domingo, 14 de dezembro de 2025
A SEGREGAÇÃO INSTITUCIONALIZADA - UM RETRATO DAS BARBÁRIES QUE SE REPETEM DE FORMAS DIFERENTES
A SEGREGAÇÃO INSTITUCIONALIZADA
Por Heitor Jorge Lau
O artigo que se segue - assim como todos os textos por mim redigidos - não deve ser interpretado como uma crítica indiscriminada a todos os seres humanos que habitam o planeta. Trata-se, antes, de uma reflexão fundamentada em fatos históricos, análises antropológicas, evidências neurocientíficas e interpretações psicológicas acerca da condição humana. O objetivo não é apontar culpados de forma genérica, mas compreender os mecanismos que, ao longo do tempo, têm conduzido sociedades a repetir padrões de exclusão, violência e indiferença. As narrativas e exposições reunidas aqui cumprem uma função essencial: servir como instrumentos de orientação, alerta e provocação intelectual. Ao revisitarmos episódios sombrios da história, buscamos não apenas recordar o que já aconteceu, mas também lançar luz sobre os riscos de sua reincidência. A memória coletiva, quando aliada ao conhecimento científico e humanístico, torna-se uma ferramenta poderosa contra a banalização do mal e contra a indiferença que tantas vezes abre caminho para a repetição das tragédias. Este espaço, portanto, não se limita a relatar acontecimentos. Ele se propõe a instigar a consciência crítica, a convidar o leitor a refletir sobre os processos que moldam nossas atitudes individuais e coletivas, e a reconhecer que o respeito pela vida deve ser o princípio orientador de qualquer sociedade que aspire à dignidade. Que cada palavra aqui escrita seja entendida como um convite à vigilância ética e à responsabilidade histórica, para que os erros do passado não se tornem os fantasmas do futuro.
Boa leitura!
A história do Hospital Colônia de Barbacena, retratada de forma contundente por Daniela Arbex em Holocausto Brasileiro, é um dos episódios mais sombrios da sociedade brasileira. Ao longo de décadas, milhares de pessoas foram internadas em condições desumanas, muitas sem qualquer diagnóstico psiquiátrico, e submetidas a um cotidiano de fome, frio, violência e abandono. O que se revela nesse cenário não é apenas a falência de uma instituição, mas a manifestação de processos profundos da mente humana e da estrutura social que permitem que tais atrocidades sejam cometidas e perpetuadas. A análise desse episódio exige que se compreenda não apenas os fatos históricos, mas também os mecanismos psicológicos e psicanalíticos que sustentam a indiferença, a crueldade e a banalização da vida.
O primeiro aspecto que merece reflexão é a tendência humana à desresponsabilização quando inserida em sistemas coletivos. Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, cunhou a expressão “banalidade do mal” para descrever como indivíduos comuns podem se tornar agentes de atrocidades ao simplesmente cumprir ordens ou se adaptar às normas de uma instituição. No caso de Barbacena, médicos, enfermeiros, funcionários e até familiares que internavam seus parentes se tornaram parte de uma engrenagem que naturalizava o sofrimento. A mente humana, diante da pressão social e da autoridade institucional, encontra justificativas para se eximir de responsabilidade: “eu apenas sigo protocolos”, “não cabe a mim questionar”, “é assim que sempre foi feito”. Esse mecanismo psicológico de deslocamento da culpa é um dos pilares que sustentam a perpetuação de violências coletivas.
Outro processo relevante é o da desumanização. A psicanálise nos mostra que o ser humano, ao lidar com o outro, projeta nele imagens e significados que podem ser positivos ou negativos. Quando o outro é visto como ameaça, como peso social ou como “indesejável”, ocorre um processo de despersonalização: ele deixa de ser percebido como sujeito de direitos e passa a ser tratado como objeto. Em Barbacena, os internos eram chamados de “loucos”, “inúteis”, “fardos”, e essa linguagem não era apenas descritiva, mas constitutiva de uma realidade em que a dignidade era negada. A linguagem, nesse sentido, funciona como instrumento de violência simbólica que prepara o terreno para a violência física. A mente humana, ao internalizar essas categorias, passa a agir como se a eliminação ou o sofrimento do outro fosse aceitável ou até necessário.
