UMA DOENÇA MISTERIOSA QUE NÃO COMPROMETE 100% A VIDA
Por Heitor Jorge Lau
A doença de Alzheimer provoca uma destruição progressiva do córtex cerebral e de áreas relacionadas à memória, linguagem, julgamento e consciência. Contudo, em muitos pacientes no estágio avançado, órgãos como coração, pulmões, fígado, rins e outros sistemas periféricos continuam funcionando por bastante tempo. Isso acontece porque a degeneração causada pela doença não atinge o cérebro de forma uniforme. O Alzheimer segue um padrão que preserva, durante grande parte do processo, regiões responsáveis pelas funções vitais. Essa diferença entre o comprometimento cognitivo grave e a preservação das funções fisiológicas ocorre porque os centros básicos de controle do organismo não dependem do córtex, mas sim de estruturas mais antigas e resistentes, localizadas no tronco encefálico e no hipotálamo. A doença inicia-se com o acúmulo anormal de placas beta-amiloides e emaranhados de proteína Tau no hipocampo e em regiões associativas do córtex temporal e parietal, áreas responsáveis pela memória declarativa, integração sensorial e raciocínio abstrato. Com a evolução, a atrofia atinge o córtex frontal, afetando planejamento, tomada de decisões e controle social. Porém, o Alzheimer leva muito mais tempo para atingir regiões subcorticais, que surgiram evolutivamente antes e têm estrutura mais compacta.
O tronco encefálico, formado por mesencéfalo, ponte e bulbo, abriga núcleos essenciais para controlar respiração, frequência cardíaca, pressão arterial e reflexos de sobrevivência. O bulbo, por exemplo, contém grupos neuronais como o pré-Bötzinger, responsável pelo ritmo respiratório, e núcleos que regulam a atividade simpática e parassimpática do coração. Essas células funcionam de modo autônomo, com circuitos automáticos que mantêm a homeostase mesmo quando a consciência está comprometida. Além disso, o hipotálamo - geralmente preservado nas fases iniciais e intermediárias - controla temperatura corporal, fome, sede, ciclo sono-vigília e a liberação hormonal pela hipófise. A manutenção dessas funções não exige memória ou cognição, mas a integridade dos mecanismos neuroendócrinos básicos. Por isso, pacientes que não reconhecem familiares ou não conseguem conversar ainda regulam temperatura, pressão arterial, metabolismo e equilíbrio hídrico normalmente.
Outro aspecto importante é que órgãos como o coração e os rins possuem sistemas próprios de controle. O coração mantém seu ritmo por meio do nó sinoatrial, que gera impulsos elétricos independentemente do cérebro. O sistema nervoso central apenas regula esse ritmo, mas não o cria. Quando o cérebro perde a capacidade de modulá-lo, o coração continua batendo, com menor flexibilidade diante de estímulos externos. Os rins filtram sangue e equilibram eletrólitos graças a mecanismos locais e hormonais independentes da cognição. O fígado também mantém suas funções metabólicas e de detoxificação com autonomia significativa. O corpo humano possui redundâncias e circuitos de autopreservação que não exigem controle consciente. Na fase final do Alzheimer, essas áreas autônomas podem ser afetadas, mas isso ocorre geralmente muito tarde. A maioria dos pacientes morre antes que o dano atinja o tronco encefálico, geralmente devido a infecções respiratórias, desnutrição, complicações da imobilidade ou falhas no sistema imunológico. A morte costuma ser resultado da combinação desses fatores sistêmicos, agravados pela perda de autonomia e comorbidades, não pela parada direta dos centros vitais cerebrais. Nos estágios terminais, com comprometimento do tronco encefálico, pode haver alterações respiratórias, perda de reflexos e instabilidade cardiovascular, mas isso já indica um estado de debilitamento severo do organismo.
O fato de o Alzheimer destruir memória, identidade e linguagem, mas preservar as funções vitais por muito tempo, demonstra que o cérebro não é um bloco único de processamento. Ele é formado por sistemas funcionais distintos, com diferentes níveis de resiliência e autonomia. O córtex, que dá suporte à experiência consciente e à personalidade, é muito vulnerável. Em contraste, as estruturas profundas ligadas à sobrevivência são mais estáveis e protegidas. Essa distinção explica como alguém pode perder quase todas as funções cognitivas superiores e ainda manter o funcionamento básico do corpo por meses ou anos. O Alzheimer afeta primeiro aquilo que nos torna humanos antes de atingir o que mantém nossa vida.

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