quarta-feira, 28 de julho de 2021

A OBRIGAÇÃO DE SER FELIZ

 

    Um novo credo, emergido da sociedade das “redes-socializadas”, prega o dever de ser feliz. Qualquer fraqueza em relação a essa obrigação moral será chamada de depressão e verá ser-lhe imposta primeiro a medicalização, depois, talvez, alguma psicoterapia. No exato instante em que se associa ao termo depressão uma prescrição, é preciso investigar a questão do proveito que lhe está necessariamente associado: quem lucra com isso? O Prozac, a pílula da felicidade instantânea, não é uma questão secundária: basta observar a resistência dos laboratórios farmacêuticos aos medicamentos genéricos. Em alguns serviços de saúde, aqueles que tratam dos doentes atingidos por doenças muito graves e com prognóstico frequentemente reservado, apela-se para os psicoterapeutas. O recurso aos psicoterapeutas não parece ter limitado de modo evidente o uso dos medicamentos antidepressivos, nem afinado de maneira substancial o diagnóstico de depressão, uma vez que esse rótulo é tão-somente função da impressão produzida pelo humor do doente sobre os profissionais ou ainda do efeito produzido sobre os profissionais pelo comportamento dos doentes hospitalizados. Se fala da morte, logo, diz-se que é suicida; se chorou pela manhã, logo, é preciso administrar antidepressivos...

    É a reatividade do doente ao processo de medicalização em que ele é inserido que é sumariamente avaliada a partir de alguns elementos psicológicos não específicos, de certo modo por feeling. O que ocorrerá quando a isso acrescentar-se o "diagnóstico de enfermaria". O processo em que entra o doente hospitalizado é, por definição, infantilizante, já que, acamado, assistido em suas necessidades fundamentais, essencialmente dependente dos profissionais, ele está despojado dos atributos que são normalmente os seus na vida cotidiana: de pé, em suas funções profissionais, familiares e relacionais, ali, está deitado, dependente e à espera da melhora de seu estado ou dos cuidados médicos que lhe são prodigalizados e que ele recebe por definição passivamente, uma vez que não é ele, mas o saber médico na pessoa de seu próprio médico, quem decide. Ele é capturado em uma situação paradoxal: ter de aceitar o que lhe fazem - exames, cuidados, tratamentos -, de preferência sem discussão, isto é, em uma atitude passiva designada pelo termo americano: compliance, que designa a faculdade de dobrar-se ao tratamento médico (entendido em sentido amplo). Ao mesmo tempo, porém, pede-se a ele, implicitamente, para cooperar e até mesmo aderir sem reservas ao tratamento, com toda a confiança, isto é, não passiva, mas ativamente. Pede-se a ele, em suma, que seja uma criança obediente e também um adulto que consinta e participe. A experiência com esse tipo de situação leva a pensar que qualquer atitude indicando a grande dificuldade de aceitar essa situação paradoxal é chamada de "depressão", e que o paciente está tendendo para um lado ou para o outro: passividade demais ou seu inverso. O doente que participa, que se comporta como adulto, não deve, de todo modo, chegar a ponto de discutir o tratamento que lhe é administrado. O saber médico não é compartilhável, ele marca um limite para além do qual tratar-se-ia de transgressão. A compliance do doente implica obediência. Se uma compliance demasiado grande converte-se em passividade, levanta-se o diagnóstico de depressão. Isso não é forçosamente falso: a indiferença deve alertar.

