SPECT
a janela funcional para o cérebro e seus impactos na prática psiquiátrica
por Heitor Jorge Lau
O diagnóstico em psiquiatria historicamente se baseou na avaliação clínica, na observação do comportamento e no relato subjetivo do paciente. Embora essa abordagem permaneça fundamental, o século XXI trouxe consigo a promessa de maior objetividade através da neuroimagem funcional, técnicas que permitem visualizar o cérebro em plena atividade, e não apenas sua estrutura física. Entre estas, o SPECT – sigla para Tomografia Computadorizada por Emissão de Fóton Único (do inglês, Single-Photon Emission Computed Tomography) – emergiu como uma ferramenta valiosa, oferecendo aos médicos psiquiatras uma perspectiva única sobre o funcionamento cerebral e o fluxo sanguíneo regional, elementos cruciais para a compreensão dos transtornos mentais.
O SPECT é uma técnica de medicina nuclear. Isso significa que, para que o exame funcione, é necessário introduzir no corpo do paciente uma pequena quantidade de um radiofármaco ou radioisótopo, que é uma substância quimicamente projetada para se ligar a áreas específicas do cérebro ou simplesmente acompanhar o fluxo sanguíneo. O equipamento do SPECT capta os fótons gama (partículas de luz de alta energia) emitidos por esse radiofármaco. Um sistema de computação então processa essa informação para gerar imagens tridimensionais, que mostram a distribuição e a intensidade do fluxo sanguíneo em diferentes regiões do cérebro. A lógica por trás dessa técnica é simples e poderosa: quanto mais ativa uma área do cérebro, maior é o seu metabolismo e, consequentemente, maior a necessidade de sangue, o que se traduz em maior acúmulo e emissão de fótons na imagem do SPECT.
Um dos principais radiofármacos utilizados na avaliação do fluxo sanguíneo cerebral é o HMPAO (Hexamethylpropyleneamine Oxime) ou o ECD (Ethyl Cysteinate Dimer). Essas moléculas atravessam facilmente a barreira hematoencefálica, a fronteira altamente seletiva que protege o cérebro, e se fixam temporariamente nas células cerebrais (neurônios) de forma proporcional ao fluxo sanguíneo no momento da injeção. O psiquiatra ou o especialista em medicina nuclear pode, assim, obter um "instantâneo" da atividade cerebral funcional do paciente. No contexto da psiquiatria clínica, o SPECT tem sido particularmente útil em situações onde o diagnóstico diferencial se torna complexo. Diagnóstico diferencial é o processo pelo qual o médico distingue uma doença ou condição de outras que apresentam sintomas semelhantes.
Exemplo Prático 1:
- DEPRESSÃO vs. TRANSTORNO BIPOLAR.
Imagine um paciente que apresenta humor deprimido, falta de energia e dificuldade de concentração – sintomas que se enquadram tanto na Depressão Maior quanto na fase depressiva do Transtorno Bipolar. A distinção é crucial, pois o tratamento difere radicalmente: antidepressivos, quando usados isoladamente em pacientes bipolares, podem desencadear uma perigosa fase maníaca (um período de euforia, energia excessiva e impulsividade). O SPECT, em alguns estudos, demonstrou padrões funcionais distintos para as duas condições. Enquanto a Depressão Maior pode ser associada a uma atividade reduzida (hipofluxo) em certas áreas do córtex pré-frontal – a região do cérebro logo atrás da testa, responsável pelo planejamento, tomada de decisão e regulação emocional – o Transtorno Bipolar pode apresentar, em sua fase depressiva, uma distribuição de fluxo mais complexa ou alterações funcionais específicas em regiões subcorticais. Embora o exame não seja um substituto para a avaliação clínica, ele pode adicionar uma camada de objetividade, especialmente em casos refratários ou de difícil classificação.
Outra aplicação essencial do SPECT reside na investigação de transtornos que, à primeira vista, podem ser puramente psiquiátricos, mas que possuem uma forte componente neurológica subjacente.
Exemplo Prático 2:
- DEMÊNCIA e PSEUDODEMÊNCIA DEPRESSIVA.
Um idoso pode apresentar perda de memória, confusão e lentidão de pensamento. O psiquiatra precisa determinar se esses sintomas são resultado de uma demência (como a Doença de Alzheimer, uma condição neurodegenerativa que causa atrofia e disfunção cerebral) ou de uma pseudodemência depressiva, onde a depressão é tão grave que simula um quadro demencial.
