terça-feira, 25 de novembro de 2025

AS NARRATIVAS MITOLÓGICAS NAS SESSÕES TERAPÊUTICAS. MITOS?

COMO ACONTECE NA MENTE HUMANA A CONSTRUÇÃO DE MITOS E LENDAS?

Por Heitor Jorge Lau

            Desde os primórdios da humanidade, o ser humano busca dar sentido ao mundo que o cerca. O nascer e o pôr do sol, o trovão que rasga o céu, a morte que interrompe a vida, o amor que transcende a razão - todos esses fenômenos despertaram perguntas que, em muitos momentos da história, não encontravam respostas científicas. Foi nesse espaço de incerteza que nasceram os mitos e lendas. O mito não é apenas uma história inventada, ele é uma narrativa carregada de símbolos que traduzem medos, esperanças e valores coletivos. Na mente humana, o mito funciona como uma ponte entre o desconhecido e o conhecido. Ele organiza o caos em forma de narrativa, permitindo que o indivíduo e a comunidade convivam com o mistério sem serem paralisados por ele.

            A imaginação é o motor da criação mítica. Quando o ser humano observa algo que não compreende, sua mente tende a preencher lacunas com imagens, metáforas e personagens. Um som estranho na floresta pode se transformar na presença de um espírito; uma constelação pode ser vista como um animal celestial. A mente humana, ao tentar dar forma ao invisível, cria histórias que se perpetuam. Além da imaginação, há um componente emocional. O mito não é apenas racionalização, mas também catarse. Ele ajuda a lidar com o medo da morte, com a fragilidade da vida e com a necessidade de pertencimento. A mente humana encontra conforto em narrativas que oferecem ordem e propósito. Por isso, mitos e lendas não são apenas explicações, mas também consolos.

            A psicologia cognitiva mostra que o ser humano pensa em símbolos. Palavras, imagens e histórias são formas de organizar a realidade. Carl Jung, por exemplo, falava dos arquétipos - figuras universais que habitam o inconsciente coletivo, como o herói, a mãe, o sábio. Esses arquétipos emergem em mitos e lendas porque refletem padrões profundos da psique humana. Quando uma comunidade cria uma lenda sobre um herói que enfrenta monstros, não está apenas narrando uma aventura fantástica. Está projetando, em forma simbólica, a luta de cada indivíduo contra seus medos internos, suas dificuldades e suas sombras. A mente humana reconhece nesses símbolos algo de si mesma, e por isso os mitos têm tanto poder. Por isso que espectadores de uma peça teatral ou sessões de cinema “liberam” legiões de entusiasmados, aventureiros, inspirados, corajosos, apaixonados...

            Os mitos também cumprem uma função social. Eles transmitem valores, ensinam comportamentos e reforçam identidades coletivas. Uma lenda sobre a origem de um povo não é apenas uma história: é um modo de afirmar quem somos, de onde viemos e o que nos une. A mente humana internaliza essas narrativas como parte de sua identidade, e elas moldam comportamentos e crenças. Outro aspecto importante é a memória. A mente humana não guarda apenas fatos, mas também histórias. Narrativas são mais fáceis de lembrar do que dados isolados. Por isso, mitos e lendas sobrevivem ao tempo: eles se fixam na memória coletiva porque são contados e recontados, adaptados às novas gerações. Cada repetição reforça sua presença na mente, tornando-os quase indestrutíveis.

            Muitas lendas nascem de fatos reais que, ao longo do tempo, são adornados pela imaginação. Um guerreiro histórico pode se tornar um semideus, um desastre natural pode ser interpretado como castigo divino. A mente humana não separa rigidamente realidade e fantasia: ela mistura os dois, criando narrativas que são ao mesmo tempo memória e invenção. Na mente humana, o mito funciona como metáfora. Ele não precisa ser literalmente verdadeiro para ter valor. Uma lenda sobre um dragão pode simbolizar o medo coletivo de invasores ou a luta contra forças da natureza. O importante não é a veracidade factual, mas o significado simbólico. É esse significado que a mente retém e transmite.