A psicanálise também nos ensina que há mecanismos de defesa que operam em nível inconsciente e que podem contribuir para a indiferença diante da dor alheia. A repressão, por exemplo, permite que o indivíduo ignore sentimentos de compaixão ou culpa para preservar sua própria estabilidade psíquica. A racionalização cria justificativas aparentemente lógicas para atos cruéis, como “eles não têm cura” ou “é melhor que fiquem isolados”. A projeção faz com que características indesejadas sejam atribuídas ao outro, reforçando estigmas e preconceitos. Esses mecanismos, quando coletivamente compartilhados, criam uma cultura institucional em que a violência se torna invisível ou normalizada.
É importante destacar que tais processos não são exclusivos do episódio brasileiro. A história mundial está repleta de exemplos em que sociedades inteiras se deixaram levar por esses mecanismos. O Holocausto nazista, os genocídios em Ruanda e na Bósnia, os campos de trabalho forçado na União Soviética, todos revelam como a mente humana pode ser convencida de que a eliminação ou o sofrimento de grupos específicos é aceitável. Em cada caso, há uma combinação de fatores: ideologias que justificam a exclusão, instituições que legitimam a violência, indivíduos que se adaptam às normas e massas que se tornam indiferentes. A analogia entre Barbacena e esses episódios não é exagerada, pois em ambos os casos o que se observa é a mesma lógica de desumanização e banalização da vida.
No Brasil contemporâneo, embora não tenhamos instituições como o Colônia funcionando da mesma forma, ainda vemos resquícios desses processos. A indiferença diante da violência urbana, o descaso com populações marginalizadas, o preconceito contra pessoas em situação de rua ou usuários de drogas, tudo isso revela que a mente humana continua suscetível a se convencer de que certas vidas valem menos. A sociedade atual, marcada pela velocidade da informação e pela fragmentação das relações, muitas vezes reforça a alienação: o sofrimento do outro é visto como estatística, como notícia distante, e não como realidade que exige empatia e ação. A psicanálise nos lembra que essa indiferença pode ser uma forma de defesa contra a angústia, mas também pode se tornar cumplicidade silenciosa.
O episódio de Barbacena também nos obriga a refletir sobre o papel da autoridade e da ciência. Médicos e psiquiatras, figuras que deveriam zelar pela saúde, tornaram-se agentes da exclusão. Isso nos mostra como o saber científico, quando desvinculado da ética, pode ser instrumentalizado para legitimar atrocidades. A mente humana tende a confiar na autoridade, e essa confiança pode ser manipulada para justificar práticas desumanas. A psicanálise alerta para o perigo da idealização da autoridade, em que o sujeito abdica de sua própria responsabilidade crítica e se submete cegamente. Esse processo é visível não apenas em instituições psiquiátricas, mas também em regimes políticos autoritários, em práticas militares e até em corporações econômicas que exploram trabalhadores sem considerar sua dignidade.
Outro aspecto fundamental é a relação entre poder e exclusão. Michel Foucault analisou como as instituições disciplinares, como hospitais, prisões e escolas, funcionam como mecanismos de controle social. O Colônia de Barbacena não era apenas um hospital, mas um espaço de segregação em que a sociedade depositava aqueles que não se encaixavam em seus padrões. A mente humana, ao internalizar normas sociais rígidas, tende a rejeitar o que é diferente e a buscar sua eliminação simbólica ou física. Esse processo revela como a violência não é apenas fruto de indivíduos cruéis, mas de estruturas sociais que incentivam a exclusão. A psicanálise complementa essa análise ao mostrar que o medo do diferente pode estar ligado a angústias inconscientes, como o medo da própria fragilidade ou da perda de controle.