Neste cenário, o SPECT é altamente elucidativo. Na Doença de Alzheimer, tipicamente se observa um hipofluxo bilateral temporoparietal – uma redução do fluxo sanguíneo nas regiões temporais e parietais de ambos os lados do cérebro, áreas críticas para memória e orientação espacial. Esse padrão é um forte indicador de que o processo neurodegenerativo está em curso. Por outro lado, na pseudodemência depressiva, o padrão de hipofluxo costuma ser mais frontal e reversível com o tratamento antidepressivo, ou, ainda, o exame pode apresentar um padrão de fluxo sanguíneo normal. Essa distinção tem um impacto terapêutico imediato e significativo.
Além de mapear o fluxo sanguíneo, o SPECT possui a capacidade única de mapear o sistema de comunicação química do cérebro através de radiofármacos que se ligam a receptores ou transportadores de neurotransmissores específicos, como a dopamina e a serotonina. Neurotransmissores são as substâncias químicas que as células nervosas (neurônios) utilizam para se comunicar entre si.
O radiofármaco mais conhecido para essa finalidade é o DAT-Scan (que utiliza o Ioflupane I-123), cujo objetivo é medir a densidade dos transportadores de dopamina (DAT). A dopamina é um neurotransmissor crucial para o sistema de recompensa, motivação e controle motor.
Exemplo Prático 3
- Distinção entre MAL de PARKINSON e TREMOR ESSENCIAL.
O DAT-Scan é mais comumente usado em neurologia, mas a distinção é relevante para o psiquiatra, pois as alterações dopaminérgicas estão profundamente ligadas a sintomas psiquiátricos. O Mal de Parkinson é um distúrbio neurológico degenerativo que afeta o controle motor. Causa bradicinesia (lentidão dos movimentos) e tremores de repouso, mas também é acompanhado frequentemente por sintomas psiquiátricos como depressão e psicose. No Mal de Parkinson, há uma perda de neurônios produtores de dopamina na substância negra do cérebro, o que se reflete em uma redução dramática dos DATs no SPECT. Já no Tremor Essencial, que é um distúrbio de movimento comum, mas não degenerativo, a densidade dos DATs é normal. Ao confirmar a presença de perda dopaminérgica, o psiquiatra obtém uma certeza diagnóstica que o orienta na gestão dos sintomas não-motores e no planejamento da medicação.
Apesar de seu potencial, é crucial que o profissional de psiquiatria utilize o SPECT com uma compreensão clara de suas limitações. O SPECT tem uma resolução espacial (a capacidade de distinguir detalhes em pequena escala) inferior à da Ressonância Magnética Funcional (fMRI), o que significa que ele pode não conseguir mapear com precisão as áreas cerebrais menores e mais profundas. Além disso, o cérebro humano é dinâmico, e a imagem do SPECT é apenas um instantâneo da atividade em um momento específico. A variabilidade individual, a influência do humor no momento do exame e a própria complexidade dos transtornos mentais, que raramente se resumem a uma única área disfuncional, exigem que os achados do SPECT sejam sempre contextualizados pela história de vida do paciente, sua avaliação psicopatológica e seus sintomas atuais.
A visão mais moderna, defendida por pesquisadores como o Dr. Daniel Amen, embora controversa em alguns círculos acadêmicos mais tradicionais, sugere que o uso rotineiro do SPECT na psiquiatria, especialmente em centros especializados, permite uma abordagem de tratamento mais personalizada. Ele argumenta que ao "olhar" o cérebro, é possível ir além dos sintomas e identificar padrões subjacentes que explicam a falha de tratamentos anteriores. Por exemplo, em casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), existem subtipos funcionais que respondem melhor a estimulantes e outros que respondem melhor a abordagens não estimulantes. O SPECT, ao identificar padrões de hipo ou hiperatividade em certas regiões, auxiliaria nessa diferenciação.
