sexta-feira, 20 de agosto de 2021

O ENGESSAMENTO DAS AFLIÇÕES EMOCIONAIS DENTRO DE UM MANUAL

 

    É normal ter problemas e a aflição emocional não é necessariamente uma doença. As pessoas que estão procurando uma maneira de driblar, contornar, viver e administrar um mundo que está se tornando deveras mais complexo não precisam ser rotuladas como portadoras de um distúrbio, afinal, estão simplesmente percorrendo um caminho consagrado pelo tempo para uma vida mais realizada.

"[...] a noção de doença mental é usada hoje sobretudo para esconder e 'invalidar' problemas de relacionamento pessoal e social, assim como a noção de bruxaria foi utilizada do começo da Idade Média até bem depois da Renascença. " — THOMAS SZASZ

    A vida não é uma doença. E mudar o passado é impossível (pelo menos até o momento presente). O número de diagnósticos de transtornos mentais aumentou estratosfericamente com os incrementos das edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM. Dentre as novas categorias propostas, os responsáveis pela elaboração da quinta versão do manual apresentou a "síndrome de risco para psicose", substituída pela "síndrome de psicose atenuada" antes da publicação. A substituição da palavra risco por sintomas atenuados mantém a perspectiva de patologizar o não patológico da condição, fomentando a medicalização da vida e a produção de intervenções desnecessárias sem falar na estigmatização social.

    O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria - APA, é o dispositivo oficial para estabelecer diagnósticos de distúrbios mentais nos Estados Unidos, tendo ampla utilização internacional e influência sobre a Classificação Internacional de Transtornos Mentais da Organização Mundial de Saúde - OMS. As classificações foram criadas no intuito de estabelecer uma linguagem universal sobre as patologias mentais, além de possibilitar a obtenção de dados estatísticos sobre a população. O manual busca padronizar os sistemas diagnósticos não apenas no campo da saúde, mas também na atuação jurídica, escolar, organizacional .... Enquanto a versão primeira do manual, publicada em 1952, contava com 106 categorias diagnósticas, a última versão, publicada em 2013, apresenta mais de 300 diagnósticos distribuídos em 947 páginas (haja transtorno!).

    Neste sentido, seria possível questionar se essa proliferação seria um indicativo de que a população está tomada por problemas de saúde mental ou se seria um efeito produzido com a patologização dos comportamentos e experiências da vida. Enquanto a segunda versão, publicada em 1968, apresentava 182 categorias, a número três, publicada em 1980, contava com 265 categorias, substituindo a abordagem psicodinâmica predominante até então por uma orientação baseada em critérios diagnósticos objetivamente definidos.

    A partir da terceira edição, o manual passa a ser apresentado como ateórico e supostamente neutro, inserindo uma lógica de causalidade multifatorial no contexto de biomedicalização da prática da saúde mental. As mudanças na concepção de enfermidade mental passam de um modelo psicodinâmico orientado pelo insight para um modo descritivo orientado pelo sintoma na terceira edição do manual, reverberando nas práticas da saúde ao priorizar a classificação das queixas em categorias definidas por agrupamentos de sintomas, levando à supressão das histórias de vida.

    Na primeira e segunda edição, o manual era pouco conhecido e utilizado, até a publicação da terceira, em 1980. O êxito obtido a partir da terceira edição pode ser explicado pelo estabelecimento crucial entre a normalidade e a doença mental, obtendo relevância social ao determinar questões que impactam significativamente na vida das pessoas, tais como: a fronteira entre a saúde e a enfermidade; a oferta de tratamentos e seu financiamento; a avaliação na colocação profissional; nos critérios para receber benefícios por invalidez; na determinação da periculosidade. As versões seguintes do manual estabelecem mudanças e ampliações nos diagnósticos e na metodologia de classificação. A versão quatro, publicada em 1994, contava com 297 categorias diagnósticas e incluía o critério de significância clínica, excluindo a perspectiva psicodinâmica da etiologia conversiva, substituindo-a pelo enfoque neo-organicista (neo = novo; organicismo = medicina, sociologia).

