quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A CONDIÇÃO HUMANA DIANTE DA CIÊNCIA, DA FILOSOFIA E DA PSICANÁLISE

ENTRE O SILÊNCIO DO COSMOS E O GRITO DA CONSCIÊNCIA

Por Heitor Jorge Lau

            No princípio da história do pensamento humano, acreditava-se que a Terra ocupava o centro do Universo. Essa concepção refletia não apenas uma visão astronômica, mas também uma perspectiva teológica e filosófica: o planeta e seus habitantes eram considerados a obra-prima de uma divindade suprema, cuja benevolência justificava tal posição privilegiada. A centralidade cósmica era, portanto, um reflexo da centralidade espiritual e moral atribuída à humanidade, sustentando por séculos a ideia de que tudo o que existia girava em torno do mundo humano. Contudo, com o avanço das investigações científicas, especialmente durante a Idade Média e o Renascimento, essa visão começou a ruir. Astrônomos como Copérnico, Kepler e Galileu demonstraram que a Terra não ocupa o centro de nada, mas orbita em torno do Sol, e este, por sua vez, é apenas uma estrela entre bilhões. Essa descoberta abalou profundamente os alicerces do pensamento geocêntrico, reduzindo a percepção de importância atribuída ao planeta e à espécie humana. A constatação de que existem outros planetas além da Terra ampliou ainda mais a noção de diversidade cósmica. Inicialmente, acreditava-se que o sistema solar fosse único, mas logo se verificou que as estrelas visíveis no céu noturno são, na realidade, outros sóis, cada qual possivelmente acompanhado de planetas. 

            A multiplicidade revelou-se imensa: bilhões de estrelas apenas em uma galáxia, e bilhões de galáxias espalhadas pelo cosmos. Os números envolvidos na descrição do universo são de tal magnitude que desafiam a imaginação. Estima-se que existam cerca de 100 bilhões de estrelas apenas na Via Láctea, e aproximadamente 100 bilhões de galáxias no universo observável. Cada uma dessas galáxias contém, em média, centenas de bilhões de estrelas, muitas delas acompanhadas de sistemas planetários. Essa grandiosidade colossal torna evidente que a humanidade ocupa uma posição infinitesimal. Comparar a espécie humana a um grão de areia seria, nesse contexto, um exagero generoso. A realidade é ainda mais dura: a presença humana não possui qualquer relevância em escala cósmica. Como disse Pascal, “o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”. Paralelamente às descobertas da astronomia, a biologia contribuiu para implodir o pequeno resto de orgulho humano. Estudos de fisiologia e anatomia revelaram que o ser humano não é dotado de essência mágica ou espiritual, mas constitui apenas uma máquina biológica. O coração não abriga sentimentos, sendo apenas um músculo. As emoções, consideradas sublimes, são reações físico-químicas no cérebro. A personalidade, tão cultivada e valorizada, mostrou-se frágil: um pequeno dano neurológico pode alterar radicalmente a identidade de um indivíduo. Os objetivos individuais, por sua vez, revelaram-se efêmeros, tão transitórios quanto a própria vida. A espécie humana, como qualquer outra, não passa de uma variedade de robôs biológicos comandados por moléculas de DNA. Freud já havia observado que o ser humano não é senhor em sua própria casa, pois forças inconscientes determinam grande parte de seus pensamentos e ações. 

            Os sentidos humanos oferecem apenas uma visão superficial da realidade. A percepção é restrita a uma fração ínfima do espectro físico, enquanto todo o restante permanece negro e impenetrável. Não é possível abrir as cortinas da realidade para observar o que está por detrás das aparências. O conhecimento humano, nesse sentido, não passa de uma sofisticada suposição, construída às cegas com as frágeis ferramentas do intelecto. A busca por verdades absolutas revela-se ingênua, comparável ao esforço desesperado de alcançar o horizonte. O desejo por certezas não nasce da busca pelo conhecimento, mas da necessidade de paz interior. Nietzsche resumiu essa condição ao afirmar que “não existem fatos, apenas interpretações”. Por bilhões de anos, a matéria que compõe os seres humanos foi apenas poeira cósmica. Há cerca de 3,5 bilhões de anos, essa poeira adquiriu a capacidade de se organizar em formas vivas. Com o tempo, desenvolveu consciência de si mesma: o pó tornou-se homem. Esse homem, ao perceber sua própria existência, deparou-se com um mundo insólito, sem razão de ser. A perplexidade diante do absurdo da própria condição tornou-se inevitável. Como passageiro de um trem que conduz inexoravelmente ao nada, o ser humano pergunta: por que aqui, por que agora? O universo, contudo, permanece silencioso. 

