A SOMBRA COLETIVA
Atualmente, a sociedade se defronta
com o lado escuro da natureza humana toda vez que abre um jornal ou ouve o
noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na
esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para
toda a moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a
sombra coletiva. A sombra coletiva - a maldade humana – encara a
todos de praticamente todas as partes. Ela salta das manchetes dos jornais,
vagueia pelas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas. Entoca-se nas
chamativas sex-shops das cidades. Desvia o dinheiro do sistema de financiamento
habitacional, corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema
judiciário. Conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos
desertos, tanto faz, e vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os
lucros a insurgentes reacionários. Através de canos ocultos, despeja a poluição
nos rios, em todos os rios e oceanos. Com invisíveis pesticidas, envenena o alimento
de cada dia.
Essas observações não constituem
algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. Nossa
época fez, de todos nós, testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há
como evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos
coniventes, os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. O anseio
interior por integração — agora tornado manifesto na máquina de comunicação
global — força todos a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda
parte. Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente
aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela
vida. Quando essas últimas se tomam objeto de projeções grupais negativas, a
sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de bode expiatório ou de
criação do inimigo.
Para os americanos anticomunistas,
a U.R.S.S. era o Império do Mal. Para os muçulmanos, os Estados Unidos são o
Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são vermes bolcheviques. Para o monge
asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo. Para os sul-africanos
defensores do apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os negros são
subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos. O poder
hipnótico e a natureza contagiosa dessas fortes emoções ficam evidentes na
extensão e universalidade das perseguições raciais, das guerras religiosas e
das táticas de busca de bodes expiatórios.
E, portanto, é assim que seres
humanos tentam desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são
superiores — e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a
eles. Ao longo da história, a sombra tem surgido através da imaginação humana
como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um
extraterrestre ou um homem tão vil impossível de se espelhar — ele está tão
distante quanto um ET. Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido,
então, um dos propósitos básicos da arte e da literatura. Como disse Nietzsche:
"Temos arte para que a realidade não nos mate." Usando as artes e a
mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou
demoníacas quanto a sombra, a tentativa é de ganhar poder sobre ela, quebrar o seu
feitiço.
Isso pode ajudar a explicar por que
o ser humano fica tão excitado com as violentas arengas de arautos da guerra e
de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e
pelo caos do mundo, transformamos dentro da nossa mente esses outros em
receptáculos do mal, em inimigos da civilização. A projeção também pode ajudar
a explicar a imensa popularidade dos filmes de terror. Através de uma
representação simbólica do lado da sombra, os impulsos para o mal podem ser
encorajados, ou talvez aliviados, na segurança de um livro ou de uma tela.
As crianças, tipicamente, começam a
aprender os assuntos da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra
entre as forças do bem e do mal, fadas-madrinhas e temíveis demônios. As
crianças, tanto quanto os adultos, também sofrem simbolicamente as provações de
seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os padrões universais do destino
humano. Na batalha da censura que hoje se desenrola no campo da mídia e da
música, aqueles que pretendem estrangular a voz da sombra talvez não
compreendam sua urgente necessidade de ser ouvida. Num esforço para proteger os
jovens, os censores reescrevem Chapeuzinho Vermelho e fazem com que ela não
seja mais devorada pelo lobo, mas, desse modo, acabam deixando os jovens
despreparados para enfrentar o mal com que irão se defrontar.
Assim como a sociedade, cada
família também constrói os seus próprios tabus, as suas áreas proibidas. A
sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção consciente de uma
família, aqueles sentimentos e ações que são considerados demasiado ameaçadores
à sua autoimagem. Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça talvez
seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião. Numa família liberal e
ateia, talvez seja a opção pelos relacionamentos interraciais. Na sociedade, espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos
na sombra familiar, mas hoje emergem, em proporções epidêmicas, à luz do dia. O
lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de
civilização e educação.
Ele tem suas raízes numa sombra
biológica, que se baseia nas próprias células. Os ancestrais animalescos do ser
humano, afinal de contas, sobreviveram graças as presas e garras. A besta interior
do ser humano está viva, muito viva, só que a maior parte do tempo permanece encarcerada.
Muitos antropólogos e sociobiologos acreditam que a maldade humana seja
resultado do controle da agressividade animal, da opção pela cultura em
detrimento da natureza e da perda de contato com a selvageria primitiva. O
médico e antropólogo Melvin Konner conta, em The Tangled Wing – A Asa
Emaranhada, que foi a um zoológico, viu uma placa que dizia "O Animal Mais
Perigoso da Terra" e se descobriu olhando para um espelho.
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