A SEGREGAÇÃO INSTITUCIONALIZADA
Por Heitor Jorge Lau
O artigo que se segue - assim como todos os textos por mim redigidos - não deve ser interpretado como uma crítica indiscriminada a todos os seres humanos que habitam o planeta. Trata-se, antes, de uma reflexão fundamentada em fatos históricos, análises antropológicas, evidências neurocientíficas e interpretações psicológicas acerca da condição humana. O objetivo não é apontar culpados de forma genérica, mas compreender os mecanismos que, ao longo do tempo, têm conduzido sociedades a repetir padrões de exclusão, violência e indiferença. As narrativas e exposições reunidas aqui cumprem uma função essencial: servir como instrumentos de orientação, alerta e provocação intelectual. Ao revisitarmos episódios sombrios da história, buscamos não apenas recordar o que já aconteceu, mas também lançar luz sobre os riscos de sua reincidência. A memória coletiva, quando aliada ao conhecimento científico e humanístico, torna-se uma ferramenta poderosa contra a banalização do mal e contra a indiferença que tantas vezes abre caminho para a repetição das tragédias. Este espaço, portanto, não se limita a relatar acontecimentos. Ele se propõe a instigar a consciência crítica, a convidar o leitor a refletir sobre os processos que moldam nossas atitudes individuais e coletivas, e a reconhecer que o respeito pela vida deve ser o princípio orientador de qualquer sociedade que aspire à dignidade. Que cada palavra aqui escrita seja entendida como um convite à vigilância ética e à responsabilidade histórica, para que os erros do passado não se tornem os fantasmas do futuro.
Boa leitura!
A história do Hospital Colônia de Barbacena, retratada de forma contundente por Daniela Arbex em Holocausto Brasileiro, é um dos episódios mais sombrios da sociedade brasileira. Ao longo de décadas, milhares de pessoas foram internadas em condições desumanas, muitas sem qualquer diagnóstico psiquiátrico, e submetidas a um cotidiano de fome, frio, violência e abandono. O que se revela nesse cenário não é apenas a falência de uma instituição, mas a manifestação de processos profundos da mente humana e da estrutura social que permitem que tais atrocidades sejam cometidas e perpetuadas. A análise desse episódio exige que se compreenda não apenas os fatos históricos, mas também os mecanismos psicológicos e psicanalíticos que sustentam a indiferença, a crueldade e a banalização da vida.
O primeiro aspecto que merece reflexão é a tendência humana à desresponsabilização quando inserida em sistemas coletivos. Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, cunhou a expressão “banalidade do mal” para descrever como indivíduos comuns podem se tornar agentes de atrocidades ao simplesmente cumprir ordens ou se adaptar às normas de uma instituição. No caso de Barbacena, médicos, enfermeiros, funcionários e até familiares que internavam seus parentes se tornaram parte de uma engrenagem que naturalizava o sofrimento. A mente humana, diante da pressão social e da autoridade institucional, encontra justificativas para se eximir de responsabilidade: “eu apenas sigo protocolos”, “não cabe a mim questionar”, “é assim que sempre foi feito”. Esse mecanismo psicológico de deslocamento da culpa é um dos pilares que sustentam a perpetuação de violências coletivas.
Outro processo relevante é o da desumanização. A psicanálise nos mostra que o ser humano, ao lidar com o outro, projeta nele imagens e significados que podem ser positivos ou negativos. Quando o outro é visto como ameaça, como peso social ou como “indesejável”, ocorre um processo de despersonalização: ele deixa de ser percebido como sujeito de direitos e passa a ser tratado como objeto. Em Barbacena, os internos eram chamados de “loucos”, “inúteis”, “fardos”, e essa linguagem não era apenas descritiva, mas constitutiva de uma realidade em que a dignidade era negada. A linguagem, nesse sentido, funciona como instrumento de violência simbólica que prepara o terreno para a violência física. A mente humana, ao internalizar essas categorias, passa a agir como se a eliminação ou o sofrimento do outro fosse aceitável ou até necessário.
A psicanálise também nos ensina que há mecanismos de defesa que operam em nível inconsciente e que podem contribuir para a indiferença diante da dor alheia. A repressão, por exemplo, permite que o indivíduo ignore sentimentos de compaixão ou culpa para preservar sua própria estabilidade psíquica. A racionalização cria justificativas aparentemente lógicas para atos cruéis, como “eles não têm cura” ou “é melhor que fiquem isolados”. A projeção faz com que características indesejadas sejam atribuídas ao outro, reforçando estigmas e preconceitos. Esses mecanismos, quando coletivamente compartilhados, criam uma cultura institucional em que a violência se torna invisível ou normalizada.