            Mesmo em uma era científica, os mitos continuam a nascer. Super-heróis, sagas cinematográficas, teorias conspiratórias - todos são formas modernas de mitologia. A mente humana continua a criar narrativas que explicam o mundo, que oferecem esperança ou que reforçam identidades. A diferença é que hoje os mitos circulam em escala global, impulsionados pela mídia e pela internet. Isso mostra que o mito não é apenas uma fase da humanidade, mas uma necessidade permanente. A mente humana precisa de histórias para se orientar. Mesmo quando temos explicações científicas, buscamos narrativas que deem sentido emocional e simbólico à realidade. Por isso, os mitos nunca desaparecem: eles apenas mudam de forma.

            A construção de mitos e lendas na mente humana é um processo complexo que envolve imaginação, emoção, memória e cultura. O mito nasce da necessidade de explicar o inexplicável, de dar forma ao invisível e de encontrar sentido no caos. Ele é ao mesmo tempo individual e coletivo, psicológico e social, real e imaginário. Na mente humana, o mito é mais do que uma história: é um espelho. Ele reflete nossos medos, nossas esperanças e nossos valores mais profundos. Por isso, estudar mitos e lendas é também estudar a própria mente humana. Afinal, cada mito que contamos é, em última instância, uma narrativa sobre nós mesmos.

 

OS MONSTROS MENTAIS E A CONSTRUÇÃO DOS MITOS

            Um paciente sentado diante de um terapeuta começa a narrar suas angústias. Ele fala de sombras que o perseguem, de vozes que ecoam em sua mente, de monstros invisíveis que o atacam quando a noite cai. Não descreve apenas sintomas, ele descreve narrativas. Cada medo se transforma em personagem, cada dor em criatura, cada lembrança em fantasma. O que ele faz, sem perceber, é o mesmo que a humanidade fez desde os tempos mais remotos: dar forma ao indizível. Quando o ser humano não consegue nomear o que sente, inventa imagens. O paciente cria monstros enquanto o povo cria mitos. Ambos estão diante de forças internas ou externas que não compreendem, e ambos recorrem à imaginação para suportar o peso do mistério. O “monstro mental” não é apenas uma invenção delirante. Ele é metáfora viva. Representa o medo da solidão, a culpa não resolvida, a ansiedade que corrói. Ao narrar seus monstros, o paciente organiza o caos interior em figuras reconhecíveis. Assim como o mito organiza o caos cósmico em deuses e heróis, o relato do paciente organiza o caos psíquico em criaturas simbólicas. A mente humana é um palco onde dramas invisíveis se encenam. O paciente que fala de monstros está, na verdade, encenando sua própria mitologia pessoal. Cada pessoa carrega dentro de si um panteão de personagens internos: o herói que luta, o vilão que sabota, o sábio que aconselha, a criança que chora. Quando esses personagens entram em conflito, surgem narrativas que lembram lendas. O paciente que diz “há um dragão dentro de mim” está traduzindo em linguagem mítica sua batalha contra a depressão ou contra o trauma. A mente, incapaz de lidar apenas com abstrações, recorre a imagens concretas. O dragão é mais fácil de enfrentar do que uma sensação difusa de vazio. Assim como os povos antigos criaram mitos para explicar o trovão ou a morte, o paciente cria lendas internas para explicar sua dor. O mito coletivo e o mito individual são espelhos um do outro. Ambos nascem da necessidade de dar sentido ao inexplicável. Ambos transformam forças invisíveis em histórias que podem ser contadas, lembradas e enfrentadas.

            O terapeuta que escuta o paciente não é apenas um médico, ele é um guardião de narrativas. Ele precisa compreender que os monstros relatados não são simples fantasias, mas símbolos carregados de verdade emocional. Escutar um paciente é como escutar uma lenda: há exageros, metáforas, distorções, mas também há uma verdade profunda escondida sob a superfície. Assim como o antropólogo que recolhe mitos de uma tribo precisa interpretar símbolos, o terapeuta precisa decifrar os monstros mentais. O que significa o lobo que aparece nos sonhos? O que representa a sombra que sufoca? Cada figura é uma chave para compreender o inconsciente.