    Mas uma aptidão demasiado grande à discussão, ao questionamento sobre o que está sendo feito, traz uma suspeita de não-compliance, a qual supostamente mascara uma secreta impressão subjacente. O bom doente é um colaborador, que não transgrida as regras de compliance às quais é prescrito que se submeta. Aquele que resiste, por menos que o faça, e cuja compliance não é perfeita, é um mau doente: os antidepressivos estão aí para remediar esse problema. Faz parte do quadro o fato de não se aceitar o sofrimento da doença, outra indicação de um mau doente; tanto é, que ainda se pensa que é preciso sofrer para curar-se, isto é, ser feliz. Há um preço a pagar: aquele que custa a aceitá-lo é um depressivo. Ou seja, tudo se passa como se a regra fosse não sofrer moralmente pelo sofrimento físico e pelas coerções da doença. A imagem que reina é a do bem-estar para aquele que sabe “positivar" os acontecimentos que sobrevêm em sua vida, e até mesmo no mundo que o cerca. Aquele que não o consegue e deplora sua impotência atesta uma incapacidade ou uma fraqueza digna de culpa. Essa imagem se alastrou de tal maneira, por meio da interiorização de um único ideal do eu socialmente admitido que toda tristeza é vergonhosa, injustificada e, daqui por diante, patológica. Curiosamente, patologizar a tristeza, sob o termo depressão, é a maneira encontrada para sair do registro moral. Os próprios pacientes integraram essa ideia e pedem a seus médicos psicotrópicos porque se dizem deprimidos. É o cúmulo da alienação aderir a esse ponto da norma imposta! Perder o trabalho, um parente próximo, o cônjuge, merece um antidepressivo, uma vez que a tristeza ou o sentimento de luto é assimilado a um estado depressivo. Ser feliz, positivo, contente com sua sorte é o novo credo, e o sutil distintivo entre o sofrimento psíquico normal que acompanha uma perda e o abandono ao desespero de um ser entregue a sua angústia ou deixado à solta pelo “outro” não está mais na ordem do dia de uma normatividade alçada à onipotência de uma regra. E, no entanto, começa-se a admitir que um doente tem o direito de queixar-se das dores pós-operatórias, de não as considerar normais, aceitáveis, sobretudo desde que se saiba que é possível aliviá-las. Mas não é assim com o direito de ficar triste com a ideia de não mais poder viver e respirar no mundo como se fazia antes de estar doente, ou com aquele de se dar o tempo x de que cada pessoa precisa para fabricar novas referências e até mesmo suas próprias normas, se as do “outro” não são mais compatíveis com aquilo que ela se tornou, em função da doença e de suas consequências.

    Do direito à saúde, passamos ao dever de ser feliz. Ficar triste é uma anormalidade, uma falta moral cuja redução química é confiada ao médico ou ao psicoterapeuta. “Psicologizam-se” de bom grado as perturbações do humor manifestamente reportáveis a um problema médico que tenha vindo abalar a relação de um sujeito com seu corpo até então silencioso. Em compensação, em vez de a ela ser assegurado um endereço, um lugar de questionamento, a tristeza sem objeto, isto é, aquela que não se pode reportar a uma situação de perda ou de falta real, será medicalizada. Ela é sem objeto no sentido de "sem causa" objetivável.

    Entretanto é preciso distinguir os dois casos, pois o seu tratamento é radicalmente diferente, em todas as suas dimensões: o tratamento teórico que lhes é aplicado, e o tratamento prático pelo qual se deve fazê-los passar. Esse é o termo adequado quando há um tratamento químico cujo único objetivo é fazer desaparecer as manifestações e as consequências de qualquer alteração patológica do corpo. Mas é também um termo que tem o seu valor quando há um tratamento psicológico: um tratamento por meio da palavra. A depressão deve poder retornar a uma rede significante que a faça significar algo para o sujeito, caso não possa desvelar sua causa até o momento enigmática.

    O atual tratamento da depressão parece ser apenas uma “tapeação humanista”; o profissional compensa o recorte realizado pela medicina, do corpo em órgãos, acreditando reencontrar um suplemento de alma com a preocupação que tem em relação à depressão, a qual, entretanto, revela um furo que ele não para de querer tapar. Como o doente praticamente não tem escolha ou os meios de decidir de outra maneira, ele na maioria das vezes não perceberá aí a oportunidade nem de falar mais, nem de ver um abuso da medicina; uma vez ou outra, entretanto, ele aceitará a entrevista que lhe é proposta com o terapeuta e, deixando os comprimidos em sua gaveta, abordará com ele as numerosas questões que sua situação lhe inspira. Talvez não seja o melhor momento de começar uma análise, mas pode oferecer a ocasião de vislumbrar sua possibilidade.

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