quinta-feira, 27 de novembro de 2025

DILEMAS MENTAIS NA ESFERA DA CULTURA E ENTRETENIMENTO

 

APLAUDIR OU SILENCIAR?

O DILEMA DE AMAR A OBRA E ODIAR O AUTOR

Uma reflexão incômoda sobre estética, ética e a difícil escolha entre prazer e consciência.

Por Heitor Jorge Lau

            A relação entre uma obra e o seu criador sempre foi um dos temas mais complexos e delicados da experiência estética e cultural. Desde que seres humanos começaram a produzir arte, literatura, música ou cinema, a figura do autor esteve inevitavelmente ligada ao produto final. No entanto, quando esse criador é envolvido em atos considerados imorais, antiéticos ou mesmo criminosos, surge uma tensão inevitável: é possível continuar apreciando a obra sem que a sombra da conduta pessoal do autor interfira na experiência? Essa questão não é apenas intelectual, mas profundamente emocional, porque envolve não apenas a apreciação estética, mas também a consciência moral e os valores que cada indivíduo carrega consigo. 

            A primeira dificuldade que se apresenta é a impossibilidade de dissociar completamente obra e autor. A criação artística, por mais que se torne independente após sua publicação ou exibição, carrega marcas da subjetividade de quem a produziu. Um romance traz o estilo, as escolhas narrativas e os temas que o escritor considerou relevantes. Um filme carrega a visão estética e ideológica de seu diretor. Uma música reflete a sensibilidade e a expressão de quem a compôs. Assim, quando se descobre que o criador cometeu atos condenáveis, é natural que o público sinta uma espécie de contaminação simbólica: como se a obra, por estar impregnada da personalidade do autor, também carregasse algo de sua conduta. Essa percepção pode gerar repulsa, desconforto ou até mesmo a recusa em continuar consumindo aquele produto cultural. 

            Por outro lado, há quem defenda que a obra, uma vez lançada ao mundo, adquire autonomia. O argumento é que, ao ser publicada, a criação deixa de pertencer exclusivamente ao autor e passa a integrar o patrimônio cultural coletivo. Nesse sentido, o valor estético ou intelectual da obra não deveria ser invalidado pelos erros pessoais de quem a produziu. Um romance pode continuar sendo literariamente brilhante, mesmo que seu autor tenha cometido atos moralmente reprováveis. Um filme pode permanecer como marco da história do cinema, ainda que seu diretor tenha se envolvido em escândalos. Essa perspectiva sugere que a obra deve ser julgada por seus méritos internos, e não pela biografia de quem a criou. 

            No entanto, essa separação não é simples do ponto de vista psicológico. A mente humana tende a associar informações, e quando sabemos que determinado artista esteve envolvido em comportamentos condenáveis, essa informação se infiltra na experiência estética. Ler um livro sabendo que o autor foi racista ou misógino pode alterar a forma como interpretamos seus personagens e diálogos. Assistir a um filme cujo diretor foi acusado de violência pode transformar cenas antes inocentes em algo perturbador. A obra, nesse caso, não muda em sua materialidade, mas muda na percepção subjetiva do espectador ou leitor. É como se o conhecimento sobre o autor funcionasse como uma lente que distorce a recepção da obra. 

            Esse dilema se torna ainda mais complexo quando pensamos no papel da arte como veículo de valores. Muitas obras não são apenas entretenimento, mas também expressão de ideias, críticas sociais ou visões de mundo. Se o criador defende em sua obra princípios elevados, como justiça, liberdade ou empatia, mas em sua vida pessoal age de forma contrária a esses valores, o público pode sentir uma contradição insuportável. Surge a sensação de hipocrisia, como se a obra fosse uma máscara que encobre a verdadeira face do autor. Nesse caso, continuar apreciando a obra pode parecer uma forma de conivência ou de cegueira voluntária. 

            Por outro lado, há quem argumente que a arte transcende o indivíduo. O criador pode ser falho, mas a obra pode alcançar uma dimensão que ultrapassa sua biografia. Grandes obras literárias, musicais ou cinematográficas muitas vezes sobrevivem séculos após a morte de seus autores, e em muitos casos pouco se sabe sobre a vida pessoal desses criadores. O que permanece é o impacto da obra, sua beleza, sua capacidade de emocionar e transformar. Nesse sentido, insistir em vincular a obra ao autor seria reduzir a arte a uma mera extensão da biografia, quando na verdade ela pode adquirir significados independentes e universais. 