            A terapia, nesse sentido, é uma reescrita de mitos. O paciente traz narrativas de monstros que o dominam e o terapeuta ajuda a reconstruí-las, transformando o monstro em aliado, ou mostrando que o herói interno pode vencer. É como quando uma comunidade reinterpreta uma lenda antiga para dar novo sentido à sua identidade. A mente humana não destrói mitos: ela os ressignifica. Tanto os monstros mentais quanto os mitos coletivos nascem do medo. O medo da morte, da solidão, da doença, da catástrofe. O paciente que teme seus monstros está vivendo em escala individual o mesmo processo que levou povos antigos a temer deuses coléricos ou espíritos vingativos. O medo é energia criativa: ele obriga a mente a inventar narrativas para suportar o insuportável. Mas não há apenas medo. Tanto no relato do paciente quanto nos mitos coletivos há também esperança. O paciente fala de um “anjo” que o protege, de uma “luz” que aparece nos momentos de desespero. Da mesma forma, os mitos coletivos criam heróis que vencem monstros, deuses benevolentes que oferecem proteção. A mente humana não cria apenas terrores: cria também salvadores.

            O paciente repete suas histórias de monstros em cada sessão. Ele precisa narrar sucessivamente para que o terapeuta compreenda, mas também para que ele próprio se compreenda. Essa repetição é semelhante à tradição oral dos mitos. Uma lenda só sobrevive porque é contada de geração em geração. Um monstro mental só se torna significativo porque é narrado repetidamente, até que sua forma se cristalize. A mente humana fixa narrativas na memória porque elas são mais fáceis de guardar do que sensações difusas. O paciente lembra de seu monstro porque ele tem forma, nome e história. Da mesma forma, uma comunidade lembra de sua lenda porque ela tem personagens, enredos e símbolos. A repetição é o cimento que fixa o mito na mente. O paciente sabe que seus monstros não existem fisicamente, mas sente que eles são reais. Essa ambiguidade é a mesma dos mitos coletivos. Ninguém viu Zeus lançar raios, mas todos sentiam que o trovão era manifestação de uma “força divina”. O mito não precisa ser literalmente verdadeiro para ser psicologicamente real. O monstro mental é real porque produz efeitos: medo, insônia, angústia. O mito coletivo é real porque molda comportamentos: rituais, leis, valores. Ambos vivem nesse espaço entre o real e o imaginário, onde a mente humana constrói significados.

            Hoje, mesmo em uma era científica, pacientes continuam a relatar monstros mentais, e comunidades continuam a criar mitos modernos. Super-heróis, sagas cinematográficas, teorias conspiratórias - todos são novas formas de mitologia. O paciente que fala de um “vilão interno” está em sintonia com a cultura que cria vilões em filmes e quadrinhos. A mente humana continua a precisar de narrativas para enfrentar o desconhecido. Os monstros mentais são mitos pessoais, os mitos coletivos são monstros sociais. Ambos revelam que a mente humana não se satisfaz apenas com dados e explicações: ela precisa de histórias.

            Enfim, o paciente que relata seus monstros mentais está, na verdade, falando a linguagem universal do mito. Ele traduz sua dor em narrativas simbólicas, assim como povos antigos traduziram o medo da natureza em lendas. A mente humana cria mitos e monstros porque precisa de imagens para enfrentar o invisível. O mito é, portanto, a forma mais antiga e mais persistente de psicologia. Ele revela que, diante do caos, a mente humana não se cala: ela inventa histórias. O paciente que fala de monstros está apenas repetindo, em escala íntima, o gesto ancestral da humanidade. E talvez seja justamente nesse gesto - narrar, simbolizar, imaginar - que se encontra a possibilidade de cura.


 

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