    Em 2013, foi publicada a última edição do manual, a versão cinco, que apresenta mais de 300 categorias. Esta versão mantém a fundamentação no modelo categorial, propondo um enfoque dimensional quanto à intensidade dos sintomas e organiza os capítulos de modo a considerar o ciclo vida, além de excluir um sistema dotado de vários eixos devido à pouca utilização. As novas categorias apresentadas nesta edição são questionadas por muitos profissionais da saúde por não se configurar como descoberta científica, mas redefinições dos conceitos atrelados aos sintomas e definições operacionais de síndromes. A quinta edição lista um conjunto de questões sociais e da vida que passam a ser consideradas na perspectiva patológica, tais como: problemas de relacionamento; violência doméstica ou sexual; negligência ou abuso; problemas ocupacionais e profissionais; situações de falta de domicílio; pobreza extrema; discriminação social; a não aderência ao tratamento médico.

    Além disso, o tempo que os sintomas persistem para realizar o diagnóstico varia nas diversas edições, como no luto, por exemplo, caracterizado como episódio depressivo na edição quatro quando os sintomas persistiam por mais de dois meses, enquanto na edição quinta o período é reduzido para duas semanas. A inflação diagnóstica de transtornos mentais geradas com as edições do manual reverbera, também, no aumento do uso de medicamentos, tornando-se importante fonte das indústrias interesseiras. Michel Foucault (filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France) investigou como as pessoas se tornam sujeitos de determinados discursos engendrados por regimes de verdade e relações de poder que balizam os processos de subjetivação. Ele estudou as condições para a emergência de determinados saberes em jogos de poder que configuram a legitimidade da verdade para cada período, o que opera como dispositivo político para que os sujeitos possam se constituir em determinadas práticas.

    A análise de determinadas práticas possibilitou identificar que o risco não se distribui igualmente para todos os indivíduos, aspecto que engendra práticas pautadas por antecipar e impedir um acontecimento indesejável, conhecido a partir dos dados gerados por sistemas de informação. Assim, cabe questionar a quem interessa a inclusão de diagnósticos pautados na noção de risco de desenvolver um transtorno mental, como no caso da proposta da síndrome de risco para psicose. Por um lado, a justificativa se delineia por meio da identificação e intervenção precoce. Por outro lado, uma nova categoria diagnóstica relacionada ao risco de desenvolver um transtorno pode incrementar as intervenções desnecessárias e prevalência do uso de medicamentos. No final das contas, as possibilidades de tratamento na prevenção de certos riscos possibilitam imaginar um futuro promissor que beneficie apenas as empresas interessadas na prática da prevenção, conferindo-lhes o título de defensoras da ordem social, reclamando para si um poder ainda maior que o dos juristas e higienistas, pois demanda a gestão da anormalidade.

    O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta edição, tem sido fortemente criticado pela tendência inexorável de transformar comportamentos e experiências da vida diária em transtornos mentais. Ela modificou a nomenclatura inicialmente proposta da Síndrome de Risco para Psicose por Síndrome de Psicose Atenuada. A substituição da palavra risco por sintomas atenuados mantém a perspectiva de patologizar o não patológico da condição que não necessariamente será desenvolvida, fomentando a medicalização da vida.

    Por um lado, um grupo defende o reconhecimento da categoria justificando a importância de identificá-la para intervir precocemente, embora não se tenha garantia de eficácia dos tratamentos para uma síndrome de psicose atenuada. Por outro lado, prevalece a preocupação com a medicalização e produção de intervenções desnecessárias que podem ser prejudiciais, além da estigmatização e incremento do número de “falsos positivos”. Ademais, ao deslocar o que era um apêndice nas edições anteriores para estruturar uma seção na versão atual, os organizadores optaram por destacar as “Medidas Emergentes e Modelos” na Seção III, suavizando a ideia de novas categorias nosológicas (nosologia = ramo da medicina que estuda e classifica as doenças) como condições para estudo, incentivando a sua utilização.

    Ao ampliar as categorias nosológicas e utilizar critérios abrangentes e pouco precisos, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, alarga as fronteiras entre o normal e o patológico, nas quais a atribuição de um diagnóstico depende da perspectiva clínica e do uso que se faz do manual. Esse aspecto é explicitado nos argumentos da quinta edição do manual ao situar que esse alargamento permitirá enriquecer o estabelecimento de diagnósticos para pacientes cujos sintomas não se encaixam nos distúrbios atuais. As concepções diagnósticas e estatísticas do não patológico a partir da introdução da ideia de risco ampliam os mecanismos de saber-poder para além das estratégias de intervenção. Torna-se necessário problematizar os regimes de verdade que mantêm as práticas, principalmente dentro dos campos em que os saberes científicos são convocados a construir modos de entender e intervir. Além disso, a patologização de eventos da vida no diagnóstico que se limita a identificar a presença de sintomas em um determinado tempo reduz a compreensão do sofrimento psíquico e da subjetividade.

