quarta-feira, 4 de agosto de 2021

A CONSTRUÇÃO DA PSIQUE HUMANA ATRAVÉS DA VERDADE

 

    A organização da biografia humana tem um propósito fundamental, que é o de que a verdade se manifeste (a princípio). Por isso é tão importante separar o joio do trigo, e rever o que é discurso enganoso e o que é a verdade. A verdade tem de estar associada à realidade e costuma coincidir com o que o coração dita. Para que uma civilização consiga se organizar com base na dominação do mais forte sobre o mais fraco, alguém precisa se apropriar da verdade. Ao longo da história, foram inumeráveis as guerras entre os seres humanos para impor sobre os outros uma maneira de pensar e organizar a vida. As discussões acaloradas e as lutas sangrentas com o único objetivo de impor as crenças ou razões não conheceram limites. Este é um ponto fundamental no pensamento: não tentar ter razão. Não interessa ter razão. Somente interessa compreender a natureza da conduta humana para acompanhar cada indivíduo a compreender-se cada vez mais.

    Na abordagem das diferentes biografias humanas, além de desvendar os “discursos enganados” e de organizar as interpretações equivocadas dos fatos ocorridos no seio da sociedade, se constata que é comum que se considere as pessoas como não aptas para acessar a verdade dos fatos. Os enganos, os segredos e as mentiras são comuns na maioria das histórias de vida. As crônicas estão atravessadas por falácias e coisas ocultas de todo tipo. Fatos negados, escondidos, encobertos, caluniados e adulterados. Regra: quem tem informação e não a compartilha... detém o poder. Nas guerras, o mais valioso para a vitória é a obtenção de dados que o adversário não tem.

    Nas relações pessoais, acontece o mesmo. Nas civilizações baseadas na dominação, a melhor maneira de instaurar o poder é começando pela dominação das crianças. Por isso é tão comum supor que elas não devem saber o que acontece. E mais, o melhor é deixá-las isoladas de qualquer tipo de informação. Supor que as crianças não compreendem, ou que não têm por que saber das coisas dos adultos, é um costume arraigado. Entretanto, “coisas de adultos” costumam ser as situações que eles mesmos experimentam cotidianamente, quer dizer, coisas que lhes são incumbidas. Deixar o outro sem acesso ao que acontece equivale a tê-lo como prisioneiro. Porquê dessa forma, o outro não pode tomar decisões com relação a nada. Por isso, é evidente que há um propósito específico cada vez que alguém decide que o outro não deve ficar sabendo de uma determinada realidade.

    É frequente a suposição dos adultos de que as crianças não compreendem situações complexas. Inclusive pensam que explicar-lhes que o avô está a ponto de morrer (por exemplo) seria “trazer-lhes um problema” e estariam “estragando a infância feliz” da criança. Entretanto, esse hábito tão enraizado, que até parece ter boas intenções, no fundo, não tem. Trata-se de um fenômeno de “fusão emocional”. As crianças vivem em estado de fusão, quer dizer, respiram dentro do mesmo território emocional dos adultos, no mínimo. Na verdade, todos estão ligados, mas as crianças têm a “sorte” de ainda não terem construído obstáculos ou couraças que bloqueiam a certeza com relação àquilo que os outros sentem.

    Isto significa que a criança experimenta, percebe, sabe, respira, sente o cheiro, intui e flui dentro desse território que lhe é próprio. O território dos outros é o mesmo. Não há nada que o adulto sinta que a criança não sinta. É como colocar dois indivíduos em uma pequena piscina com água quente. Ambos vão sentir o calor. É impossível que um dos dois não sinta nada. A fusão emocional é assim. A criança está dentro da mesma piscina que os outros, consequentemente, sente a mesma temperatura que os outros.

    O fenômeno da “fusão emocional” precisa ser compreendido, caso contrário, não é impossível abordar algo relacionado à organização psíquica dos seres humanos. É absurdo supor que não se pode dizer para uma criança que seu ente querido está morrendo. Em primeiro lugar porque elas já sabem. E, em segundo lugar, porque, quando elas percebem os disfarces envolvidos na situação, irão sofrer. Por quê? Simples... a realidade foi deturpando. Seria o mesmo que afirmar não acontece algo que está acontecendo. Voltando ao exemplo anterior, é como se a criança sentisse a água quente e o outro insistisse em dizer que a água está gelada. Não somente se instala o engano, como também o princípio da insanidade, que não passa de uma distância importante entre o discurso e a realidade. Essa criança crescerá com a certeza de que toda água quente, na verdade, provoca frio.

    O engano tem diversas “medidas”. Vai desde as “mentirinhas amenas” até um tamanho de deturpação que não pode ser tolerado pela psique do indivíduo. Neste caso, acontece a desorganização psíquica. Os estragos das deturpações da realidade estão inteiramente relacionados com a distância entre a palavra e realidade. Nenhuma criança nasce louca. Ao contrário, a loucura é uma maneira possível e saudável de enfrentar a mentira. Os adultos se justificam entre eles, encontrando “exceções” com relação às realidades “muito complexas” que, supõem, não se podem explicar a uma criança porque ela nunca a compreenderia. Falso. Uma criança não é emocionalmente menos inteligente do que um adulto. Inclusive, seria possível afirmar o contrário. As crianças constroem menos muralhas entre a identidade e o si mesmo, apenas porque têm menos anos de vida e não tiveram tempo suficiente para se distanciarem de seu ser interior. Logo, elas estarão em contato espontâneo com suas realidades emocionais. Esse é o ponto de encontro entre a certeza interna de uma criança e a explicação simples que um adulto pode lhe oferecer para que palavra e realidade coincidam.  

