A IMPRESSÃO DIGITAL EXISTENTE NOS OLHOS
Por Heitor Jorge Lau
Quando olhamos para uma pessoa desconhecida pela primeira vez e percebemos a sensação quase imediata de confiança ou desconfiança, algo profundamente humano está em operação. Trata-se de um fenômeno tão comum que raramente é questionado, mas tão complexo que atravessa simultaneamente a biologia, a história psíquica individual e os códigos culturais que aprendemos ao longo da vida. Em poucos segundos, às vezes em frações deles, formamos uma impressão que parece vir “dos olhos” do outro, como se o caráter pudesse ser lido ali, de modo direto e quase incontestável. Embora essa experiência seja frequentemente descrita como intuição, ela não é mágica nem arbitrária, ela emerge da articulação entre sistemas cerebrais antigos, processos inconscientes e aprendizados sociais profundamente enraizados. Do ponto de vista neurobiológico, o cérebro humano evoluiu para tomar decisões rápidas em contextos de incerteza social. Antes mesmo do desenvolvimento da linguagem articulada, a sobrevivência dependia da capacidade de avaliar se um outro indivíduo representava ameaça, neutralidade ou possibilidade de cooperação. Nesse cenário, o rosto - e, de modo especial, os olhos - tornou-se uma fonte privilegiada de informação. Estruturas cerebrais como a amígdala, um conjunto de núcleos localizado no sistema límbico e envolvido na detecção de perigo e na atribuição de valor emocional aos estímulos, respondem de maneira extremamente rápida a expressões faciais. A amígdala não “pensa” no sentido reflexivo, ela reage. Seu funcionamento pode ser comparado a um alarme de fumaça sensível: é melhor disparar algumas vezes sem necessidade do que falhar diante de um incêndio real.
Essa resposta rápida ocorre antes que o córtex pré-frontal, região associada ao julgamento consciente, à análise racional e ao controle inibitório, consiga avaliar a situação de modo mais elaborado. É por isso que a sensação de confiança ou desconfiança surge antes de qualquer argumento lógico. Quando dizemos “não sei por quê, mas não confiei”, estamos descrevendo exatamente essa defasagem temporal entre sentir e pensar. Os olhos, nesse contexto, funcionam como um campo concentrado de sinais sutis: dilatação pupilar, direção do olhar, frequência de piscadas, microexpressões musculares... A maioria dessas informações é processada sem que o sujeito tenha consciência disso, assim como um motorista experiente ajusta o volante sem precisar calcular conscientemente cada movimento. No entanto, se esse fenômeno fosse apenas biológico, todos reagiríamos da mesma forma às mesmas pessoas, o que claramente não acontece. Aqui entra a dimensão psicanalítica, que complexifica o quadro ao mostrar que perceber o outro é sempre, em alguma medida, reencontrar a própria história. Sigmund Freud, ao introduzir o conceito de inconsciente, rompeu com a ideia de que somos senhores absolutos de nossas percepções e julgamentos. Para ele, toda percepção é atravessada por traços mnêmicos, isto é, marcas deixadas por experiências passadas que continuam a operar mesmo quando não lembramos delas conscientemente. Assim, o olhar de um desconhecido pode reativar, sem aviso, afetos ligados a figuras anteriores: um pai severo, uma professora acolhedora, alguém que feriu ou protegeu.
Nesses casos, a sensação de confiança ou desconfiança não se origina apenas no outro, mas na ressonância entre aquele rosto e um repertório interno de imagens e afetos. Trata-se do mecanismo de projeção, um conceito psicanalítico que descreve o ato de atribuir ao outro conteúdos que pertencem ao próprio sujeito. Quando projetamos, não estamos necessariamente “errando”, estamos tentando dar forma a algo interno que ainda não encontrou palavras. O olhar desconhecido funciona como uma superfície relativamente vazia, sobre a qual o psiquismo escreve rapidamente uma história provisória. Jacques Lacan aprofunda essa discussão ao distinguir o olho do olhar. O olho é o órgão da visão; o olhar, para Lacan, é uma função simbólica, ligada à experiência de ser visto. O desconforto que às vezes sentimos ao cruzar o olhar de alguém não vem apenas do que vemos, mas do que sentimos que o outro vê em nós. É como entrar em uma sala silenciosa e perceber que todas as atenções se voltam para você: mesmo sem nenhuma palavra, algo se impõe. Nesse sentido, o julgamento rápido que fazemos do outro pode ser também uma defesa frente à angústia de sermos olhados, avaliados ou desvelados. Esse ponto ajuda a entender por que, muitas vezes, a sensação de desconfiança surge sem que consigamos identificar qualquer traço objetivamente ameaçador. O problema não está necessariamente no outro, mas no tipo de posição subjetiva que aquele encontro convoca. Alguém pode nos parecer “opaco”, “frio” ou “difícil de ler”, e essa indeterminação pode ser vivida como ameaça. O ser humano tende a desconfiar do que não consegue simbolizar rapidamente. É como caminhar em uma rua pouco iluminada: mesmo que não haja perigo real, a ausência de informação suficiente gera tensão.