A reflexão sobre esses processos nos leva a questionar a ideia de “amor ao próximo” como solução. O amor, entendido como sentimento, pode ser frágil e seletivo. O que se faz necessário é o respeito pela vida. O respeito é uma postura ética que não depende de simpatia ou afeto, mas de reconhecimento da dignidade inerente a cada ser humano. A psicanálise nos ensina que o amor pode ser atravessado por ambivalências, por desejos inconscientes de posse ou destruição, enquanto o respeito exige uma decisão consciente de não reduzir o outro a objeto. O desafio da sociedade contemporânea é construir instituições e culturas que promovam esse respeito, mesmo diante das diferenças e das dificuldades.
Ao analisar o episódio de Barbacena, é impossível não pensar na responsabilidade coletiva. Cada funcionário que se calou, cada autoridade que ignorou, cada cidadão que aceitou, contribuiu para a perpetuação da violência. A mente humana, ao se convencer de que não tem responsabilidade, cria um vazio ético que permite que atrocidades aconteçam. Esse processo é visível também na sociedade atual, quando nos tornamos indiferentes ao desmatamento, à fome, à violência policial, às mortes em hospitais precários. A psicanálise nos lembra que essa indiferença pode ser uma forma de evitar a culpa, mas também é uma forma de negar nossa própria humanidade. Reconhecer a responsabilidade é, portanto, um passo essencial para evitar que tragédias se repitam.
Em síntese, os processos que motivam o ser humano a cometer atrocidades como as descritas em Holocausto Brasileiro envolvem uma complexa interação entre mecanismos psicológicos, estruturas sociais e dinâmicas históricas. A desresponsabilização, a desumanização, os mecanismos de defesa inconscientes, a confiança cega na autoridade, o poder disciplinar das instituições e a indiferença coletiva são elementos que se combinam para criar cenários de violência extrema. A mente humana, ao se deixar levar por esses processos, revela sua vulnerabilidade, mas também sua capacidade de transformação. A psicanálise nos mostra que é possível reconhecer esses mecanismos e buscar formas de superá-los, construindo uma ética baseada no respeito pela vida.
O episódio de Barbacena não deve ser visto apenas como uma tragédia do passado, mas como um alerta permanente. Ele nos lembra que a violência pode se instalar silenciosamente, que a indiferença pode ser cúmplice, que a autoridade pode ser manipuladora, e que a mente humana pode se convencer de que não tem responsabilidade. A analogia com outros episódios históricos e com a sociedade atual reforça a necessidade de vigilância ética e de compromisso coletivo. O respeito pela vida, mais do que o amor ao próximo, deve ser o princípio que orienta nossas ações e nossas instituições. Somente assim poderemos evitar que a banalidade do mal se repita e que novas tragédias sejam inscritas na história. O caso de Barbacena nos mostra que a violência não é fruto apenas de indivíduos isolados, mas de sistemas inteiros que se organizam para excluir, silenciar e destruir. A antropologia nos lembra que sociedades constroem inimigos simbólicos para reforçar sua identidade, e que a exclusão é muitas vezes ritualizada e legitimada por instituições que deveriam proteger. A ciência revela que o inconsciente humano pode ser manipulado por mecanismos de defesa que transformam a indiferença em hábito e a crueldade em rotina. A neurociência demonstra que o cérebro, condicionado por normas sociais e pela obediência à autoridade, pode suprimir circuitos de empatia e reforçar a conformidade, tornando possível que pessoas comuns participem de atrocidades sem se perceberem como responsáveis.
