terça-feira, 2 de dezembro de 2025

O SER HUMANO É UM SER IRRACIONAL COM LAMPEJOS DE RACIONALIDADE

 

A ILUSÃO DA RAZÃO

Por Heitor Jorge Lau

            O ser humano é frequentemente descrito como o ápice da evolução, o animal que se ergueu do chão, dominou o fogo, construiu cidades, desenvolveu ciência e filosofia, e que, por meio da razão, conseguiu transformar o mundo em algo que nenhum outro ser vivo jamais alcançou. No entanto, essa mesma criatura que se orgulha de sua racionalidade é também responsável por atrocidades que desafiam qualquer lógica, por crimes que parecem negar a própria ideia de progresso, e por comportamentos que revelam uma face sombria e irracional. A história da humanidade é marcada por guerras intermináveis, por corrupção que corrói sociedades, por violência contra os mais vulneráveis, por destruição da natureza que sustenta a vida, e por práticas que demonstram que, apesar de toda a evolução técnica e intelectual, o homem continua sendo um animal em luta contra seus próprios instintos. Surge, então, a questão: será que o homem é realmente racional, ou apenas um ser irracional que, em raros momentos, consegue se iluminar pela razão?

            A contradição entre a racionalidade proclamada e a irracionalidade praticada é evidente. Desde os primeiros registros históricos, percebemos sociedades que se organizam em torno de leis, códigos morais e sistemas de crença que buscam controlar os impulsos destrutivos do ser humano. A criação da religião, da filosofia e do direito pode ser interpretada como tentativas de domesticar esse animal que, sem freios, se entrega à violência e ao caos. Mas, ao mesmo tempo, essas mesmas sociedades que criaram sistemas de ordem foram palco de massacres, escravidão, perseguições e guerras. O homem constrói templos e bibliotecas, mas também ergue campos de concentração e prisões. Ele escreve tratados sobre ética e justiça, mas pratica genocídios e explorações. Essa dualidade sugere que a racionalidade não é uma essência constante, mas sim um lampejo que aparece em meio a uma natureza predominantemente irracional.

            A irracionalidade humana se manifesta em diferentes níveis. No plano individual, encontramos pessoas que, movidas por impulsos, cometem crimes hediondos, abusam de outros seres humanos, exploram animais, ou simplesmente agem de forma egoísta e destrutiva. No plano coletivo, existem sociedades inteiras que se mobilizam para a guerra, que aceitam a corrupção como parte do sistema, que devastam florestas e rios em nome do lucro imediato, sem pensar nas consequências para as futuras gerações (e as atuais também). A irracionalidade parece ser a regra, enquanto a razão é a exceção. E quando a razão se manifesta, ela é frágil, facilmente corrompida pelos interesses, pelas paixões e pelos instintos.

            É curioso observar que, ao longo da história, sempre houve a necessidade de controlar o ser humano. Desde as primeiras tribos, líderes e xamãs buscavam impor regras para evitar que a comunidade se destruísse. Com o surgimento das civilizações, vieram os códigos de leis, como o Código de Hamurábi, que estabelecia punições severas para quem fugisse às regras. Mais tarde, filósofos como Platão e Aristóteles refletiram sobre a necessidade de educar e disciplinar o homem para que ele pudesse viver em sociedade. A própria ideia de Estado moderno, com suas instituições de vigilância e punição, é uma resposta à percepção de que o ser humano, deixado livre, tende ao caos. A polícia, os tribunais, as prisões, as escolas, as religiões, todos esses mecanismos podem ser vistos como tentativas de domesticar o animal humano, de mantê-lo dentro de limites aceitáveis.

            Mas por que essa necessidade constante de controle? Talvez porque a racionalidade não seja natural ao homem, mas sim uma construção artificial, algo que precisa ser ensinado, reforçado e mantido. O instinto humano, como o de qualquer animal, busca a sobrevivência, o prazer imediato, a dominação sobre os outros. A razão, por outro lado, exige reflexão, exige pensar nas consequências, exige renúncia. Não é algo que surge espontaneamente, mas sim algo que precisa ser cultivado e construído no decorrer da vida. E como qualquer cultivo, pode ser facilmente perdido se não houver cuidado. É por isso que sempre existiram sociedades que, em momentos de crise, rapidamente desceram à barbárie, revelando que a camada de racionalidade era apenas uma fina película sobre uma base irracional.