            A questão, portanto, não é apenas se é possível separar obra e autor, mas se cada indivíduo deseja ou consegue fazer essa separação. Trata-se de uma escolha mental e sentimental. Alguns preferem preservar a pureza da experiência estética, ignorando ou esquecendo os aspectos negativos da vida do criador. Outros, ao contrário, sentem que não podem desligar sua consciência moral da apreciação artística, e por isso optam por rejeitar a obra. Nenhuma dessas posições é absolutamente certa ou errada. Ambas refletem diferentes formas de lidar com a tensão entre estética e ética. 

            É importante considerar também o impacto coletivo dessa escolha. Quando um público decide boicotar determinada obra por causa da conduta do autor, está enviando uma mensagem social e política. O consumo cultural não é apenas individual, mas também coletivo, e pode influenciar a indústria, os mercados e até mesmo os valores de uma sociedade. Ao recusar consumir obras de autores que cometeram atos condenáveis, o público pode contribuir para reduzir sua influência e seu poder econômico. Por outro lado, ao continuar consumindo, pode reforçar a ideia de que o talento artístico justifica ou compensa os erros pessoais. Essa dimensão social torna a decisão ainda mais carregada de significado. 

            No entanto, mesmo nesse aspecto coletivo, a questão permanece ambígua. Há casos em que a obra é tão importante para a cultura que sua exclusão parece impossível. Imagine se fosse necessário eliminar da história da literatura todos os autores que tiveram comportamentos questionáveis. Restaria muito pouco. A humanidade é imperfeita, e muitos dos grandes criadores também foram pessoas falhas. Se a exigência fosse a perfeição moral, talvez não houvesse arte suficiente para sustentar nossa herança cultural. Por isso, alguns defendem que é necessário aprender a conviver com essa contradição: reconhecer os erros dos autores, mas ainda assim valorizar suas obras. 

            Do ponto de vista sentimental, essa convivência pode ser dolorosa. A arte não é apenas racional, mas também emocional. Quando nos apaixonamos por um livro, um filme ou uma música, criamos uma ligação afetiva com a obra e, indiretamente, com seu criador. Descobrir que esse criador agiu de forma condenável pode gerar uma sensação de traição, como se a beleza da obra tivesse sido manchada. Nesse caso, optar por continuar apreciando a obra exige um esforço consciente de separar sentimentos contraditórios: manter o amor pela obra, mas aceitar a decepção em relação ao autor. Esse esforço, porém, pode ser visto como uma forma de maturidade estética. Reconhecer que a arte pode ser maior do que o artista é aceitar a complexidade da condição humana. Todos somos capazes de produzir coisas belas e, ao mesmo tempo, cometer erros. Talvez a arte seja justamente o espaço onde essa contradição se manifesta de forma mais intensa. Ao apreciar uma obra sem ignorar os erros do autor, estamos exercitando a capacidade de lidar com a ambiguidade, de aceitar que a beleza pode nascer mesmo de mãos imperfeitas. 

            Por outro lado, há quem considere essa postura perigosa, porque pode levar à normalização dos erros. Se continuamos a celebrar obras de autores condenáveis, corremos o risco de minimizar a gravidade de seus atos. Nesse sentido, a recusa em consumir suas obras pode ser vista como uma forma de resistência ética, uma maneira de afirmar que o talento não deve servir de escudo para comportamentos nocivos. Essa posição também tem sua força, porque coloca a ética acima da estética, lembrando que a arte não existe em um vácuo, mas em uma sociedade que precisa de valores para se sustentar. 

            Portanto, a decisão de continuar ou não apreciando uma obra cujo autor cometeu atos imorais é profundamente pessoal. Não há uma resposta universal, porque cada indivíduo possui sua própria sensibilidade, seus próprios valores e sua própria forma de lidar com a contradição. Para alguns, a obra pode continuar sendo fonte de prazer e inspiração, independentemente da vida do autor. Para outros, a obra se torna insuportável, porque carrega a sombra de sua origem. Entre esses extremos, há uma infinidade de posições intermediárias, que refletem a diversidade da experiência humana. O que parece inevitável é que essa questão nunca será resolvida de forma definitiva. A arte e a moralidade continuarão a se entrelaçar, e cada nova revelação sobre a vida de um artista trará novamente o dilema. Talvez o mais importante seja reconhecer que essa tensão faz parte da própria experiência cultural. Ao nos depararmos com ela, somos convidados a refletir não apenas sobre a obra, mas também sobre nós mesmos: sobre nossos valores, nossas emoções e nossa capacidade de lidar com a complexidade da vida. Assim, a pergunta inicial - é possível continuar apreciando a obra e esquecer o produtor? - não tem uma resposta única. Para alguns, sim, porque a obra se torna independente e transcende seu criador. Para outros, não, porque a consciência moral impede essa separação. O que importa, no fim, é que essa escolha seja feita de forma consciente, refletida e honesta. A arte, afinal, não existe apenas para nos entreter, mas também para nos provocar, nos desafiar e nos fazer pensar.

