domingo, 21 de setembro de 2025

MENTE E CÉREBRO: QUAL A DIFERENÇA? HÁ COMO EXPLICAR?


            Foi o filósofo Platão quem o propôs pela primeira vez, ao inventar (ou descobrir?) as ideias. Ele propôs que nossos conteúdos mentais podem ser abstraídos e individuados das mentes que os pensam. As ideias ou conteúdos mentais apenas ocorrem nas mentes, tendo uma realidade independente. Os pensamentos podem ser abstraídos dos atos de pensá-los, formando um verdadeiro mundo à parte. Pensar significa apenas aceder a esse mundo, incorporar as ideias ou pensamentos aos nossos atos de pensar, tomando-nos apenas veículos momentâneos desse mundo das ideias. Perceberíamos a realidade independente desse mundo das ideias quando pensamos, por exemplo, nas verdades da matemática e quando concebemos, por exemplo, que “2 + 2 = 4”. A realidade de 2 + 2 = 4 ou de uma demonstração geométrica qualquer seriam sempre verdadeiras independentemente de elas ocorrerem ou não na minha mente. Uma verdade geométrica como, por exemplo, “a soma dos ângulos de um triângulo será sempre 180 graus” independe não só de eu pensá-la aqui e agora como também de qualquer triângulo ou exemplo de triângulo que possa existir no mundo e que eu possa estar vendo na minha frente.

            Isto levou Platão a propor que o mundo das ideias é o único mundo verdadeiro, o mundo imutável. O mundo que percebemos através dos nossos sentidos ou que pensamos momentaneamente seria apenas uma cópia desse mundo verdadeiro. Com isto, Platão dividiu a realidade em duas partes: a do mundo sensível e a do mundo inteligível. Platão inaugurou a dualidade de realidades ou o dualismo ontológico. Ao inventar o mundo das ideias espalhou a discórdia entre os filósofos, que nunca mais chegaram a um consenso sobre o que existe ou não, se o mundo é aquilo que vemos ou se existe algo para além daquilo que os nossos sentidos nos mostram. Nem mesmo um consenso sobre quantas e quais ideias existiriam nesse mundo jamais foi alcançado. Existiria apenas uma ideia para cada tipo de objeto sensível, ou cópia dessa ideia, ou várias ideias correspondentes a várias cópias desse objeto que poderiam estar no mundo sensível? E quando penso no cavalo alado, terá ele uma existência real e independente nesse mundo das ideias?

            Essa foi a primeira e a maior diafonia da história da filosofia; tudo o que se seguiu depois foi uma tentativa de superá-la. Quando refletimos sobre o problema da relação entre mente e cérebro podemos perceber como essa diafonia se manifesta. Serão nossos pensamentos parte do mundo das ideias? Serão nossos cérebros apenas veículo desses pensamentos, transmissores de algum tipo de versão sensível desse mundo das ideias, produtores apenas de cópias manifestas dessa realidade independente? Podemos dar um passo a mais e perguntar também se “mente” não seria uma ideia no sentido platônico, ou seja, uma realidade única, imutável e eterna, da mesma maneira que as verdades matemáticas e geométricas. Mas sobre isto os filósofos discordaram. Alguns acharam que a ideia de “mente” não seria nada além de um artifício da imaginação, como, por exemplo, o cavalo alado. Outros acharam que mentes existiriam nesse mundo à parte, sem, contudo, conseguir explicar como essas poderiam se relacionar com o mundo sensível.

            Enfim, de uma forma ou de outra, estava formada a diafonia, a cisão fundamental ou o problema ontológico, do qual o problema da relação entre mente e cérebro seria apenas um caso particular, embora de importância decisiva. Dualistas e monistas jamais puderam se reconciliar e a história da filosofia da mente repete o longo comentário e tentativa de reconciliação entre os dois mundos de Platão. Muitos de nós somos platonistas sem o saber. O platonismo é uma espécie de filosofia espontânea dos matemáticos e de engenheiros, que acreditam que a mente é uma estrutura matemática abstrata que poderia ser reproduzida por um programa de computador. A mente seria independente do cérebro, e, da mesma maneira que um teorema matemático seria independente do cérebro de alguém que o descobriu, o programa de computador seria independente do computador onde ele é executado. Esse programa de computador seria portável, no sentido computacional do termo, ou seja, poderia ser transportado e instalado em qualquer tipo de hardware. Instalaríamos mente e consciência num computador da mesma maneira que nele instalamos através de um DVD o Windows. Teríamos um ícone na tela, correspondendo, por exemplo, à consciência. Clicamos o ícone e nosso computador adquire mente e consciência.