É importante destacar que tais processos não são exclusivos do episódio brasileiro. A história mundial está repleta de exemplos em que sociedades inteiras se deixaram levar por esses mecanismos. O Holocausto nazista, os genocídios em Ruanda e na Bósnia, os campos de trabalho forçado na União Soviética, todos revelam como a mente humana pode ser convencida de que a eliminação ou o sofrimento de grupos específicos é aceitável. Em cada caso, há uma combinação de fatores: ideologias que justificam a exclusão, instituições que legitimam a violência, indivíduos que se adaptam às normas e massas que se tornam indiferentes. A analogia entre Barbacena e esses episódios não é exagerada, pois em ambos os casos o que se observa é a mesma lógica de desumanização e banalização da vida.
No Brasil contemporâneo, embora não tenhamos instituições como o Colônia funcionando da mesma forma, ainda vemos resquícios desses processos. A indiferença diante da violência urbana, o descaso com populações marginalizadas, o preconceito contra pessoas em situação de rua ou usuários de drogas, tudo isso revela que a mente humana continua suscetível a se convencer de que certas vidas valem menos. A sociedade atual, marcada pela velocidade da informação e pela fragmentação das relações, muitas vezes reforça a alienação: o sofrimento do outro é visto como estatística, como notícia distante, e não como realidade que exige empatia e ação. A psicanálise nos lembra que essa indiferença pode ser uma forma de defesa contra a angústia, mas também pode se tornar cumplicidade silenciosa.
O episódio de Barbacena também nos obriga a refletir sobre o papel da autoridade e da ciência. Médicos e psiquiatras, figuras que deveriam zelar pela saúde, tornaram-se agentes da exclusão. Isso nos mostra como o saber científico, quando desvinculado da ética, pode ser instrumentalizado para legitimar atrocidades. A mente humana tende a confiar na autoridade, e essa confiança pode ser manipulada para justificar práticas desumanas. A psicanálise alerta para o perigo da idealização da autoridade, em que o sujeito abdica de sua própria responsabilidade crítica e se submete cegamente. Esse processo é visível não apenas em instituições psiquiátricas, mas também em regimes políticos autoritários, em práticas militares e até em corporações econômicas que exploram trabalhadores sem considerar sua dignidade.
Outro aspecto fundamental é a relação entre poder e exclusão. Michel Foucault analisou como as instituições disciplinares, como hospitais, prisões e escolas, funcionam como mecanismos de controle social. O Colônia de Barbacena não era apenas um hospital, mas um espaço de segregação em que a sociedade depositava aqueles que não se encaixavam em seus padrões. A mente humana, ao internalizar normas sociais rígidas, tende a rejeitar o que é diferente e a buscar sua eliminação simbólica ou física. Esse processo revela como a violência não é apenas fruto de indivíduos cruéis, mas de estruturas sociais que incentivam a exclusão. A psicanálise complementa essa análise ao mostrar que o medo do diferente pode estar ligado a angústias inconscientes, como o medo da própria fragilidade ou da perda de controle.
A reflexão sobre esses processos nos leva a questionar a ideia de “amor ao próximo” como solução. O amor, entendido como sentimento, pode ser frágil e seletivo. O que se faz necessário é o respeito pela vida. O respeito é uma postura ética que não depende de simpatia ou afeto, mas de reconhecimento da dignidade inerente a cada ser humano. A psicanálise nos ensina que o amor pode ser atravessado por ambivalências, por desejos inconscientes de posse ou destruição, enquanto o respeito exige uma decisão consciente de não reduzir o outro a objeto. O desafio da sociedade contemporânea é construir instituições e culturas que promovam esse respeito, mesmo diante das diferenças e das dificuldades.
Ao analisar o episódio de Barbacena, é impossível não pensar na responsabilidade coletiva. Cada funcionário que se calou, cada autoridade que ignorou, cada cidadão que aceitou, contribuiu para a perpetuação da violência. A mente humana, ao se convencer de que não tem responsabilidade, cria um vazio ético que permite que atrocidades aconteçam. Esse processo é visível também na sociedade atual, quando nos tornamos indiferentes ao desmatamento, à fome, à violência policial, às mortes em hospitais precários. A psicanálise nos lembra que essa indiferença pode ser uma forma de evitar a culpa, mas também é uma forma de negar nossa própria humanidade. Reconhecer a responsabilidade é, portanto, um passo essencial para evitar que tragédias se repitam.