            As guerras são um exemplo claro dessa irracionalidade. Apesar de todos os avanços tecnológicos, das tentativas de criar organismos internacionais para promover a paz, das lições aprendidas com conflitos anteriores, o homem continua a guerrear. Sempre há uma nova guerra, sempre há uma nova justificativa para matar, destruir e subjugar. A guerra é, em essência, a irracionalidade coletiva, a incapacidade de resolver conflitos pela razão. E, paradoxalmente, é também um momento em que a racionalidade técnica se manifesta de forma perversa: o homem usa sua inteligência para criar armas cada vez mais sofisticadas, para planejar estratégias de destruição em massa, para organizar sistemas de propaganda que justificam o massacre. A razão, nesse caso, não é usada para evitar a barbárie, mas para potencializá-la.

            A corrupção é outro exemplo da irracionalidade humana. Em teoria, todos sabem que a corrupção destrói sociedades, que mina a confiança, que impede o desenvolvimento. Mas, na prática, ela continua a existir em todos os níveis, porque o instinto de obter vantagem imediata, de acumular poder e riqueza, é mais forte do que a razão que aponta para as consequências negativas. O mesmo vale para os maus-tratos aos animais, para a destruição da natureza, para o abuso contra idosos e crianças. O homem sabe, racionalmente, que essas práticas são erradas, que causam sofrimento, que comprometem o futuro. Mas, irracionalmente, continua a praticá-las, movido por interesses egoístas ou por pura indiferença. Essa contradição leva à reflexão sobre o verdadeiro lugar da razão na vida humana. Talvez a razão não seja a essência do homem, mas apenas uma ferramenta que ele aprendeu a usar em determinados momentos. Uma ferramenta que pode construir maravilhas, como a ciência, a arte, a filosofia, mas que não é suficiente para dominar os instintos. O homem não é um ser racional por natureza, mas sim um ser irracional que, em alguns momentos, consegue usar a razão para criar algo grandioso. Esses momentos são raros, e é por isso que a história da humanidade é marcada por mais destruição do que construção, por mais violência do que paz.

            No entanto, seria injusto negar os momentos em que a razão realmente transformou o mundo. A abolição da escravidão, a criação dos direitos humanos, os avanços da medicina, as descobertas científicas que melhoraram a vida de milhões de pessoas, tudo isso são exemplos de como a razão pode iluminar a humanidade. Mas é importante perceber que esses avanços não vieram naturalmente, não foram fruto de uma racionalidade espontânea. Eles foram conquistados com esforço, luta e disciplina. Foram frutos de uma razão que precisou ser cultivada contra a irracionalidade dominante. E mesmo esses avanços estão sempre sob ameaça, porque a irracionalidade nunca desaparece, apenas se esconde, esperando o momento de voltar.

            A ideia de que o homem precisa ser constantemente controlado, vigiado e doutrinado encontra respaldo na própria experiência histórica. Sem controle, o homem se entrega aos instintos. É por isso que existem leis, instituições, sistemas de educação, religiões, filosofias... Todos esses mecanismos são tentativas de manter o homem dentro de limites aceitáveis. Mas, ao mesmo tempo, há um perigo: o excesso de controle pode levar à opressão, à perda da liberdade, à criação de sistemas totalitários que sufocam a criatividade e a individualidade. O desafio, portanto, é encontrar um equilíbrio entre controlar a irracionalidade e permitir que a razão floresça. Um equilíbrio que nunca é fácil de alcançar, e que muitas vezes se perde. Talvez seja mais honesto admitir que o homem não é um ser racional, mas sim um ser irracional com momentos de razão. Essa visão nos ajuda a compreender melhor a história da humanidade e a não nos iludir com a ideia de progresso linear. O progresso existe, mas é frágil, sempre ameaçado pela irracionalidade. A razão é uma conquista, não uma essência. E como toda conquista, pode ser perdida. Reconhecer isso é fundamental para que possamos continuar a lutar pela razão, sem esquecer que a irracionalidade está sempre presente.

            O futuro da humanidade (e o presente) depende dessa luta constante entre razão e irracionalidade. Se conseguirmos cultivar a razão, talvez possamos construir um mundo mais justo, pacífico e mais sustentável. Mas se nos deixarmos dominar pelos instintos, continuaremos a repetir os mesmos erros, a destruir o que construímos, a viver em ciclos de barbárie e reconstrução. A história mostra que essa luta nunca termina, que não há vitória definitiva. O homem é, e talvez sempre será, um animal irracional que, em alguns momentos, consegue se iluminar pela razão. A ilusão da razão é acreditar que ela é constante, quando na verdade ela é apenas um lampejo em meio à escuridão.


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