            Nunca se chegou a um consenso acerca de como e até que ponto gostaríamos de povoar nosso universo, com mentes e cérebros ou apenas com cérebros. Nessa disputa interminável, a estratégia do dualista foi sempre a de tentar encontrar uma marca distintiva do mental, algo que nos levasse a acreditar que ele não apenas é diferente, como também irreconciliável com o físico ou com o sensível e observável. Seu desejo é o de encontrar uma assimetria fundamental entre mente e cérebro, uma assimetria da qual se pudesse derivar a plausibilidade de crenças religiosas na realidade e imortalidade das mentes ou almas. Disto decorre uma adoção implícita, mas inevitável, de algum tipo de platonismo por parte do dualista... um platonismo que serviria para fundamentar uma assimetria entre mente e cérebro, como, por exemplo, o caráter eterno, indestrutível e imutável que seria comum às mentes e às verdades matemáticas.

            A proposta desse tipo de assimetria não parece, entretanto, ter se revelado tão boa assim: a física mostra que a matéria é tão indestrutível como o são as mentes. E a história da ciência mostra que as verdades matemáticas não são tão imutáveis quanto poderíamos supor. Em geometrias não euclidianas há triângulos cuja soma dos ângulos não têm 180 graus. O monista caminha na direção contrária, procurando desfazer as assimetrias e assimilar o mental ao físico. Sua proposta e sua motivação coincidem com a ambição científica que caracteriza nosso século. Apostamos no triunfo de uma ciência que dê conta de todos os fenômenos que nos rodeiam; uma ciência que unifique a diversidade do mundo num único padrão explicativo. Trata-se então de explicar cientificamente a natureza do mental, ou, em outras palavras, explicar o mental em termos de fenômenos físicos ou cerebrais.

            Essas tentativas, contudo, esbarram em grandes dificuldades e acabam revelando a existência de muito mais assimetrias entre mente e cérebro do que se imaginava... inicialmente assimetrias que ainda não podem ser explicadas pela ciência. Consideremos novamente o neurocientista examinando o cérebro para tentar encontrar nesse algo que se assemelhe a estados mentais. Hoje em dia dispomos de técnicas mais aperfeiçoadas para realizar esse tipo de investigação. Contamos com vários recursos para produzir imagens do cérebro em funcionamento ou mesmo para medir sua atividade elétrica. Um deles é o eletroencefalograma ou EEG. Através do EEG podemos determinar, durante o sono, quando alguém está sonhando, ou seja, quando alguém entra em sono REM, pois, nesse caso, o eletroencefalograma se altera substancialmente.

            A dificuldade surge na medida em que, pelo exame do EEG, podemos saber que o indivíduo está sonhando, mas não podemos saber com o que ele está sonhando. Da mesma maneira, podemos, pelo exame da atividade química e glandular do corpo de uma pessoa, saber se ela está tendo um ataque de fúria. Haverá mais adrenalina no sangue dessa pessoa. Mas, da mesma forma, a detecção de uma maior quantidade de adrenalina no corpo de uma pessoa permite-nos saber que ela está tendo um ataque de fúria, mas não saber com o que ou com quem ela está enfurecida. Ora, a questão que se coloca é a seguinte: será o exame da atividade física do corpo ou do cérebro suficiente para determinar os conteúdos mentais que ocorrem nessa pessoa? Ou haverá um hiato intransponível entre cérebro e estados subjetivos, um hiato que se impõe pela incapacidade de se estabelecer um caminho entre os sinais elétricos do cérebro, sua atividade química e aquilo que podemos identificar como sendo nossos conteúdos mentais ou nossas ideias?