Em síntese, os processos que motivam o ser humano a cometer atrocidades como as descritas em Holocausto Brasileiro envolvem uma complexa interação entre mecanismos psicológicos, estruturas sociais e dinâmicas históricas. A desresponsabilização, a desumanização, os mecanismos de defesa inconscientes, a confiança cega na autoridade, o poder disciplinar das instituições e a indiferença coletiva são elementos que se combinam para criar cenários de violência extrema. A mente humana, ao se deixar levar por esses processos, revela sua vulnerabilidade, mas também sua capacidade de transformação. A psicanálise nos mostra que é possível reconhecer esses mecanismos e buscar formas de superá-los, construindo uma ética baseada no respeito pela vida.
O episódio de Barbacena não deve ser visto apenas como uma tragédia do passado, mas como um alerta permanente. Ele nos lembra que a violência pode se instalar silenciosamente, que a indiferença pode ser cúmplice, que a autoridade pode ser manipuladora, e que a mente humana pode se convencer de que não tem responsabilidade. A analogia com outros episódios históricos e com a sociedade atual reforça a necessidade de vigilância ética e de compromisso coletivo. O respeito pela vida, mais do que o amor ao próximo, deve ser o princípio que orienta nossas ações e nossas instituições. Somente assim poderemos evitar que a banalidade do mal se repita e que novas tragédias sejam inscritas na história. O caso de Barbacena nos mostra que a violência não é fruto apenas de indivíduos isolados, mas de sistemas inteiros que se organizam para excluir, silenciar e destruir. A antropologia nos lembra que sociedades constroem inimigos simbólicos para reforçar sua identidade, e que a exclusão é muitas vezes ritualizada e legitimada por instituições que deveriam proteger. A ciência revela que o inconsciente humano pode ser manipulado por mecanismos de defesa que transformam a indiferença em hábito e a crueldade em rotina. A neurociência demonstra que o cérebro, condicionado por normas sociais e pela obediência à autoridade, pode suprimir circuitos de empatia e reforçar a conformidade, tornando possível que pessoas comuns participem de atrocidades sem se perceberem como responsáveis.
O papel das instituições religiosas e científicas nesse processo é particularmente revelador. Freiras que deveriam representar o cuidado espiritual tornaram-se cúmplices da violência, reforçando a exclusão em vez de combatê-la. Médicos e psiquiatras, que deveriam zelar pela saúde, legitimaram práticas desumanas. Esse paradoxo mostra que a autoridade, seja científica ou religiosa, pode ser instrumentalizada para perpetuar a violência quando se afasta de sua ética fundamental. A antropologia da religião e da ciência revela que essas instituições são construções culturais que podem ser sacralizadas e, portanto, blindadas contra críticas. A história alerta para o perigo da idealização dessas figuras de autoridade, que leva indivíduos a abdicar de sua responsabilidade crítica. A neurociência mostra que a obediência a figuras de autoridade moral ou científica pode ativar circuitos de confiança que inibem a crítica, reforçando a submissão. O resultado é uma engrenagem em que o sofrimento humano é normalizado e a responsabilidade é diluída.
O episódio de Barbacena também nos obriga a refletir sobre o futuro. Em uma sociedade marcada pela velocidade da informação e pela fragmentação das relações, o risco da indiferença continua presente. A exposição constante à violência, seja nas notícias ou nas redes sociais, pode dessensibilizar o cérebro, reduzindo sua resposta empática. A antropologia mostra que novas formas de exclusão surgem, como a marginalização de populações inteiras em favelas ou campos de refugiados. A psicanálise alerta para o risco de que mecanismos inconscientes de repressão e racionalização continuem sustentando a indiferença. A neurociência revela que o cérebro humano, embora capaz de empatia, também pode ser condicionado a ignorar o sofrimento quando este se torna cotidiano. O desafio da sociedade contemporânea é construir culturas e instituições que promovam o respeito pela vida, mesmo diante da diferença e da dificuldade.
O respeito pela vida, mais do que o amor ao próximo, deve ser o princípio que orienta nossas ações. O amor, entendido como sentimento, pode ser frágil e seletivo, atravessado por ambivalências inconscientes. O respeito, por outro lado, é uma postura ética que reconhece a dignidade inerente a cada ser humano, independentemente de simpatia ou afeto. A antropologia mostra que o respeito pode ser construído culturalmente como valor coletivo. A psicanálise revela que o respeito exige uma decisão consciente de não reduzir o outro a objeto. A neurociência sugere que práticas de empatia e solidariedade podem fortalecer circuitos neurais ligados ao cuidado, tornando o respeito não apenas uma escolha ética, mas também uma prática que molda o cérebro. O desafio é transformar esse respeito em princípio orientador das instituições, políticas públicas e relações sociais.
