domingo, 12 de outubro de 2025

A CRISE DA ALMA FRAGMENTADA


 

Um Apelo à Religação do Sentir na Era da Complexidade

por Heitor Jorge Lau

            A busca incessante por um sentido que ressoe para além da superfície dos dias tem levado a humanidade a uma encruzilhada existencial, onde a dor da fragmentação ecoa no íntimo de cada indivíduo e se manifesta no tecido social. Edgar Morin, em "A Religação dos Saberes", diagnostica a patologia do conhecimento moderno, a qual se traduz na disjunção, na especialização cega que isola os campos do saber e impede a compreensão da complexidade do real. Esta patologia epistemológica encontra um espelho assustadoramente fiel na atual situação emocional da humanidade, que vive um colapso análogo: a fragmentação do eu, a hiperespecialização do sentir e a perda da visão de conjunto sobre a própria condição.

            Assim como o conhecimento foi dividido em caixas estanques, com a Biologia dissociada da História e a Física da Filosofia, o ser humano contemporâneo parece ter compartimentalizado suas emoções e experiências. A esfera profissional é rigidamente separada da vida pessoal, a razão é colocada em guerra com o sentimento, e a dimensão individual é isolada da coletiva (não que a individualidade seja menos importante) . Vivemos sob o jugo de um paradigma da simplificação emocional, onde as múltiplas facetas da condição humana - a incerteza, a fragilidade, a animalidade e a divindade, o erro e a sabedoria - são tratadas como inimigas a serem eliminadas ou reprimidas, e não como elementos dialógicos de um todo complexo.

            O resultado é uma epidemia de isolamento e ansiedade, um eco psíquico da hiperespecialização. O indivíduo, como um especialista em um minúsculo campo do saber, conhece profundamente uma parcela de si, talvez sua performance no trabalho ou sua imagem nas redes sociais, mas ignora o resto, o contexto vasto e interconectado de sua existência. Não se trata - nesse contexto - de religiosidade, longe disto! A depressão, neste cenário, surge como a manifestação mais íntima da disjunção: a mente e o corpo, o indivíduo e o mundo, perdem a capacidade de interagir e retroagir. O sentido se esvai porque a conexão, o tecido junto da realidade, conforme a etimologia da complexidade que Morin evoca, foi desfeito. A “dor da alma” moderna é, em essência, a dor da não-religação.

            A proposta de Morin, a "reforma do pensamento", é o antídoto intelectual que se torna, por analogia, o caminho para uma cura emocional. Religar os saberes significa resgatar o conhecimento pertinente, aquele que contextualiza, que globaliza, que é capaz de situar a informação no conjunto e no todo. No plano emocional, isso implica numa religação do sentir: o resgate da inteligência da vida, que permite ao ser humano ver-se não apenas como um indivíduo isolado, mas como parte de uma ecologia complexa que inclui a família, a comunidade, a Terra-Pátria e o Cosmo.

            Para combater a ansiedade generalizada, que é o medo da incerteza e do inesperado, a reforma moriniana sugere aprender a enfrentar as incertezas. No plano do conhecimento, isso significa reconhecer o princípio de incerteza em toda a ciência e em toda a história. No plano emocional, significa cultivar uma aceitação dialógica da vida: entender que a ordem coexiste com a desordem, que o sucesso traz em si a possibilidade do fracasso, e que a felicidade não é a ausência de dor, mas a capacidade de integrar a dor na totalidade da experiência. O pensamento complexo é um pensamento que acolhe as contradições, e a saúde emocional, por sua vez, exige a capacidade de sustentar o paradoxo.

         A fragmentação dos saberes transformou a educação em um mero acúmulo de dados descontextualizados, incapaz de constituir uma intelectualidade que saiba pensar em vez de apenas acumular, refletir em vez de imitar... Da mesma forma, a atual cultura emocional incentiva uma acumulação de insights rápidos e soluções superficiais, um "saber fazer" técnico sobre o bem-estar que falha em gerar uma mente saudável para a vida. As redes sociais, por exemplo, hiperespecializam a comunicação e o afeto, reduzindo a complexidade da interação humana a pequenos posts e reações instantâneas, descontextualizando a experiência e gerando uma ilusão de conexão que, na verdade, aprofunda a solidão. A verdadeira compreensão, que Morin coloca como um dos pilares de sua reforma, exige tempo, empatia e a capacidade de ver o outro em sua multidimensionalidade, fugindo da redução simplificadora.

            A religação do saber implica, finalmente, no resgate da condição humana. Morin insiste que é preciso ensinar a condição humana em sua tríplice natureza: individual (o ciclo da vida e da morte), social (a cultura e a história) e terrestre (o pertencimento ao cosmo). Esta é a analogia mais poderosa. A crise emocional da humanidade é, acima de tudo, uma crise de autocompreensão. Perdidos na especialização de nossos papéis e na superficialidade de nossas interações, esquecemos quem somos: seres psicobiofísicos, socioculturais e planetários.

            Religar o saber é religar o eu. A reforma paradigmática que o sociólogo propõe não é apenas uma diretriz pedagógica... é um imperativo ético e um caminho terapêutico para a humanidade. Ela nos convida a sair do pensamento mutilador que separa e a abraçar o pensamento complexo que une: unir a razão e a emoção, o individual e o coletivo, a ciência e a poesia, o finito e o infinito da nossa existência. A cura da alma, assim como a revolução epistemológica, passará inevitavelmente pela capacidade de tecer de novo, de religar, os fios dispersos de nosso ser no grande e incerto tecido da vida. É a única via para transcender a fragmentação e encontrar um sentido que seja, ao mesmo tempo, profundo, contextualizado e verdadeiramente humano.

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