            O dilema entre aplaudir ou silenciar diante de uma obra cujo autor desperta repulsa é, na verdade, um reflexo direto do funcionamento da mente humana e dos mecanismos que regulam nossas decisões morais e emocionais. Quando nos deparamos com esse conflito, áreas específicas do cérebro entram em ação, como os lobos frontais, responsáveis pelo raciocínio ético e pela tomada de decisões complexas, e o sistema límbico, que processa emoções intensas como admiração ou indignação. A amígdala, por sua vez, é ativada quando sentimos ameaça ou injustiça, o que explica a sensação de desconforto ao confrontar a beleza de uma obra com a conduta condenável de quem a produziu. Esse desconforto é conhecido como dissonância cognitiva, um estado mental em que ideias contraditórias coexistem e geram tensão interna. Para aliviar essa tensão, o cérebro busca estratégias de equilíbrio, seja separando obra e autor, rejeitando a obra como forma de coerência moral ou racionalizando o comportamento do criador para preservar o vínculo emocional com a produção artística.

            Além disso, os neurônios-espelho desempenham papel fundamental nesse processo, pois são responsáveis pela empatia estética, permitindo que nos conectemos com a obra independentemente do julgamento sobre quem a criou. Esse mecanismo explica por que ainda conseguimos nos emocionar com uma música ou pintura mesmo quando sabemos que o artista cometeu atos condenáveis. A neuroestética mostra que o cérebro tende a idealizar e abstrair a arte, atribuindo-lhe valor simbólico próprio, separado da realidade concreta, o que torna possível o dilema de amar a obra e odiar o autor. Em última análise, esse conflito não é apenas cultural ou filosófico, mas profundamente biológico, revelando como nossa mente busca constantemente conciliar emoção, ética e estética em um equilíbrio frágil e inevitavelmente humano.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

AS NARRATIVAS MITOLÓGICAS NAS SESSÕES TERAPÊUTICAS. MITOS?

COMO ACONTECE NA MENTE HUMANA A CONSTRUÇÃO DE MITOS E LENDAS?

Por Heitor Jorge Lau

            Desde os primórdios da humanidade, o ser humano busca dar sentido ao mundo que o cerca. O nascer e o pôr do sol, o trovão que rasga o céu, a morte que interrompe a vida, o amor que transcende a razão - todos esses fenômenos despertaram perguntas que, em muitos momentos da história, não encontravam respostas científicas. Foi nesse espaço de incerteza que nasceram os mitos e lendas. O mito não é apenas uma história inventada, ele é uma narrativa carregada de símbolos que traduzem medos, esperanças e valores coletivos. Na mente humana, o mito funciona como uma ponte entre o desconhecido e o conhecido. Ele organiza o caos em forma de narrativa, permitindo que o indivíduo e a comunidade convivam com o mistério sem serem paralisados por ele.

            A imaginação é o motor da criação mítica. Quando o ser humano observa algo que não compreende, sua mente tende a preencher lacunas com imagens, metáforas e personagens. Um som estranho na floresta pode se transformar na presença de um espírito; uma constelação pode ser vista como um animal celestial. A mente humana, ao tentar dar forma ao invisível, cria histórias que se perpetuam. Além da imaginação, há um componente emocional. O mito não é apenas racionalização, mas também catarse. Ele ajuda a lidar com o medo da morte, com a fragilidade da vida e com a necessidade de pertencimento. A mente humana encontra conforto em narrativas que oferecem ordem e propósito. Por isso, mitos e lendas não são apenas explicações, mas também consolos.

            A psicologia cognitiva mostra que o ser humano pensa em símbolos. Palavras, imagens e histórias são formas de organizar a realidade. Carl Jung, por exemplo, falava dos arquétipos - figuras universais que habitam o inconsciente coletivo, como o herói, a mãe, o sábio. Esses arquétipos emergem em mitos e lendas porque refletem padrões profundos da psique humana. Quando uma comunidade cria uma lenda sobre um herói que enfrenta monstros, não está apenas narrando uma aventura fantástica. Está projetando, em forma simbólica, a luta de cada indivíduo contra seus medos internos, suas dificuldades e suas sombras. A mente humana reconhece nesses símbolos algo de si mesma, e por isso os mitos têm tanto poder. Por isso que espectadores de uma peça teatral ou sessões de cinema “liberam” legiões de entusiasmados, aventureiros, inspirados, corajosos, apaixonados...

