sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

VAZIO COGNITIVO - O RESULTADO DA INANIÇÃO INTELECTUAL

 

DRENO EDUCACIONAL

QUANDO O SISTEMA DEIXA ESCAPAR O FUTURO

Por Heitor Jorge Lau

            A metáfora do “dreno educacional” pode soar estranha à primeira vista, mas é justamente essa estranheza que nos convida a refletir sobre os vazamentos invisíveis que ocorrem dentro do sistema de ensino e que, pouco a pouco, escoam energia, recursos e sobretudo potencial humano. Assim como um dreno cirúrgico retira fluidos indesejados do corpo, o dreno educacional retira da instituição e da sociedade aquilo que deveria ser preservado: o entusiasmo dos estudantes, a criatividade dos professores, a confiança das famílias e a esperança coletiva de que a educação é capaz de transformar vidas. Pensar nesse conceito é pensar em perdas silenciosas, em desperdícios que não aparecem em relatórios oficiais, mas que se manifestam no olhar cansado de um professor, na apatia de um aluno ou na descrença de uma comunidade inteira diante da promessa de que estudar abre portas. O dreno educacional não é um objeto físico, mas uma metáfora para os mecanismos que sugam vitalidade do processo de aprendizagem. Ele se manifesta quando a burocracia engole o tempo que deveria ser dedicado à preparação de aulas inspiradoras, quando a falta de infraestrutura transforma a sala de aula em um espaço de sobrevivência em vez de descoberta, quando políticas públicas se concentram em números e estatísticas sem perceber que por trás de cada dado há uma história humana. O dreno educacional é o oposto da irrigação: em vez de nutrir, ele retira; em vez de fortalecer, ele enfraquece; em vez de abrir caminhos, ele fecha possibilidades.

            Ao observarmos a realidade das instituições de ensino (todas as modalidades), percebemos que esse dreno se apresenta em múltiplas formas. Há o dreno da motivação, que ocorre quando os estudantes não conseguem enxergar sentido no que aprendem. Há o dreno da criatividade, que se instala quando professores são obrigados a seguir currículos engessados e não têm espaço para experimentar novas metodologias. Há o dreno dos recursos, que se revela na falta de materiais básicos, na precariedade tecnológica ou na ausência de apoio psicológico. E há, sobretudo, o dreno da esperança, que se manifesta quando a sociedade deixa de acreditar que a educação é capaz de reduzir desigualdades e construir um futuro mais justo. Esse conceito nos ajuda a compreender que a educação não falha apenas por ausência de investimento financeiro, mas também por uma série de microperdas cotidianas que, acumuladas, criam um sistema debilitado. É como um balde furado: não importa o quanto de água se coloque dentro, ela sempre escorrerá pelos pequenos buracos. O dreno educacional é feito desses buracos invisíveis, que podem parecer insignificantes isoladamente, mas juntos comprometem toda a estrutura. E é justamente por isso que precisamos falar sobre ele: porque não basta pensar em grandes reformas se não cuidarmos dos detalhes que drenam silenciosamente a energia do processo educativo.

            Um exemplo claro desse dreno está na relação entre instituição de ensino e comunidade. Quando a instituição não dialoga com o entorno, quando não reconhece a cultura local, quando não valoriza os saberes que os estudantes trazem de casa, ela cria um escoamento de sentido. O educando passa a sentir que o aprendizado não tem conexão com sua vida real (ausência de referência), e o conhecimento se torna algo abstrato, distante, quase inútil. Esse é um dos drenos mais perigosos, porque mina a motivação intrínseca, aquela que nasce do desejo de compreender o mundo e de se reconhecer nele. Sem essa motivação, o aprendizado se torna mera obrigação, e o local educador perde sua função transformadora. Outro dreno importante é o da desigualdade. Em sociedades marcadas por profundas diferenças socioeconômicas, a educação deveria ser um mecanismo de compensação, capaz de oferecer oportunidades iguais a todos. No entanto, muitas vezes ela acaba reproduzindo e até ampliando essas desigualdades. Quando estudantes de instituições públicas não têm acesso às mesmas condições que os de instituições privadas, quando professores em regiões periféricas trabalham em ambientes precários, quando a meritocracia (que é falha) é aplicada sem considerar os pontos de partida distintos, o sistema cria um dreno que retira dos mais vulneráveis justamente aquilo que poderia lhes garantir um futuro melhor. Esse dreno não é apenas educacional, mas também social, porque perpetua ciclos de exclusão e limita a mobilidade.