A antropologia acrescenta outra camada essencial a essa discussão ao mostrar que aquilo que lemos como um “olhar confiável” é, em grande parte, culturalmente aprendido. Não nascemos sabendo como interpretar expressões faciais. Nós aprendemos isso em interações repetidas ao longo da vida. Em algumas culturas, sustentar o olhar é sinal de franqueza e segurança; em outras, pode ser visto como desrespeito ou desafio. Uma criança aprende essas regras de forma implícita, observando as reações dos adultos e ajustando seu comportamento para evitar punições ou obter aprovação. Com o tempo, essas normas tornam-se tão incorporadas que passam a parecer naturais. Isso significa que o mesmo olhar pode ser interpretado de maneiras radicalmente diferentes dependendo do contexto cultural. Um exemplo cotidiano ajuda a ilustrar essa ideia: imagine alguém que evita contato visual durante uma conversa. Para algumas pessoas, isso desperta desconfiança, como se o outro estivesse escondendo algo. Para outras, pode ser interpretado como timidez, respeito ou até educação. O que muda não é o olhar em si, mas o código simbólico que o interpreta. Assim, quando sentimos confiança ou desconfiança “no olhar”, estamos mobilizando um dicionário cultural silencioso, aprendido ao longo de anos.
Há ainda um aspecto ético importante nesse fenômeno. A rapidez desses julgamentos pode ser adaptativa, mas também pode sustentar preconceitos e exclusões. O cérebro gosta de atalhos, e a leitura instantânea do outro é um deles. O problema surge quando esquecemos que esses atalhos produzem hipóteses, não verdades. Transformar uma sensação inicial em julgamento definitivo é confundir um rascunho com uma obra acabada. É como decidir que um livro é ruim apenas pela primeira frase, sem permitir que a narrativa se desenvolva. Ainda assim, seria ingênuo afirmar que essas percepções devem ser simplesmente ignoradas. Elas carregam informações valiosas sobre o estado emocional do próprio sujeito e sobre a dinâmica relacional que se instaura naquele encontro. Em vez de perguntar “isso é verdade ou mentira?”, talvez seja mais produtivo perguntar “o que essa sensação está tentando me dizer?”. Às vezes, a desconfiança aponta para uma incongruência real no comportamento do outro; em outras, revela uma ferida antiga que foi tocada sem aviso. No cotidiano, esse fenômeno aparece de forma clara em situações como entrevistas de emprego, encontros amorosos ou primeiras consultas clínicas. Um entrevistador pode dizer que “o santo bateu” com um candidato, expressão popular que traduz bem a mistura de afeto, intuição e julgamento rápido envolvida no processo. Um paciente pode relatar que confiou no terapeuta “desde o primeiro olhar”, antes mesmo de qualquer intervenção técnica. Esses relatos não devem ser desqualificados, mas compreendidos em sua complexidade: eles falam tanto da relação que se estabelece quanto da história que cada sujeito traz consigo.
Enfim, o olhar do outro funciona como um espelho imperfeito. Ele reflete algo, mas nunca de forma neutra ou completa. Aquilo que chamamos de leitura do caráter é, muitas vezes, uma construção provisória, situada no cruzamento entre biologia, inconsciente e cultura. Reconhecer essa complexidade não elimina a experiência, mas a torna mais consciente e menos dogmática. Talvez o maior ganho esteja em sustentar uma posição de curiosidade, permitindo que o tempo confirme, desminta ou transforme aquilo que o primeiro olhar sugeriu. Portanto, quando sentimos confiança ou desconfiança ao olhar um desconhecido, não estamos apenas avaliando o outro, estamos testemunhando o funcionamento vivo do psiquismo humano em sua tentativa constante de dar sentido ao mundo social. Esse instante fugaz, quase imperceptível, revela como somos seres de relação, sempre interpretando, sendo interpretados e, no processo, revelando algo de nós mesmos antes mesmo que as palavras entrem em cena.

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