quarta-feira, 26 de março de 2025

A RAIZ DA SOMBRA COLETIVA

 


A SOMBRA COLETIVA

Atualmente, a sociedade se defronta com o lado escuro da natureza humana toda vez que abre um jornal ou ouve o noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para toda a moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a sombra coletiva. A sombra coletiva - a maldade humana – encara a todos de praticamente todas as partes. Ela salta das manchetes dos jornais, vagueia pelas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas. Entoca-se nas chamativas sex-shops das cidades. Desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional, corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário. Conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos, tanto faz, e vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários. Através de canos ocultos, despeja a poluição nos rios, em todos os rios e oceanos. Com invisíveis pesticidas, envenena o alimento de cada dia.

Essas observações não constituem algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. Nossa época fez, de todos nós, testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há como evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos coniventes, os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. O anseio interior por integração — agora tornado manifesto na máquina de comunicação global — força todos a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda parte. Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida. Quando essas últimas se tomam objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de bode expiatório ou de criação do inimigo.

Para os americanos anticomunistas, a U.R.S.S. era o Império do Mal. Para os muçulmanos, os Estados Unidos são o Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são vermes bolcheviques. Para o monge asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo. Para os sul-africanos defensores do apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os negros são subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos. O poder hipnótico e a natureza contagiosa dessas fortes emoções ficam evidentes na extensão e universalidade das perseguições raciais, das guerras religiosas e das táticas de busca de bodes expiatórios.

E, portanto, é assim que seres humanos tentam desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são superiores — e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a eles. Ao longo da história, a sombra tem surgido através da imaginação humana como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um extraterrestre ou um homem tão vil impossível de se espelhar — ele está tão distante quanto um ET. Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido, então, um dos propósitos básicos da arte e da literatura. Como disse Nietzsche: "Temos arte para que a realidade não nos mate." Usando as artes e a mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou demoníacas quanto a sombra, a tentativa é de ganhar poder sobre ela, quebrar o seu feitiço.

Isso pode ajudar a explicar por que o ser humano fica tão excitado com as violentas arengas de arautos da guerra e de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do mundo, transformamos dentro da nossa mente esses outros em receptáculos do mal, em inimigos da civilização. A projeção também pode ajudar a explicar a imensa popularidade dos filmes de terror. Através de uma representação simbólica do lado da sombra, os impulsos para o mal podem ser encorajados, ou talvez aliviados, na segurança de um livro ou de uma tela.

As crianças, tipicamente, começam a aprender os assuntos da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra entre as forças do bem e do mal, fadas-madrinhas e temíveis demônios. As crianças, tanto quanto os adultos, também sofrem simbolicamente as provações de seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os padrões universais do destino humano. Na batalha da censura que hoje se desenrola no campo da mídia e da música, aqueles que pretendem estrangular a voz da sombra talvez não compreendam sua urgente necessidade de ser ouvida. Num esforço para proteger os jovens, os censores reescrevem Chapeuzinho Vermelho e fazem com que ela não seja mais devorada pelo lobo, mas, desse modo, acabam deixando os jovens despreparados para enfrentar o mal com que irão se defrontar.

Assim como a sociedade, cada família também constrói os seus próprios tabus, as suas áreas proibidas. A sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção consciente de uma família, aqueles sentimentos e ações que são considerados demasiado ameaçadores à sua autoimagem. Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça talvez seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião. Numa família liberal e ateia, talvez seja a opção pelos relacionamentos interraciais. Na sociedade, espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos na sombra familiar, mas hoje emergem, em proporções epidêmicas, à luz do dia. O lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de civilização e educação.

Ele tem suas raízes numa sombra biológica, que se baseia nas próprias células. Os ancestrais animalescos do ser humano, afinal de contas, sobreviveram graças as presas e garras. A besta interior do ser humano está viva, muito viva, só que a maior parte do tempo permanece encarcerada. Muitos antropólogos e sociobiologos acreditam que a maldade humana seja resultado do controle da agressividade animal, da opção pela cultura em detrimento da natureza e da perda de contato com a selvageria primitiva. O médico e antropólogo Melvin Konner conta, em The Tangled Wing – A Asa Emaranhada, que foi a um zoológico, viu uma placa que dizia "O Animal Mais Perigoso da Terra" e se descobriu olhando para um espelho.


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