O papel das instituições religiosas e científicas nesse processo é particularmente revelador. Freiras que deveriam representar o cuidado espiritual tornaram-se cúmplices da violência, reforçando a exclusão em vez de combatê-la. Médicos e psiquiatras, que deveriam zelar pela saúde, legitimaram práticas desumanas. Esse paradoxo mostra que a autoridade, seja científica ou religiosa, pode ser instrumentalizada para perpetuar a violência quando se afasta de sua ética fundamental. A antropologia da religião e da ciência revela que essas instituições são construções culturais que podem ser sacralizadas e, portanto, blindadas contra críticas. A história alerta para o perigo da idealização dessas figuras de autoridade, que leva indivíduos a abdicar de sua responsabilidade crítica. A neurociência mostra que a obediência a figuras de autoridade moral ou científica pode ativar circuitos de confiança que inibem a crítica, reforçando a submissão. O resultado é uma engrenagem em que o sofrimento humano é normalizado e a responsabilidade é diluída.
O episódio de Barbacena também nos obriga a refletir sobre o futuro. Em uma sociedade marcada pela velocidade da informação e pela fragmentação das relações, o risco da indiferença continua presente. A exposição constante à violência, seja nas notícias ou nas redes sociais, pode dessensibilizar o cérebro, reduzindo sua resposta empática. A antropologia mostra que novas formas de exclusão surgem, como a marginalização de populações inteiras em favelas ou campos de refugiados. A psicanálise alerta para o risco de que mecanismos inconscientes de repressão e racionalização continuem sustentando a indiferença. A neurociência revela que o cérebro humano, embora capaz de empatia, também pode ser condicionado a ignorar o sofrimento quando este se torna cotidiano. O desafio da sociedade contemporânea é construir culturas e instituições que promovam o respeito pela vida, mesmo diante da diferença e da dificuldade.
O respeito pela vida, mais do que o amor ao próximo, deve ser o princípio que orienta nossas ações. O amor, entendido como sentimento, pode ser frágil e seletivo, atravessado por ambivalências inconscientes. O respeito, por outro lado, é uma postura ética que reconhece a dignidade inerente a cada ser humano, independentemente de simpatia ou afeto. A antropologia mostra que o respeito pode ser construído culturalmente como valor coletivo. A psicanálise revela que o respeito exige uma decisão consciente de não reduzir o outro a objeto. A neurociência sugere que práticas de empatia e solidariedade podem fortalecer circuitos neurais ligados ao cuidado, tornando o respeito não apenas uma escolha ética, mas também uma prática que molda o cérebro. O desafio é transformar esse respeito em princípio orientador das instituições, políticas públicas e relações sociais.
O caso de Barbacena é, portanto, um espelho da vulnerabilidade humana e da fragilidade das instituições. Ele nos lembra que a violência pode se instalar silenciosamente, que a indiferença pode ser cúmplice, que a autoridade pode ser manipuladora, e que a mente humana pode se convencer de que não tem responsabilidade. Mas também nos lembra que é possível resistir. A antropologia mostra que culturas podem ser transformadas. A psicanálise revela que o inconsciente pode ser confrontado e elaborado. A neurociência demonstra que o cérebro é plástico e pode ser moldado por práticas de empatia e solidariedade. O respeito pela vida, quando assumido como princípio coletivo, pode ser a chave para evitar que novas tragédias se repitam.
Finalmente, outro case recente “ilustra” e corrobora com anteriormente descrito. O episódio da Cracolândia. Ocorrido em São Paulo no ano de 2025, quando um governante decidiu “fechar” o espaço e remover compulsoriamente os usuários de crack que ali se encontravam, é um exemplo contemporâneo da mesma lógica de exclusão que marcou tragédias como a do Hospital Colônia de Barbacena. A decisão foi apresentada como solução, mas inevitavelmente levanta a questão: solução para quem? Para os dependentes químicos, que necessitavam de políticas de saúde pública, acolhimento e reinserção social, ou para a sociedade que desejava apenas remover de sua vista aquilo que considerava incômodo?