O futuro do SPECT na Psiquiatria não reside em (jamais) substituir o divã ou o consultório, mas sim em integrar-se como uma ferramenta de apoio diagnóstico em casos desafiadores. Ele atua como uma ponte entre a mente subjetiva e o órgão físico. Ao fornecer dados objetivos sobre o fluxo sanguíneo e a função de neurotransmissores, o SPECT ajuda a desmistificar a doença mental, retirando-a do campo puramente abstrato e ancorando-a na biologia. Isso não apenas auxilia o psiquiatra no refinamento do tratamento (seja ele farmacológico, psicoterápico ou uma combinação), mas também pode oferecer ao paciente uma validação visual de seu sofrimento, facilitando a adesão e reduzindo o estigma. O uso dessa tecnologia ressalta o movimento contínuo da psiquiatria para uma medicina de precisão, onde o diagnóstico e o tratamento são cada vez mais moldados pelas especificidades biológicas de cada indivíduo.
A evolução da psiquiatria biológica e as descobertas proporcionadas pelo SPECT também abriram caminho para discussões éticas e metodológicas importantes, que todo psiquiatra e profissional de saúde mental deve considerar. Uma das principais preocupações é a interpretação dos achados. O que a imagem colorida do cérebro realmente significa em termos de sofrimento psíquico e existencial? Uma mancha de hipofluxo em uma área específica é a causa do sintoma, um efeito secundário do transtorno, ou apenas um correlato neural – uma atividade que acompanha o sintoma sem necessariamente causá-lo? A neurociência ainda debate essas nuances. A complexidade do cérebro, com suas milhões de interconexões (a conectividade cerebral), significa que um sintoma como a ansiedade ou o delírio pode envolver uma rede funcional ampla e dispersa, e não apenas um único ponto de falha. O SPECT, ao medir o fluxo sanguíneo, fornece uma visão macroscópica dessa rede, mas a interpretação clínica deve ser cautelosa para não cair em uma simplificação excessiva.
Um campo de estudo crescente é o uso do SPECT na avaliação da Resposta ao Tratamento. Em vez de esperar semanas ou meses para que o paciente relate uma melhora sintomática após o início de um novo medicamento, o psiquiatra pode, em teoria, utilizar o exame para buscar indicadores precoces de que a droga está, de fato, alcançando seu alvo biológico e alterando o fluxo cerebral em direção a um padrão mais saudável.
Exemplo Prático 4:
- OTIMIZAÇÃO de TRATAMENTO na ESQUIZOFRENIA.
A Esquizofrenia é um transtorno psiquiátrico grave, caracterizado por sintomas como alucinações, delírios e desorganização do pensamento. O tratamento principal envolve o uso de antipsicóticos. Muitos desses medicamentos agem modulando a atividade da dopamina no cérebro. Utilizando radiofármacos que se ligam aos receptores de dopamina D2 (o alvo principal de muitos antipsicóticos), o psiquiatra pode, com o SPECT, medir a taxa de ocupação desses receptores pelo medicamento. Se um paciente não está respondendo a um antipsicótico, mas o SPECT mostra que o medicamento está ocupando uma quantidade ideal de receptores (por exemplo, acima de 70%), o psiquiatra pode concluir que o problema não é a dosagem, mas sim que o paciente pertence a um subgrupo que não responde a essa classe de drogas, orientando-o a mudar o tratamento. Por outro lado, se a ocupação está muito baixa, o problema é a dosagem, e esta deve ser aumentada. Essa personalização evita o desperdício de tempo e o sofrimento causado por um tratamento ineficaz.
A metodologia do exame em si também exige rigor. O paciente precisa estar em um estado mental e físico estável no momento da injeção do radiofármaco, para que o "instantâneo" da atividade cerebral seja representativo. Se o paciente estiver passando por um ataque de pânico intenso ou sob efeito agudo de substâncias, os resultados do SPECT refletirão esse estado transitório e poderão levar a interpretações erradas sobre o quadro crônico. O psiquiatra, portanto, é responsável por preparar o paciente e por integrar os achados do SPECT com o conhecimento longitudinal do caso.
A inclusão da neuroimagem funcional na Psiquiatria não se limita apenas à detecção de patologias, mas também se estende à compreensão de fenômenos complexos da experiência humana, como a resiliência e o impacto do trauma. Pesquisas utilizando o SPECT e outras técnicas têm tentado identificar padrões de atividade cerebral associados à capacidade de indivíduos de se recuperarem de adversidades. Tais estudos demonstram que a resiliência não é apenas uma característica de personalidade, mas também envolve redes neurais robustas, como a boa comunicação entre o sistema límbico (o centro emocional do cérebro) e o córtex pré-frontal (o centro de regulação). Um paciente que sofreu um trauma significativo pode apresentar, no SPECT, evidências de hiperatividade da amígdala ou de outras estruturas límbicas, o que pode correlacionar-se com um estado de alerta crônico e hiperexcitação emocional.