            Os mitos também cumprem uma função social. Eles transmitem valores, ensinam comportamentos e reforçam identidades coletivas. Uma lenda sobre a origem de um povo não é apenas uma história: é um modo de afirmar quem somos, de onde viemos e o que nos une. A mente humana internaliza essas narrativas como parte de sua identidade, e elas moldam comportamentos e crenças. Outro aspecto importante é a memória. A mente humana não guarda apenas fatos, mas também histórias. Narrativas são mais fáceis de lembrar do que dados isolados. Por isso, mitos e lendas sobrevivem ao tempo: eles se fixam na memória coletiva porque são contados e recontados, adaptados às novas gerações. Cada repetição reforça sua presença na mente, tornando-os quase indestrutíveis.

            Muitas lendas nascem de fatos reais que, ao longo do tempo, são adornados pela imaginação. Um guerreiro histórico pode se tornar um semideus, um desastre natural pode ser interpretado como castigo divino. A mente humana não separa rigidamente realidade e fantasia: ela mistura os dois, criando narrativas que são ao mesmo tempo memória e invenção. Na mente humana, o mito funciona como metáfora. Ele não precisa ser literalmente verdadeiro para ter valor. Uma lenda sobre um dragão pode simbolizar o medo coletivo de invasores ou a luta contra forças da natureza. O importante não é a veracidade factual, mas o significado simbólico. É esse significado que a mente retém e transmite.

            Mesmo em uma era científica, os mitos continuam a nascer. Super-heróis, sagas cinematográficas, teorias conspiratórias - todos são formas modernas de mitologia. A mente humana continua a criar narrativas que explicam o mundo, que oferecem esperança ou que reforçam identidades. A diferença é que hoje os mitos circulam em escala global, impulsionados pela mídia e pela internet. Isso mostra que o mito não é apenas uma fase da humanidade, mas uma necessidade permanente. A mente humana precisa de histórias para se orientar. Mesmo quando temos explicações científicas, buscamos narrativas que deem sentido emocional e simbólico à realidade. Por isso, os mitos nunca desaparecem: eles apenas mudam de forma.

            A construção de mitos e lendas na mente humana é um processo complexo que envolve imaginação, emoção, memória e cultura. O mito nasce da necessidade de explicar o inexplicável, de dar forma ao invisível e de encontrar sentido no caos. Ele é ao mesmo tempo individual e coletivo, psicológico e social, real e imaginário. Na mente humana, o mito é mais do que uma história: é um espelho. Ele reflete nossos medos, nossas esperanças e nossos valores mais profundos. Por isso, estudar mitos e lendas é também estudar a própria mente humana. Afinal, cada mito que contamos é, em última instância, uma narrativa sobre nós mesmos.

 

OS MONSTROS MENTAIS E A CONSTRUÇÃO DOS MITOS

            Um paciente sentado diante de um terapeuta começa a narrar suas angústias. Ele fala de sombras que o perseguem, de vozes que ecoam em sua mente, de monstros invisíveis que o atacam quando a noite cai. Não descreve apenas sintomas, ele descreve narrativas. Cada medo se transforma em personagem, cada dor em criatura, cada lembrança em fantasma. O que ele faz, sem perceber, é o mesmo que a humanidade fez desde os tempos mais remotos: dar forma ao indizível. Quando o ser humano não consegue nomear o que sente, inventa imagens. O paciente cria monstros enquanto o povo cria mitos. Ambos estão diante de forças internas ou externas que não compreendem, e ambos recorrem à imaginação para suportar o peso do mistério. O “monstro mental” não é apenas uma invenção delirante. Ele é metáfora viva. Representa o medo da solidão, a culpa não resolvida, a ansiedade que corrói. Ao narrar seus monstros, o paciente organiza o caos interior em figuras reconhecíveis. Assim como o mito organiza o caos cósmico em deuses e heróis, o relato do paciente organiza o caos psíquico em criaturas simbólicas. A mente humana é um palco onde dramas invisíveis se encenam. O paciente que fala de monstros está, na verdade, encenando sua própria mitologia pessoal. Cada pessoa carrega dentro de si um panteão de personagens internos: o herói que luta, o vilão que sabota, o sábio que aconselha, a criança que chora. Quando esses personagens entram em conflito, surgem narrativas que lembram lendas. O paciente que diz “há um dragão dentro de mim” está traduzindo em linguagem mítica sua batalha contra a depressão ou contra o trauma. A mente, incapaz de lidar apenas com abstrações, recorre a imagens concretas. O dragão é mais fácil de enfrentar do que uma sensação difusa de vazio. Assim como os povos antigos criaram mitos para explicar o trovão ou a morte, o paciente cria lendas internas para explicar sua dor. O mito coletivo e o mito individual são espelhos um do outro. Ambos nascem da necessidade de dar sentido ao inexplicável. Ambos transformam forças invisíveis em histórias que podem ser contadas, lembradas e enfrentadas.