Assim como em Barbacena, não se tratava de curar ou cuidar, mas de esconder. O mecanismo é semelhante: diante de um grupo considerado “indesejável”, a sociedade opta por segregá-lo, removê-lo do espaço público e, assim, aliviar sua própria consciência. A antropologia nos mostra que esse processo é recorrente: culturas constroem zonas de exclusão para reforçar sua identidade e afastar o que ameaça sua ordem simbólica. A psicanálise revela que, inconscientemente, há uma necessidade de projetar no outro aquilo que não se quer reconhecer em si mesmo - fragilidade, dependência, vulnerabilidade. A neurociência acrescenta que, ao desumanizar o outro, o cérebro reduz sua resposta empática, permitindo que a violência institucional seja praticada sem o mesmo impacto emocional.
O fechamento da Cracolândia em 2025 não solucionou o problema da dependência química, apenas deslocou os usuários, fragmentando ainda mais suas vidas e dificultando o acesso a políticas de saúde. É a mesma lógica que sustentou Barbacena: esconder o sofrimento em vez de enfrentá-lo, negar a dignidade em vez de reconhecê-la. Em ambos os casos, segmentos da sociedade que deveriam zelar pelo bem-estar - governantes, médicos, religiosos, autoridades - falharam em sua missão ética, preferindo a aparência de ordem à responsabilidade pelo cuidado.
Essa analogia revela que a banalidade do mal não é apenas um conceito histórico, mas uma realidade que se atualiza. A indiferença coletiva, a obediência cega à autoridade e a desresponsabilização individual continuam a moldar decisões que, sob o pretexto de solucionar problemas, apenas perpetuam a exclusão. O respeito pela vida, princípio que deveria orientar qualquer ação pública, é substituído pela lógica da invisibilidade: se não vemos, não existe; se não existe, não nos incomoda. Assim, a Cracolândia de 2025 se conecta diretamente ao Colônia de Barbacena e a tantos outros episódios em que a sociedade preferiu remover, silenciar ou exterminar em vez de cuidar. Ambos são expressões de uma mesma falha ética: a incapacidade de reconhecer no outro, por mais vulnerável que seja, a dignidade que nos constitui como humanos.
Enfim, o episódio de Barbacena não é apenas uma tragédia do passado, mas um alerta permanente para o presente e o futuro. Ele nos obriga a reconhecer que a violência não é exceção, mas possibilidade sempre presente na condição humana. Ele nos desafia a construir uma ética baseada no respeito pela vida, a confrontar nossos mecanismos inconscientes de indiferença, a transformar nossas culturas de exclusão e a fortalecer nossos circuitos neurais de empatia. Ele nos lembra que cada indivíduo, cada instituição, cada sociedade tem responsabilidade. E que somente ao assumir essa responsabilidade poderemos evitar que a banalidade do mal se torne rotina e que novas tragédias sejam inscritas na história.
sábado, 13 de dezembro de 2025
SENSAÇÕES MENTAIS QUE SURGEM NO OLHAR
A IMPRESSÃO DIGITAL EXISTENTE NOS OLHOS
Por Heitor Jorge Lau
Quando olhamos para uma pessoa desconhecida pela primeira vez e percebemos a sensação quase imediata de confiança ou desconfiança, algo profundamente humano está em operação. Trata-se de um fenômeno tão comum que raramente é questionado, mas tão complexo que atravessa simultaneamente a biologia, a história psíquica individual e os códigos culturais que aprendemos ao longo da vida. Em poucos segundos, às vezes em frações deles, formamos uma impressão que parece vir “dos olhos” do outro, como se o caráter pudesse ser lido ali, de modo direto e quase incontestável. Embora essa experiência seja frequentemente descrita como intuição, ela não é mágica nem arbitrária, ela emerge da articulação entre sistemas cerebrais antigos, processos inconscientes e aprendizados sociais profundamente enraizados. Do ponto de vista neurobiológico, o cérebro humano evoluiu para tomar decisões rápidas em contextos de incerteza social. Antes mesmo do desenvolvimento da linguagem articulada, a sobrevivência dependia da capacidade de avaliar se um outro indivíduo representava ameaça, neutralidade ou possibilidade de cooperação. Nesse cenário, o rosto - e, de modo especial, os olhos - tornou-se uma fonte privilegiada de informação. Estruturas cerebrais como a amígdala, um conjunto de núcleos localizado no sistema límbico e envolvido na detecção de perigo e na atribuição de valor emocional aos estímulos, respondem de maneira extremamente rápida a expressões faciais. A amígdala não “pensa” no sentido reflexivo, ela reage. Seu funcionamento pode ser comparado a um alarme de fumaça sensível: é melhor disparar algumas vezes sem necessidade do que falhar diante de um incêndio real.
