos, emergem das memórias
recalcadas, revivendo assim, episódios angustiantes e de menosprezo – segundo a
sua mente. Por conseguinte, a maneira de captar a atenção do cônjuge (um aceno
do Aparelho Psíquico) era clamar por atenção através da doença.
Diante desta narrativa fica evidente
os três parâmetros de Etchegoyen[3], realidade e fantasia, consciente e inconsciente, presente e passado,
utilizados por Sigmund Freud para definir a Transferência como função aliada nas
sessões de Psicoterapia. É possível utilizar a ilustração da seguinte forma
para reflexão. O presente e
passado se configuram entre: - presente, transferência direcionada
ao Analista; - passado longínquo, no dividir o amor pelos pais; - passado
aproximado, menosprezo do marido. O passado se subdividiu, mas se fundiu em
um único sentir. Para ilustrar e enriquecer a reflexão será considerada uma possível
manifestação de Transferência Positiva. Ou seja, o Psicanalista teria expressado
aceitação e reconhecimento pelo perfil da paciente (não apenas pelo sofrimento)
enquanto ser humano capaz de realizações saudáveis e independentes.
A mente da personagem ora revive
sentimentos do passado longínquo inconsciente (com os pais e irmãos), ora do
passado aproximado consciente (com o cônjuge), ora do presente consciente (com
o Analista) – o passado se subdividiu novamente com a intervenção dos processos
primários e secundários. Assim, aflora um transitar pela mente consciente e
inconsciente. Onde entra a realidade e fantasia? O real e o imaginário, intensamente
presentes no estado de vigilância, acabam por confundir a mente consciente, não
somente por comportar representações simbólicas, mas, talvez por uma especificidade
do Ic: por ser a região de intensa caracterização do comportamento infantil. As
crianças, sabidamente, têm dificuldades em discernir e compreender as
distinções entre aquilo que é real e fantasioso. Logo, a mente infante (mesmo
inconsciente), igualmente, não teria condições de avaliar ou estremar uma
atitude de compartilhamento de amor de outra que visa favorecimento ou preferência.
No final das contas qualquer ser
humano, seja ele um paciente acometido ou não de alguma psiconeurose, percebe
as coisas como um espectro dos seus desejos pessoais. Logo, seria coerente entender
que boa parte de tudo que o ser humano enxerga detém uma carga de deturpação da
realidade, ou seja, ele vê aquilo que deseja (uma projeção de si) e não
exatamente o que é literalmente. Portanto, para que a Transferência aconteça
faz-se necessária a identificação com o Psicanalista, mais precisamente com a aceitação
ou rejeição das representações simbólicas que o paciente articula. Levando-se
em conta que a Transferência é inevitável e incontornável e que as sessões a
revelam ao invés de cria-la, resta ao Psicoterapeuta não resistir, por outro
lado, utilizá-la como vantagem psicanalítica em benefício da terapia e favorável
ao paciente.
O
enfrentamento das Neuroses na raiz
“O ser humano aprendeu a atuar no
teatro social com brilho, mas não no teatro psíquico, onde é preciso filtrar
estímulos estressantes, gerir seus pensamentos, proteger sua emoção. No
dia-a-dia, a mente pensa tolices, a emoção dá créditos a elas e o eu ingênuo [...] paga a conta por não
saber filtrar os pensamentos[4]”. É humanamente impossível
voltar no tempo ou tampouco recuá-lo, em contrapartida, é possível sim, compreender
o passado a fim de amenizar o status quo
do presente e evitar um futuro angustiante. A lucidez não evita a estupidez
súbita e muito menos a tranquilidade isenta do desespero inesperado, porém,
momentos de ansiedade e indelicadeza quando encarados com uma boa dose de autoestima não germinam danos tão
intensos e duradouros.