            O terapeuta que escuta o paciente não é apenas um médico, ele é um guardião de narrativas. Ele precisa compreender que os monstros relatados não são simples fantasias, mas símbolos carregados de verdade emocional. Escutar um paciente é como escutar uma lenda: há exageros, metáforas, distorções, mas também há uma verdade profunda escondida sob a superfície. Assim como o antropólogo que recolhe mitos de uma tribo precisa interpretar símbolos, o terapeuta precisa decifrar os monstros mentais. O que significa o lobo que aparece nos sonhos? O que representa a sombra que sufoca? Cada figura é uma chave para compreender o inconsciente.

            A terapia, nesse sentido, é uma reescrita de mitos. O paciente traz narrativas de monstros que o dominam e o terapeuta ajuda a reconstruí-las, transformando o monstro em aliado, ou mostrando que o herói interno pode vencer. É como quando uma comunidade reinterpreta uma lenda antiga para dar novo sentido à sua identidade. A mente humana não destrói mitos: ela os ressignifica. Tanto os monstros mentais quanto os mitos coletivos nascem do medo. O medo da morte, da solidão, da doença, da catástrofe. O paciente que teme seus monstros está vivendo em escala individual o mesmo processo que levou povos antigos a temer deuses coléricos ou espíritos vingativos. O medo é energia criativa: ele obriga a mente a inventar narrativas para suportar o insuportável. Mas não há apenas medo. Tanto no relato do paciente quanto nos mitos coletivos há também esperança. O paciente fala de um “anjo” que o protege, de uma “luz” que aparece nos momentos de desespero. Da mesma forma, os mitos coletivos criam heróis que vencem monstros, deuses benevolentes que oferecem proteção. A mente humana não cria apenas terrores: cria também salvadores.

            O paciente repete suas histórias de monstros em cada sessão. Ele precisa narrar sucessivamente para que o terapeuta compreenda, mas também para que ele próprio se compreenda. Essa repetição é semelhante à tradição oral dos mitos. Uma lenda só sobrevive porque é contada de geração em geração. Um monstro mental só se torna significativo porque é narrado repetidamente, até que sua forma se cristalize. A mente humana fixa narrativas na memória porque elas são mais fáceis de guardar do que sensações difusas. O paciente lembra de seu monstro porque ele tem forma, nome e história. Da mesma forma, uma comunidade lembra de sua lenda porque ela tem personagens, enredos e símbolos. A repetição é o cimento que fixa o mito na mente. O paciente sabe que seus monstros não existem fisicamente, mas sente que eles são reais. Essa ambiguidade é a mesma dos mitos coletivos. Ninguém viu Zeus lançar raios, mas todos sentiam que o trovão era manifestação de uma “força divina”. O mito não precisa ser literalmente verdadeiro para ser psicologicamente real. O monstro mental é real porque produz efeitos: medo, insônia, angústia. O mito coletivo é real porque molda comportamentos: rituais, leis, valores. Ambos vivem nesse espaço entre o real e o imaginário, onde a mente humana constrói significados.

            Hoje, mesmo em uma era científica, pacientes continuam a relatar monstros mentais, e comunidades continuam a criar mitos modernos. Super-heróis, sagas cinematográficas, teorias conspiratórias - todos são novas formas de mitologia. O paciente que fala de um “vilão interno” está em sintonia com a cultura que cria vilões em filmes e quadrinhos. A mente humana continua a precisar de narrativas para enfrentar o desconhecido. Os monstros mentais são mitos pessoais, os mitos coletivos são monstros sociais. Ambos revelam que a mente humana não se satisfaz apenas com dados e explicações: ela precisa de histórias.

            Enfim, o paciente que relata seus monstros mentais está, na verdade, falando a linguagem universal do mito. Ele traduz sua dor em narrativas simbólicas, assim como povos antigos traduziram o medo da natureza em lendas. A mente humana cria mitos e monstros porque precisa de imagens para enfrentar o invisível. O mito é, portanto, a forma mais antiga e mais persistente de psicologia. Ele revela que, diante do caos, a mente humana não se cala: ela inventa histórias. O paciente que fala de monstros está apenas repetindo, em escala íntima, o gesto ancestral da humanidade. E talvez seja justamente nesse gesto - narrar, simbolizar, imaginar - que se encontra a possibilidade de cura.