Essa resposta rápida ocorre antes que o córtex pré-frontal, região associada ao julgamento consciente, à análise racional e ao controle inibitório, consiga avaliar a situação de modo mais elaborado. É por isso que a sensação de confiança ou desconfiança surge antes de qualquer argumento lógico. Quando dizemos “não sei por quê, mas não confiei”, estamos descrevendo exatamente essa defasagem temporal entre sentir e pensar. Os olhos, nesse contexto, funcionam como um campo concentrado de sinais sutis: dilatação pupilar, direção do olhar, frequência de piscadas, microexpressões musculares... A maioria dessas informações é processada sem que o sujeito tenha consciência disso, assim como um motorista experiente ajusta o volante sem precisar calcular conscientemente cada movimento. No entanto, se esse fenômeno fosse apenas biológico, todos reagiríamos da mesma forma às mesmas pessoas, o que claramente não acontece. Aqui entra a dimensão psicanalítica, que complexifica o quadro ao mostrar que perceber o outro é sempre, em alguma medida, reencontrar a própria história. Sigmund Freud, ao introduzir o conceito de inconsciente, rompeu com a ideia de que somos senhores absolutos de nossas percepções e julgamentos. Para ele, toda percepção é atravessada por traços mnêmicos, isto é, marcas deixadas por experiências passadas que continuam a operar mesmo quando não lembramos delas conscientemente. Assim, o olhar de um desconhecido pode reativar, sem aviso, afetos ligados a figuras anteriores: um pai severo, uma professora acolhedora, alguém que feriu ou protegeu.
Nesses casos, a sensação de confiança ou desconfiança não se origina apenas no outro, mas na ressonância entre aquele rosto e um repertório interno de imagens e afetos. Trata-se do mecanismo de projeção, um conceito psicanalítico que descreve o ato de atribuir ao outro conteúdos que pertencem ao próprio sujeito. Quando projetamos, não estamos necessariamente “errando”, estamos tentando dar forma a algo interno que ainda não encontrou palavras. O olhar desconhecido funciona como uma superfície relativamente vazia, sobre a qual o psiquismo escreve rapidamente uma história provisória. Jacques Lacan aprofunda essa discussão ao distinguir o olho do olhar. O olho é o órgão da visão; o olhar, para Lacan, é uma função simbólica, ligada à experiência de ser visto. O desconforto que às vezes sentimos ao cruzar o olhar de alguém não vem apenas do que vemos, mas do que sentimos que o outro vê em nós. É como entrar em uma sala silenciosa e perceber que todas as atenções se voltam para você: mesmo sem nenhuma palavra, algo se impõe. Nesse sentido, o julgamento rápido que fazemos do outro pode ser também uma defesa frente à angústia de sermos olhados, avaliados ou desvelados. Esse ponto ajuda a entender por que, muitas vezes, a sensação de desconfiança surge sem que consigamos identificar qualquer traço objetivamente ameaçador. O problema não está necessariamente no outro, mas no tipo de posição subjetiva que aquele encontro convoca. Alguém pode nos parecer “opaco”, “frio” ou “difícil de ler”, e essa indeterminação pode ser vivida como ameaça. O ser humano tende a desconfiar do que não consegue simbolizar rapidamente. É como caminhar em uma rua pouco iluminada: mesmo que não haja perigo real, a ausência de informação suficiente gera tensão.
