segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

AFETO: UMA NECESSIDADE EMOCIONAL OU MECÂNICA?

AFETO DE SILICONE - COMPANHEIRISMO ARTIFICIAL

E A BUSCA HUMANA POR CONEXÃO NA ERA DA SOLIDÃO

Por Heitor Jorge Lau

            A crescente sofisticação da tecnologia tem nos presenteado com artefatos cada vez mais indistinguíveis da realidade biológica, um fenômeno que se estende para além do universo infantil dos bebês reborn (uma aberração para mentes insanas) e alcança a esfera íntima e complexa dos relacionamentos humanos. A aquisição de bonecas e bonecos com características humanas realistas, projetadas para oferecer companhia e até mesmo interação sexual, levanta questões profundas sobre a natureza do afeto, busca por intimidade e a crescente dificuldade de estabelecer laços genuínos em um mundo paradoxalmente hiperconectado, mas frequentemente marcado pela solidão. Sob uma perspectiva científica, a atração por esses companheiros artificiais pode ser parcialmente compreendida através da neurobiologia do prazer e do apego. O toque, mesmo direcionado a um objeto inanimado, pode desencadear a liberação de neurotransmissores como a ocitocina e a dopamina, associados ao bem-estar e à sensação de recompensa. Não é a boneca ou boneco em si que gera o prazer, mas a reação química do nosso próprio cérebro à estimulação. Indivíduos que enfrentam dificuldades em formar ou manter relacionamentos interpessoais, seja por timidez extrema, traumas passados, transtornos de ansiedade social ou um isolamento crônico, podem encontrar nessas bonecas e bonecos uma fonte previsível e controlável de conforto físico e, em certa medida, emocional. A ausência do medo da rejeição, do conflito, da crítica ou da complexidade inerente às dinâmicas humanas pode ser um fator determinante nessa escolha, oferecendo uma ilusão de intimidade sem as vulnerabilidades que acompanham as relações reais. Para alguns, pode ser uma estratégia de enfrentamento para a solidão profunda, enquanto para outros, pode refletir uma dificuldade em navegar as complexidades das interações humanas autênticas.

            Do ponto de vista filosófico, a busca por um companheiro artificial nos confronta com a própria definição de relacionamento e a natureza da humanidade. Será que a essência de uma relação reside na reciprocidade emocional, troca intelectual e no crescimento mútuo, ou pode ser reduzida à satisfação de necessidades físicas e à sensação de ser cuidado? Pensadores como Martin Buber, com sua distinção entre as relações "Eu-Tu" e "Eu-Isso", nos alertam para o perigo de transformar o outro em um mero objeto de uso e gratificação. Ao adquirir uma boneca ou boneco como esposa ou esposo ou parceiro sexual, o indivíduo estabelece, por definição, uma relação "Eu-Isso", onde a boneca ou boneco é um objeto passivo, desprovido de consciência, sentimentos ou a capacidade de oferecer uma resposta genuína às necessidades emocionais complexas. Essa dinâmica levanta a questão ética de objetificar o ser humano, mesmo que na forma de uma representação artificial, e questiona se a busca por uma companhia desprovida de autonomia pode levar a uma alienação ainda maior da própria humanidade e da capacidade de estabelecer laços autênticos. A busca por uma perfeição artificial, isenta das imperfeições e desafios inerentes aos relacionamentos reais, ecoa a antiga busca pelo mito do companheiro ideal, desprovido de falhas e totalmente dedicado às necessidades do indivíduo. É uma fuga da realidade em sua forma mais crua, onde a imperfeição e a vulnerabilidade são trocadas por uma segurança programada.

            A conexão desse fenômeno com os problemas das redes sociais e da hiperconectividade é profunda e multifacetada. Assim como os bebês reborn, a existência e a socialização dessas bonecas e bonecos “adultos” são frequentemente amplificadas em plataformas digitais. Fóruns online, grupos de discussão e perfis em redes sociais dedicados a esses relacionamentos artificiais criam bolhas de validação onde a prática é normalizada e encorajada. A exposição constante a imagens e narrativas que tratam essas bonecas e bonecos como seres vivos ou parceiros legítimos contribui para a normalização do simulacro, turvando ainda mais a linha entre o real e o imaginário. As redes sociais, com seus algoritmos que nos aprisionam em bolhas de afinidade, podem reforçar a crença de que essa forma de companheirismo é válida e até mesmo desejável, isolando os indivíduos de perspectivas que questionem essa realidade construída. É como se a caverna de Platão tivesse se tornado digital, com sombras projetadas por outros prisioneiros, todos imersos em suas próprias versões da realidade, cada vez mais distantes do mundo exterior e das complexidades de interações humanas não filtradas. O tempo gasto em interações virtuais, muitas vezes superficiais e baseadas em representações idealizadas, pode levar a uma dificuldade crescente em lidar com a complexidade e a imperfeição das relações humanas reais, tornando a previsibilidade e o controle oferecidos por uma boneca ou boneco artificial aparentemente mais atraentes. A satisfação imediata e a ausência de responsabilidades inerentes a esses relacionamentos podem criar um ciclo vicioso, onde a busca por gratificação rápida e sem esforço substitui o investimento necessário para construir laços autênticos.

            Exemplos da crescente presença desses companheiros artificiais podem ser encontrados em diferentes culturas e contextos. No Japão, por exemplo, o fenômeno das "dakimakuras" (travesseiros de corpo com estampas de personagens de anime) evoluiu para a criação de bonecas e bonecos de silicone de tamanho real, com inteligência artificial rudimentar, capazes de manter conversas básicas e reagir a toques. Esses parceiros (por assim dizer) virtuais e físicos preenchem, para alguns, a lacuna da solidão em uma sociedade marcada pelo individualismo e pelas altas taxas de isolamento social. Há relatos de indivíduos que vivem suas vidas cotidianas com essas bonecas ou bonecos, levando-as a passeios, restaurantes e até mesmo apresentando-as a amigos e familiares, criando uma ficção compartilhada que se manifesta no mundo real (aqui é perceptível a conivência, seja lá por qual motivo). Outro exemplo pode ser encontrado em casos onde pessoas investem somas consideráveis em bonecas ou bonecos personalizados, com características físicas e até mesmo histórias de vida imaginárias, projetando nelas seus desejos e necessidades afetivas. Esses casos ilustram a complexidade da motivação por trás dessa escolha, que pode variar desde a busca por alívio para a solidão e o desejo sexual até a manifestação de parafilias ou dificuldades psicológicas mais profundas. No entanto, em todos esses casos, persiste a questão fundamental de se essa forma de companheirismo artificial é um substituto adequado para as relações humanas genuínas ou se representa um sintoma de uma sociedade cada vez mais desconectada de sua própria essência relacional. A linha tênue entre o conforto emocional e a fuga da realidade, satisfação de necessidades básicas e a construção de laços significativos, permanece um desafio crucial a ser enfrentado na era da crescente sofisticação tecnológica e da persistente solidão humana. A verdadeira questão não é se essas bonecas e bonecos podem substituir o ser humano, mas o que a nossa crescente dependência deles revela sobre a nossa própria humanidade e nossa capacidade de conexão autêntica.

 


 

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