    Pelo jeito como as coisas vão, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM - poderá ser comparado a uma famosa explicação sobre o ópio que data da Idade Média. A pergunta era: por que o ópio adormece as pessoas? A resposta dada pelos médicos da época era que o ópio adormece as pessoas por causa de suas "propriedades dormitivas". Todo mundo concordava sensatamente e aceitou durante anos que isto realmente explicava alguma coisa. Mas não explica nada. Dormitivo vem do latim dormire, dormir. Explicar que o ópio adormece as pessoas por suas propriedades dormitivas é o mesmo que dizer que o ópio adormece as pessoas porque as adormece. Afinal, nada científico — apenas uma explicação em círculo.

    Então, o que acontece quando aplicamos definições circulares de doenças físicas literais a doenças mentais metafóricas? Obtemos o caos dos chamados distúrbios. Você tem um problema emocional originado de uma experiência passada desagradável? No DSM ele passa a ser uma doença mental: distúrbio de tensão pós-traumática. Seu filho está tendo problemas para aprender aritmética? Há uma boa probabilidade de ser porque a professora não conhece nenhum método didático mais apropriado ou porque os métodos didáticos atuais afirmem que a resposta certa de 2 + 2 é qualquer número que faça o aluno se sentir bem, mas no DSM, torna-se uma doença mental: distúrbio de desenvolvimento da aritmética. Você está decepcionado porque não ganhou na última loteria? No DSM, também isso se torna uma doença mental: distúrbio de tensão da loteria. Recusaria tratamento psiquiátrico para si mesmo ou para o seu filho se fosse confrontado com este tipo de diagnóstico? No DSM, a sua recusa também se torna uma doença mental: distúrbio de não-concordância com o tratamento.

    Isto seria excelente se fosse ficção científica ou comédia. Porém, hoje, se disfarça de ciência séria. Em 1987, a Associação Psiquiátrica Americana votou na classificação da Síndrome de Distúrbio de Atenção e Comportamento (ADHD — Attention Deficit Hyperactivity Disorder) como doença mental. Naquele ano, meio milhão de crianças americanas foram diagnosticadas com ADHD. Em 1996, 5,2 milhões de crianças — 10% das crianças americanas em idade escolar foram diagnosticadas com distúrbio de atenção e comportamento. A "cura" para essa "epidemia" foi e continua sendo Ritalin, cuja produção e venda — e efeitos colaterais horripilantes — aumentaram rapidamente. É muito bom para o negócio de remédios; não tão bom para as crianças. Não existe a menor evidência clínica de que o ADHD seja causado por uma doença cerebral específica, mas é a queixa que justifica declarar mentalmente doentes milhões de crianças americanas (e do mundo afora), drogando-as por coerção e registrando de forma permanente o "diagnóstico" de "doença mental" em suas fichas.

    Por que crianças normais, saudáveis, curiosas — e às vezes indisciplinadas — têm problemas de prestar atenção na escola? O distúrbio de atenção e comportamento é uma possibilidade; porém, existem muitas outras. Também pode ser por falta de motivação, disciplina, um tema a ser estudado, falta de padrões que exijam uma aprendizagem, testes que avaliem o conhecimento, por causa de professores incompetentes e pais indiferentes. Pode ser porque padrões obrigatórios foram substituídos por slogans insensatos, e não exista nenhuma autoridade moral em casa ou na escola para inculcar virtudes nessas crianças. O sistema educacional foi transformado de um caminho de aprendizagem em um campo minado de debilitação — com alguns profissionais da saúde mental como cúmplices voluntárias. Parece que devanear é mais fácil para todos os envolvidos. Se o seu filho não presta atenção nas aulas, está sofrendo do distúrbio de atenção e comportamento. E se você se queixar desse tipo de diagnóstico, você tem o distúrbio de negação do distúrbio de atenção e comportamento, ou seja, medicalização para toda a família.

    Enfim, muito cuidado, se você suspirar em desarmonia ou chorar fora do tom, muito provavelmente correrá o risco de ser instantaneamente enquadrado em alguma definição de distúrbio mental no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

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