            Do ponto de vista biológico, o ser humano pode ser descrito como uma máquina de sobrevivência, modelo Homo sapiens. A consciência dessa condição gera perplexidade e angústia. A análise detida da realidade provoca aflição, pois quanto mais se aprofunda a reflexão, mais cresce a sensação de vazio. A esperança, por vezes, tenta reinterpretar os dados da realidade, mas todas as manhãs a constatação é a mesma: tudo isso é real, inescapavelmente real. Camus afirmou que “o absurdo nasce desse confronto entre o chamado humano e o silêncio irracional do mundo”. Nesse cenário, as ilusões desempenham papel fundamental. São elas que alimentam as motivações humanas, conferindo força vital a objetivos que, em si mesmos, são racionalmente injustificáveis. Quando a razão dissolve essas ilusões, ocorre um abatimento temporário, mas na maioria dos casos elas permanecem inabaláveis, pois são necessárias à subsistência. Mentiras metamorfoseiam-se em verdades quando delas depende a sobrevivência. Jung, ao refletir sobre o inconsciente coletivo, mostrou que símbolos e mitos cumprem a função de sustentar a psique diante do vazio, oferecendo narrativas que, embora não sejam verdades objetivas, estruturam a experiência subjetiva. 

            A razão, por sua vez, não dita o que deve ser feito, mas apenas como fazê-lo. As opiniões e crenças humanas não são racionais em sua origem, elas constituem racionalizações das necessidades. A filosofia de vida, na prática, é uma tentativa de justificar ações com uma máscara de racionalidade. Por trás dos raciocínios, escondem-se preconceitos e paixões inconscientes. A subsistência fundamenta-se no autoengano. Se a significância fosse proporcional às crenças necessárias para motivar a vida, todos seriam deuses. As religiões exemplificam esse fenômeno: ilusões de significância alimentadas por necessidades de autopreservação. As crenças místicas, religiosas e transcendentais cumprem a função de satisfazer necessidades afetivas. Deus, bem-aventurança, transcendência, nirvana, paz espiritual - todos esses conceitos são verdadeiros apenas como estados de espírito, comparáveis a poemas de amor. Tais crenças proporcionam bem-estar e segurança, reduzem a ansiedade e oferecem respostas definitivas sobre o mundo, a moral e a vida. Contudo, a felicidade proporcionada por uma crença não assegura sua veracidade. Lacan, ao refletir sobre o desejo humano, mostrou que ele é sempre desejo de algo que falta, e que as crenças funcionam como tentativas de preencher esse vazio estrutural. O esclarecimento conduz à consciência da insignificância humana. A espécie foi reduzida da coroa da criação a um ponto microscópico, sem utilidade ou relevância. Ainda é possível atribuir algum sentido à vida, mas o senso de importância foi irreparavelmente abalado pelos golpes da ciência. A frustração decorre do choque entre expectativas antropocêntricas e a realidade objetiva. A humanidade lançou esperanças ao desconhecido e colheu desapontamento. A condição atual é de solidão diante de um universo indiferente. 

            A reflexão sobre valores e moralidade insere-se nesse mesmo contexto. Grande parte da estrutura de significados que sustenta a vida humana é criada pela própria espécie. Tudo o que possui valor, o possui apenas porque foi reconhecido como tal. Se não se atribuísse valor aos diamantes, eles seriam apenas pequenas pedras brilhantes difíceis de encontrar. Os valores, portanto, não existem em si mesmos, são construções humanas, reflexos da natureza e das necessidades da espécie. Sartre afirmou que “o homem está condenado a ser livre”, e essa liberdade implica a responsabilidade de criar seus próprios valores. Negar a existência de qualquer espécie de verdade, valor ou dever impessoal é reconhecer que toda abstração que se coloca acima do ser humano torna-se arbitrária. Quando a verdade é transformada em lei suspensa, julgando em função de si mesma sem considerar as circunstâncias específicas, ela se converte em tirania. A ideia de Deus, nesse sentido, é exemplo de como uma abstração pode adquirir vida própria e transformar-se em um monstro dogmático, autoritário e intolerante, ameaçando a liberdade humana.

            A contemplação sobre a condição humana, portanto, conduz a uma conclusão inevitável: não há verdades universais, não há valores impessoais, não há deveres absolutos. Há apenas a liberdade de criar significados, a responsabilidade de sustentar a vida com valores autênticos e a consciência da finitude que acompanha cada instante. Essa consciência, embora dolorosa, é também libertadora, pois ao reconhecer a ausência de sentido intrínseco, o ser humano conquista a possibilidade de criar seu próprio sentido. Ao aceitar a insignificância cósmica, descobre a grandeza de sua liberdade. Ao compreender a fragilidade biológica, aprende a valorizar o instante efêmero da existência. Mas é justamente nesse reconhecimento que se encontra a dignidade da vida: não na ilusão de recompensas eternas, nem na submissão a verdades fossilizadas, mas na coragem de assumir o vazio e transformá-lo em criação. O homem não é centro do universo, não é coroado por deuses, não é destinado a glórias além da morte. É apenas pó consciente, mas é pó que pensa, que cria, que inventa valores e que, por isso, pode transformar o nada em obra. Como lembrava Camus, “é preciso imaginar Sísifo feliz”: não porque sua tarefa tenha sentido, mas porque é na própria consciência do absurdo que reside a possibilidade de liberdade. Assim, o fim não é um consolo, mas uma afirmação: viver é criar, e criar é resistir ao vazio. O universo permanecerá indiferente, mas a consciência humana pode, ainda assim, erguer significados. E é nesse gesto - frágil, efêmero, mas profundamente humano - que se encontra a única grandeza possível. Jung lembrava que “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”, e é nesse despertar que reside a possibilidade de transformar o vazio em criação.

 

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