            Há ainda o dreno da inovação. Em um mundo em constante transformação, a educação precisa acompanhar as mudanças tecnológicas, culturais e econômicas. No entanto, muitas vezes ela se mantém presa a modelos ultrapassados, repetindo fórmulas que já não dialogam com a realidade dos estudantes. Quando a instituição insiste em métodos que não despertam curiosidade, quando ignora o potencial das novas mídias, quando não prepara os jovens para lidar com problemas complexos e interdisciplinares, ela cria um dreno que retira da sociedade a capacidade de formar cidadãos criativos e críticos. Esse dreno é particularmente grave porque compromete a competitividade de uma nação e sua capacidade de inovar. Mas talvez o dreno mais profundo seja o da confiança. A educação é um pacto social: pais confiam que a instituição cuidará de seus filhos, professores confiam que terão apoio para exercer sua missão, estudantes confiam que o esforço de estudar será recompensado no futuro. Quando esse pacto se rompe, instala-se um dreno que corrói a base de todo o sistema. Se os pais não acreditam na instituição, eles não incentivam os filhos. Se os professores não confiam nas políticas públicas, eles se desmotivam. Se os estudantes não acreditam que estudar vale a pena, eles abandonam. Esse dreno é devastador porque não se resolve apenas com recursos materiais, ele exige reconstrução de vínculos, diálogo e compromisso coletivo.

            Pensar no dreno educacional é também pensar em como revertê-lo. Se há vazamentos, é preciso identificar suas causas e buscar formas de estancar a perda. Isso significa valorizar o professor, não apenas com salários dignos, mas com condições reais de trabalho e autonomia pedagógica. Significa ouvir os estudantes, compreender suas necessidades, conectar o currículo às suas vidas (principalmente). Significa investir em infraestrutura, mas também em cultura educacional, em ambientes que inspirem pertencimento e motivação. Significa, sobretudo, reconhecer que a educação não é apenas transmissão de conteúdo, mas construção de sentido. Quando o estudante percebe que o conhecimento tem relevância para sua vida, o dreno se fecha e a energia retorna. O dreno educacional também nos convida a refletir sobre o papel da sociedade. Muitas vezes, delegamos à instituição toda a responsabilidade pela formação, esquecendo que a educação é um processo coletivo. Famílias, comunidades, empresas, governos, todos têm parte nesse pacto. Quando um desses atores se ausenta, cria-se um dreno. Se a família não acompanha, o aluno perde apoio. Se a comunidade não valoriza, a instituição se isola. Se o governo não investe, os recursos se esvaem. Se as empresas não reconhecem o valor da formação, os jovens não encontram oportunidades. O dreno educacional, portanto, não é apenas um problema da instituição, mas um problema da sociedade como um todo.

            Essa metáfora também nos ajuda a pensar em termos de energia emocional. A educação é feita de entusiasmo, paixão pelo conhecimento e de curiosidade. Quando esses elementos são drenados, o processo se torna mecânico, burocrático e sem vida. É por isso que tantas vezes percebemos estudantes desmotivados, professores exaustos e gestores frustrados. O dreno educacional retira a chama que deveria iluminar o caminho da aprendizagem. E recuperar essa chama exige mais do que reformas estruturais: exige cuidado com as pessoas, reconhecimento de suas histórias, valorização de suas conquistas... Exige um olhar para a educação não apenas como um sistema, mas como uma experiência humana. Ao longo da história, diferentes sociedades enfrentaram seus próprios drenos educacionais. Em alguns casos, eles se manifestaram como censura, quando o acesso ao conhecimento era limitado por interesses políticos ou religiosos. Em outros, como elitismo, quando apenas uma parcela da população tinha direito à educação. Hoje, nossos drenos são mais sutis, mas não menos perigosos. Eles se escondem em currículos desatualizados, em avaliações que medem quantidade e não qualidade, em políticas que priorizam números em vez de pessoas. Reconhecer esses drenos é o primeiro passo para combatê-los, porque só podemos corrigir aquilo que conseguimos enxergar. O conceito de dreno educacional também nos leva a pensar em metáforas opostas. Se há drenos que retiram energia, precisamos criar canais que a devolvam. Podemos falar em irrigação educacional, fontes de motivação e reservatórios de esperança. Isso significa investir em práticas pedagógicas que despertem curiosidade, em projetos que conectem instituição e comunidade, em políticas que valorizem a diversidade cultural. Significa criar ambientes em que o estudante se sinta protagonista, em que o professor se sinta apoiado, em que a sociedade se sinta parte. Fechar os drenos não é suficiente, é preciso também abrir caminhos para que a energia circule e se multiplique.