O caso de Barbacena é, portanto, um espelho da vulnerabilidade humana e da fragilidade das instituições. Ele nos lembra que a violência pode se instalar silenciosamente, que a indiferença pode ser cúmplice, que a autoridade pode ser manipuladora, e que a mente humana pode se convencer de que não tem responsabilidade. Mas também nos lembra que é possível resistir. A antropologia mostra que culturas podem ser transformadas. A psicanálise revela que o inconsciente pode ser confrontado e elaborado. A neurociência demonstra que o cérebro é plástico e pode ser moldado por práticas de empatia e solidariedade. O respeito pela vida, quando assumido como princípio coletivo, pode ser a chave para evitar que novas tragédias se repitam.
Finalmente, outro case recente “ilustra” e corrobora com anteriormente descrito. O episódio da Cracolândia. Ocorrido em São Paulo no ano de 2025, quando um governante decidiu “fechar” o espaço e remover compulsoriamente os usuários de crack que ali se encontravam, é um exemplo contemporâneo da mesma lógica de exclusão que marcou tragédias como a do Hospital Colônia de Barbacena. A decisão foi apresentada como solução, mas inevitavelmente levanta a questão: solução para quem? Para os dependentes químicos, que necessitavam de políticas de saúde pública, acolhimento e reinserção social, ou para a sociedade que desejava apenas remover de sua vista aquilo que considerava incômodo?
Assim como em Barbacena, não se tratava de curar ou cuidar, mas de esconder. O mecanismo é semelhante: diante de um grupo considerado “indesejável”, a sociedade opta por segregá-lo, removê-lo do espaço público e, assim, aliviar sua própria consciência. A antropologia nos mostra que esse processo é recorrente: culturas constroem zonas de exclusão para reforçar sua identidade e afastar o que ameaça sua ordem simbólica. A psicanálise revela que, inconscientemente, há uma necessidade de projetar no outro aquilo que não se quer reconhecer em si mesmo - fragilidade, dependência, vulnerabilidade. A neurociência acrescenta que, ao desumanizar o outro, o cérebro reduz sua resposta empática, permitindo que a violência institucional seja praticada sem o mesmo impacto emocional.
O fechamento da Cracolândia em 2025 não solucionou o problema da dependência química, apenas deslocou os usuários, fragmentando ainda mais suas vidas e dificultando o acesso a políticas de saúde. É a mesma lógica que sustentou Barbacena: esconder o sofrimento em vez de enfrentá-lo, negar a dignidade em vez de reconhecê-la. Em ambos os casos, segmentos da sociedade que deveriam zelar pelo bem-estar - governantes, médicos, religiosos, autoridades - falharam em sua missão ética, preferindo a aparência de ordem à responsabilidade pelo cuidado.
Essa analogia revela que a banalidade do mal não é apenas um conceito histórico, mas uma realidade que se atualiza. A indiferença coletiva, a obediência cega à autoridade e a desresponsabilização individual continuam a moldar decisões que, sob o pretexto de solucionar problemas, apenas perpetuam a exclusão. O respeito pela vida, princípio que deveria orientar qualquer ação pública, é substituído pela lógica da invisibilidade: se não vemos, não existe; se não existe, não nos incomoda. Assim, a Cracolândia de 2025 se conecta diretamente ao Colônia de Barbacena e a tantos outros episódios em que a sociedade preferiu remover, silenciar ou exterminar em vez de cuidar. Ambos são expressões de uma mesma falha ética: a incapacidade de reconhecer no outro, por mais vulnerável que seja, a dignidade que nos constitui como humanos.
Enfim, o episódio de Barbacena não é apenas uma tragédia do passado, mas um alerta permanente para o presente e o futuro. Ele nos obriga a reconhecer que a violência não é exceção, mas possibilidade sempre presente na condição humana. Ele nos desafia a construir uma ética baseada no respeito pela vida, a confrontar nossos mecanismos inconscientes de indiferença, a transformar nossas culturas de exclusão e a fortalecer nossos circuitos neurais de empatia. Ele nos lembra que cada indivíduo, cada instituição, cada sociedade tem responsabilidade. E que somente ao assumir essa responsabilidade poderemos evitar que a banalidade do mal se torne rotina e que novas tragédias sejam inscritas na história.


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