Ao longo do tempo, o SPECT, juntamente com a fMRI e o PET, está transformando a forma como a Psiquiatria é percebida, movendo-a cada vez mais para um modelo que respeita a complexidade do funcionamento mental, ao mesmo tempo em que se apoia em evidências biológicas. Não se trata de negar a importância do diálogo, da transferência (o conceito psicanalítico de repetição de padrões relacionais inconscientes no setting terapêutico) ou da história pessoal, mas de adicionar uma dimensão visual e objetiva ao que antes era apenas falado. Essa complementaridade é o que define a Psiquiatria Integrativa e representa o futuro da saúde mental, onde a biologia, a psicologia e a experiência existencial se unem para formar um diagnóstico mais completo e, consequentemente, um plano de tratamento mais humano e eficaz. O SPECT, com sua capacidade de mapear o fluxo sanguíneo e os sistemas de neurotransmissores, continua sendo uma peça-chave nesta revolução do diagnóstico psiquiátrico.
A SABER (importantíssimo)
O uso da Tomografia Computadorizada por Emissão de Fóton Único (SPECT) na prática clínica é restrito a médicos, e, no contexto da saúde mental, principalmente aos psiquiatras ou, em colaboração, com médicos especialistas em Medicina Nuclear.
Psiquiatras (Médicos)
O psiquiatra é o profissional legalmente habilitado para solicitar o exame SPECT (como qualquer exame de medicina nuclear) quando há uma indicação clínica que justifique o procedimento. Eles utilizam o laudo (emitido pelo médico nuclear) e as imagens para refinar o diagnóstico diferencial e otimizar o tratamento, integrando os achados biológicos com a avaliação psicopatológica do paciente. O psiquiatra faz a indicação, mas a aquisição da imagem e a emissão do laudo são realizadas por um Médico Nuclear.
Psicólogos
Psicólogos não são médicos e, portanto, não têm autorização legal para solicitar exames que envolvam a administração de radiofármacos ou procedimentos invasivos, como o SPECT. Em um ambiente de pesquisa acadêmica (como em estudos de neurociência cognitiva ou neuropsicologia), psicólogos podem colaborar ativamente na coleta e análise dos dados funcionais do SPECT. Nesses contextos, eles podem interpretar os achados para entender processos cognitivos e emocionais, mas sempre sob um protocolo de pesquisa e com a supervisão ou colaboração de médicos. No consultório clínico, um psicólogo pode tomar conhecimento dos resultados do SPECT (se o paciente os fornecer) e utilizá-los para compreender a base biológica do quadro, mas a solicitação e a indicação primária são médicas.
Psicanalistas
Da mesma forma que os psicólogos (a menos que sejam também médicos psiquiatras), os psicanalistas não podem solicitar o exame. O maior uso que a Psicanálise faz do SPECT e de outras neuroimagens funcionais é no campo da teoria e da pesquisa (o campo da Neuropsicanálise). Os achados dessas imagens (como o mapeamento de áreas cerebrais envolvidas na emoção ou na memória implícita) são utilizados para buscar correlatos neurais para conceitos psicanalíticos, como o inconsciente, os mecanismos de defesa e a transferência, enriquecendo o diálogo entre as duas áreas, mas não na prática clínica direta de pedir o exame.
Em síntese, o SPECT é uma ferramenta diagnóstica médica que envolve radiação e radiofármacos. Por isso, a indicação, solicitação e integração no plano de tratamento clínico são de responsabilidade do psiquiatra (ou do médico nuclear). Os psicólogos e psicanalistas utilizam os avanços da neuroimagem principalmente para pesquisa, aprofundamento teórico e para complementar a compreensão do quadro do paciente.
Este artigo objetiva a disseminação de conhecimento e nunca (em hipótese alguma) o de declarar fórmulas ou conceitos educativos para a prática de qualquer terapia ou tratamento que vise a saúde mental.

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