Este termo: autoestima. Qual seria o
peso deste elemento sensório na psique do paciente? Como moldar uma boa
autoestima? Quem seria o responsável pela formação de uma autoestima robusta? Antes
mesmo de o ser humano ser inteiramente responsável por sua autoestima, os seus
cuidadores (na infância, pré-adolescência e adolescência) serão inteiramente
responsáveis por direcionar ou indicar o caminho do autoconhecimento. Nada
adianta falar sobre autoestima sem a base fundamental do autoconhecimento,
capaz de desenvolver o self material,
self social e self psicológico do sujeito. Cada um deles, constituídos a partir
de aquisições materiais (bens), interações sociais (aceitação e/ou rejeição) e
faculdades psíquicas (arquitetada, construída e apropriada).
Investigar, descobrir e reconhecer potenciais
positivos e negativos pessoais é a base do autoconhecimento. Apoderar-se das
potencialidades próprias e aprimora-las, substitui-las, ignora-las, ..., é o
princípio da construção da boa autoestima. É sensato conjecturar que as
Neuroses podem frutificar adiante da autoestima debilitada, mal formatada
durante a formação da personalidade. Cury (2008) alertara sobre as quatro
armadilhas da mente que emergem em grau e intensidade variadas face as
fragilidades da psique: o conformismo; o coitadismo; o medo de reconhecer os
erros; e, o medo de correr riscos.
O caso anteriormente descrito da
esposa angustiada pela ausência de valorização do marido ergue a seguinte interrogação:
por que ela se conforma com o
descaso e assume uma postura de coitada,
obscurecendo a possiblidade de reconhecer uma
parcela de erro na situação, talvez, impedindo a busca por solução pelo medo de correr algum risco? Uma
possibilidade seria a sua autoestima estar enfermiça, diluída em pensamentos repletos
de culpas imaginárias e desejos insatisfeitos. Dentre tantas dúvidas e
questionamentos uma certeza resplandece: algo inconsciente está ensombrando a
realidade dela; algo inconsciente está criando caminhos e artifícios para
evitar o confronto de consciências; algo inconsciente está represando a vontade
e iniciativa de seguir em frente. Muitas perguntas, porém, nenhuma resposta
instantaneamente manifesta.
Considerações
finais
Psicotratar um paciente e modificar as
sensações oriundas de representações do passado está longe de ser comparado com
o escritor que apaga o recente parágrafo redigido para em seguida reescreve-lo.
O cenário teatral do Aparelho Psíquico e as suas respectivas manifestações
simbólicas é forjado por sentimentos fóbicos, traumas, compulsões, depressões,
angustias, ..., por uma variedade conhecida e ainda desconhecida de psiconeuroses.
Notoriamente, deletar traumas e cicatrizes da psique a fim de repaginar o
inconsciente para regenerar o consciente presente é utopia. Entretanto, a
correta condução das técnicas psicoterápicas pode abrandar a psique com uma
nova forma de ser, responder, perceber e apreciar a vida presente.
Em síntese, um Psicanalista deveria
percorrer e transitar por áreas do inconsciente perturbado, identificar as
psiconeuroses, observar em qual período da vida e de que forma elas acometeram
o paciente. Por fim, tentar reeditar os episódios angustiantes do inconsciente
e edificar episódios paralelos saudáveis em torno dos perceptivelmente traumáticos.
Quem dera, o passo seguinte ou final, fosse ensinar o paciente a se tornar dono
dos seus pensamentos, sentimentos e reações emocionais. Quem dera, conseguir
criar na mente do paciente um Eu soberano, majestoso, predominante, soberbo
diante dos pensamentos tempestuosos que margeiam a consciência. Tudo isto... a
partir das Transferências!
“Qual
a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa”. Freud.
[1]
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros
trabalhos (1901-1905). Volume VII. p. 72.
[2] Termo
do autor: paciente acometido de alguma psiconeurose.
[3] ETCHEGOYEN,
Ricardo Horacio. Médico, psiquiatra, psicanalista, autor de numerosos trabalhos
versando sobre diferentes temas da técnica psicanalítica e do clássico livro
Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Profundo conhecedor da obra de Freud,
Klein e pós-kleinianos, estudou por muitos anos a teoria de Lacan e os
desenvolvimentos da epistemologia e suas aplicações à psicanálise.
[4]
CURY, Augusto. O código da inteligência: a formação de mentes brilhantes e a
busca pela excelência emocional e profissional. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.