    Lamentavelmente, porém, a infância está repleta de enganos. Não só aqueles acontecimentos que os outros decidiram ocultar, mas, sobretudo, pelo acúmulo de pontos de vista parciais, pelas crenças e os preconceitos sustentados... através de uma única lente por meio da qual é possível acessar o entendimento. Quase todas sociedades estão atravessadas por uma multiplicidade de segredos e mentiras, que minaram a inteligência da raça humana, a capacidade de adaptação e de uma percepção razoável e coincidente dos fatos. Na tentativa de estabelecer uma história, seja ela familiar ou não, é muito provável que se encontre uma infinidade de contradições, já que muitos relatos pertencentes à história e contexto oficial não fazem o menor sentido.

    É preciso avalizar com ênfase e determinação o discurso oficial de todo discurso, assumindo suas contradições e mentiras, porque a história crua não se sustenta por si mesma. Interessante perceber que muitos preferem trilhar caminhos comuns e de crenças estúpidas desde que não saiam do conforto habitual.

    A questão mais nevrálgica disto tudo é: o que fazer com as contradições? O problema é que, se é preciso e salutar para a psique humana que se revise a autenticidade daquilo que foi dito pelos antepassados, ou pelo próprio registro de repressão e aquele que foi exercido sobre aqueles que cruzaram o caminho, também será necessário desmanchar várias cadeias de suposições éticas e morais. E, no final das contas o incomodo será tamanho que a decisão será de que o melhor é nada colocar em dúvida. É muito frequente nos processos de construção das biografias humanas que o ser humano fique enfurecido quando lhe é apresentada as evidências de um cenário provável a partir de algumas suposições do discurso oficial. Enfim, vale a pena discutir? Ou, simplesmente observar?

    A realidade se manifestará, mais cedo ou mais tarde... isto é inevitável. Como dizia um antigo ditado: a mentira tem pernas curtas (ainda que se possa viver imerso em situações mentirosas durante gerações). Acontece que as dissimulações continuarão aumentando de tal modo que aqueles que detenham o poder possam viver com certa liberdade de ação. Com esses “sistemas”, respira-se, vive-se e se aprende cotidianamente. Um exemplo: se um trabalhador faz um acordo (“por baixo dos panos”) de demissão com o ex-empregador para alçar mão do seguro desemprego (indevidamente), consequentemente, aprende-se a viver sob esta regra, que oferece benefício imediato.

    Quando a realidade é constantemente deturpada aprende-se que é possível acomodar a realidade ao bel-prazer. Para isso, faz-se necessário treinar, mentir, manipular, enganar, seduzir e iludir para ajeitar as situações para benefício próprio. Esse funcionamento é muito mais frequente do que se imagina. Justamente, no processo das biografias humanas, o trabalho mais difícil é o desmantelamento das crenças e discursos arraigados e repetidos de modo automático. As crianças são vítimas habituais dos enganos, sobretudo porque os adultos têm a crença enraizada de que elas não devem saber o que acontece. Logo, o grau de desconexão e de irrealidade com o qual se aprende a viver não deveria ser surpresa para ninguém.

    Crescer e desenvolver-se em um sistema de mentiras e segredos deixa o ser humano em um estado de abandono absoluto porque há poucas referências confiáveis. Portanto, não só as outras pessoas não são confiáveis, mas a desconfiança recai sobre si próprio. As percepções pessoais, menos ainda. As emoções, tampouco.

    Quando um indivíduo se vê em meio a uma crise existencial a reação imediata seria se debruçar sobre a própria realidade, todavia, os sinais seguros são poucos. Esse é outro dos motivos pelos quais se pergunta o que fazer. E, pior ainda, acreditar em “qualquer um e soluções milagrosas”. É provável que se passe toda a vida com um alto grau de confusão, sem suspeitar que essa confusão, presente em cada ato cotidiano, tem sua origem em mentiras instaladas desde a primeira infância, e que, em algumas ocasiões, foram sustentadas por várias pessoas, dentro de um pacto de silêncio constrangedor. Acontece, às vezes, em casos de adoção, nos quais a família inteira foi testemunha do processo, mas nega à criança, que sistematicamente pergunta sobre sua origem, a possibilidade de ter acesso à verdade.

    É difícil ter uma noção mais ampla do alcance dos estragos emocionais que as falácias e enganos deixam sobre a construção da psique humana. Por isso o propósito da construção de uma biografia humana é, em princípio, abordar a verdade. A verdade deve coincidir com as vivências internas do indivíduo e com o cenário no qual acontece sua vida de relações. Não se trata de dividir o mundo entre bons ou maus, justos e pecadores. Não, longe disso! É preciso encontrar a lógica, nomeando com palavras reais aquilo que aconteceu, acontece ou pode acontecer. Observar um cenário real permite a todo ser humano tomar decisões conscientes. Isso é tudo. Uma tarefa complexa, despojada e amorosa como poucas.

 

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