            Enfim, o dreno educacional é um convite à vigilância. Ele nos lembra que a educação é frágil, que pode ser corroída por pequenas perdas, que precisa ser constantemente cuidada. Nos lembra que não basta pensar em grandes reformas se não olharmos para os detalhes, para os gestos cotidianos, para as relações humanas que sustentam o processo de aprendizagem. É na sala de aula, no encontro entre professor e aluno, que a educação acontece de fato. Se esse encontro é esvaziado, se não há entusiasmo, se não há confiança, o dreno se instala e o futuro escorre silenciosamente. Por isso, falar em dreno educacional é também falar em responsabilidade coletiva. Não podemos esperar que apenas governos ou gestores resolvam o problema. Cada pessoa que acredita na educação tem o dever de identificar e combater os drenos ao seu alcance. Um professor pode fechar o dreno da apatia ao trazer para a aula exemplos que dialoguem com a realidade dos estudantes. Uma família pode fechar o dreno da desmotivação ao valorizar o esforço dos filhos e reconhecer suas conquistas (e participar, dar exemplos, também buscando o conhecimento). Uma comunidade pode fechar o dreno da exclusão ao apoiar projetos educacionais e abrir espaços para que os jovens participem. Uma empresa pode fechar o dreno da descrença ao oferecer oportunidades a quem se forma. Cada gesto conta, porque cada gesto pode impedir que a energia da educação se perca.

            O dreno educacional, portanto, não é apenas uma metáfora crítica, mas também uma ferramenta de diagnóstico. Ele nos ajuda a enxergar onde estão os vazamentos, onde a energia se esvai, onde o sistema perde força. E, ao mesmo tempo, nos inspira a buscar soluções criativas, a pensar em formas de devolver vitalidade ao processo de ensino. Ele nos lembra que a educação é um organismo vivo, que precisa ser constantemente nutrido, protegido e renovado. Nos lembra que não basta ensinar conteúdos, é preciso cultivar sentidos, valores e esperanças. Se quisermos construir um futuro em que a educação seja realmente transformadora, precisamos assumir o compromisso de fechar os drenos e abrir as fontes. Precisamos olhar para cada sala de ensino como um espaço de possibilidades, para cada estudante como um portador de sonhos, para cada professor como um guardião de saberes. Precisamos reconhecer que a educação não é apenas um direito, mas também uma responsabilidade compartilhada. E precisamos, sobretudo, acreditar que é possível mudar. Porque acreditar já é, em si, um ato de resistência contra o dreno da descrença.

            O dreno educacional é silencioso, mas não invisível. Ele se revela nos índices de evasão escolar, nos baixos resultados de aprendizagem, na falta de entusiasmo dos jovens, na exaustão dos professores... Ele se revela nas desigualdades que persistem, nas oportunidades que não chegam, nos talentos que se perdem... Mas também é possível enxergar os sinais de que ele pode ser combatido: nas instituições que inovam, nos professores que resistem, nos estudantes que se engajam, nas comunidades que apoiam. Cada história de superação é uma prova de que o dreno não é inevitável, de que é possível estancar as perdas e recuperar a energia. Ao final, pensar no dreno educacional é pensar em futuro. É pensar em como queremos que nossas sociedades sejam daqui a vinte, trinta, cinquenta anos. É pensar em que tipo de cidadãos queremos formar, em que tipo de mundo queremos construir... Se permitirmos que os drenos continuem abertos, estaremos condenando gerações inteiras a viver em um sistema esvaziado, incapaz de oferecer oportunidades reais. Mas se tivermos coragem de enfrentá-los, de fechar cada vazamento, de recuperar cada energia perdida, estaremos construindo um futuro em que a educação cumpre sua promessa de ser a chave para a transformação. O dreno educacional é, portanto, um alerta. Ele nos chama a atenção para aquilo que escapa sem que percebamos, para aquilo que se perde sem que valorizemos, para aquilo que se esvai sem que cuidemos. Mas é também uma oportunidade: a oportunidade de repensar, reconstruir e renovar. Porque cada dreno fechado é uma porta aberta para o futuro. E cada gesto de cuidado com a educação é um investimento naquilo que temos de mais precioso: a capacidade humana de aprender, crescer e transformar o mundo.


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