A antropologia acrescenta outra camada essencial a essa discussão ao mostrar que aquilo que lemos como um “olhar confiável” é, em grande parte, culturalmente aprendido. Não nascemos sabendo como interpretar expressões faciais. Nós aprendemos isso em interações repetidas ao longo da vida. Em algumas culturas, sustentar o olhar é sinal de franqueza e segurança; em outras, pode ser visto como desrespeito ou desafio. Uma criança aprende essas regras de forma implícita, observando as reações dos adultos e ajustando seu comportamento para evitar punições ou obter aprovação. Com o tempo, essas normas tornam-se tão incorporadas que passam a parecer naturais. Isso significa que o mesmo olhar pode ser interpretado de maneiras radicalmente diferentes dependendo do contexto cultural. Um exemplo cotidiano ajuda a ilustrar essa ideia: imagine alguém que evita contato visual durante uma conversa. Para algumas pessoas, isso desperta desconfiança, como se o outro estivesse escondendo algo. Para outras, pode ser interpretado como timidez, respeito ou até educação. O que muda não é o olhar em si, mas o código simbólico que o interpreta. Assim, quando sentimos confiança ou desconfiança “no olhar”, estamos mobilizando um dicionário cultural silencioso, aprendido ao longo de anos.
Há ainda um aspecto ético importante nesse fenômeno. A rapidez desses julgamentos pode ser adaptativa, mas também pode sustentar preconceitos e exclusões. O cérebro gosta de atalhos, e a leitura instantânea do outro é um deles. O problema surge quando esquecemos que esses atalhos produzem hipóteses, não verdades. Transformar uma sensação inicial em julgamento definitivo é confundir um rascunho com uma obra acabada. É como decidir que um livro é ruim apenas pela primeira frase, sem permitir que a narrativa se desenvolva. Ainda assim, seria ingênuo afirmar que essas percepções devem ser simplesmente ignoradas. Elas carregam informações valiosas sobre o estado emocional do próprio sujeito e sobre a dinâmica relacional que se instaura naquele encontro. Em vez de perguntar “isso é verdade ou mentira?”, talvez seja mais produtivo perguntar “o que essa sensação está tentando me dizer?”. Às vezes, a desconfiança aponta para uma incongruência real no comportamento do outro; em outras, revela uma ferida antiga que foi tocada sem aviso. No cotidiano, esse fenômeno aparece de forma clara em situações como entrevistas de emprego, encontros amorosos ou primeiras consultas clínicas. Um entrevistador pode dizer que “o santo bateu” com um candidato, expressão popular que traduz bem a mistura de afeto, intuição e julgamento rápido envolvida no processo. Um paciente pode relatar que confiou no terapeuta “desde o primeiro olhar”, antes mesmo de qualquer intervenção técnica. Esses relatos não devem ser desqualificados, mas compreendidos em sua complexidade: eles falam tanto da relação que se estabelece quanto da história que cada sujeito traz consigo.
Enfim, o olhar do outro funciona como um espelho imperfeito. Ele reflete algo, mas nunca de forma neutra ou completa. Aquilo que chamamos de leitura do caráter é, muitas vezes, uma construção provisória, situada no cruzamento entre biologia, inconsciente e cultura. Reconhecer essa complexidade não elimina a experiência, mas a torna mais consciente e menos dogmática. Talvez o maior ganho esteja em sustentar uma posição de curiosidade, permitindo que o tempo confirme, desminta ou transforme aquilo que o primeiro olhar sugeriu. Portanto, quando sentimos confiança ou desconfiança ao olhar um desconhecido, não estamos apenas avaliando o outro, estamos testemunhando o funcionamento vivo do psiquismo humano em sua tentativa constante de dar sentido ao mundo social. Esse instante fugaz, quase imperceptível, revela como somos seres de relação, sempre interpretando, sendo interpretados e, no processo, revelando algo de nós mesmos antes mesmo que as palavras entrem em cena.