            Não dispomos de respostas para essas questões. A ciência ainda não conseguiu resgatar esse hiato, que se alarga ainda mais quando supomos que esses eventos mentais são experiências conscientes. O problema que se coloca é, então, não apenas o de traçar algum tipo de correlação entre duas séries (a do físico e a do mental), mas o de saber como a série de eventos físicos pode produzir o aspecto específico desse tipo de experiência que a toma uma experiência consciente. Em outras palavras: se há uma relação entre esses dois tipos de séries, que tipo de relação será essa? Como passamos de um conjunto de propriedades para outro, aparentemente tão distinto?

            O que falta é algum tipo de explicação que toma inteligível a passagem entre o físico e o mental... uma inteligibilidade que requer mais do que simplesmente estabelecer correlações. Que tipo de propriedade ou que tipo de circunstância leva a matéria (o cérebro) a produzir consciência? Responder a essa questão parece ser o grande desafio a ser enfrentado por aqueles que apostam no monismo ou na possibilidade de que a ciência possa fornecer uma explicação definitiva da natureza da mente e de suas relações com o cérebro. Trata-se de explicar como o cérebro pode produzir fenômenos mentais subjetivos ou conscientes utilizando-se das mesmas categorias explicativas que são usadas para explicar o funcionamento de um sistema físico. Monismo, do grego μόνος mónos, "sozinho, único", é aquilo que atribui unidade ou singularidade -em grego: μόνος - a um conceito, por exemplo, à existência. Em geral, é o nome dado às teorias filosóficas que defendem a unidade da realidade como um todo (em metafísica) ou a existência de um único tipo de substância ontológica, como a identidade entre mente e corpo (em filosofia da mente) por oposição ao dualismo ou ao pluralismo, à afirmação de realidades separadas.

            Que tipo de interpretação física podem ter fenômenos como a subjetividade e a consciência? Serão as leis naturais suficientes para capturar e explicar os aspectos específicos que levam à produção da subjetividade e da consciência? Tomemos mais um exemplo. Suponhamos novamente que um neurocientista observa o cérebro de alguém e que ele queira identificar os estados mentais dessa pessoa com a atividade exibida pelo seu cérebro, da mesma maneira que um químico identifica água com H2O. Esse tipo de identificação é frequentemente buscada pela investigação científica pois supõe-se que através dela se possa chegar a algum tipo de explicação da natureza de um determinado fenômeno por exemplo, uma explicação do que é a água. O neurocientista estaria procurando uma explicação do que são estados mentais através de uma identificação desses com estados cerebrais, uma identificação entre os dois modos de apresentação ou as duas descrições possíveis de um mesmo fenômeno. Digamos que, após algumas investigações, ele conclua que o estado mental correspondente a sentir que uma determinada dor ocorre sempre que determinadas fibras do sistema nervoso forem estimuladas. Ora, será que podemos afirmar que “estimular as fibras” significa explicar o que é sentir uma determinada dor? Até que ponto a descrição de uma dor como “estimulação das fibras” realmente expressa os aspectos subjetivos e conscientes envolvidos em sentir uma determinada dor? Ou, em outras palavras, será que a descrição “estimular as fibras” poderia expressar o que significa sentir uma determinada dor?

            O obstáculo que o neurocientista enfrenta é a transposição de uma descrição em terceira pessoa (estimulação das fibras) para uma descrição em primeira pessoa, onde se expressam estados subjetivos e experiências conscientes. Esse é o problema da interpretação física de fenômenos que envolvem subjetividade e consciência. Trata-se de um problema que sugere que esses fenômenos nunca poderiam ser integralmente descritos ou reduzidos aos termos de uma linguagem científica. A relação entre o mental e o físico não seria capturada por uma linguagem construída exclusivamente em terceira pessoa e descrevendo unicamente eventos públicos, como é o caso da linguagem da ciência. Uma linguagem onde a conexão entre estados mentais e estados cerebrais não nos permite aproximá-los ao ponto de podermos dizer, por exemplo, que sentir uma determinada dor e estimular as fibras são a mesma coisa, da mesma maneira que água e H2O o são.

            Entender essa relação e poder expressá-la na linguagem da ciência seria uma tarefa importantíssima, uma tarefa que ultrapassa, em importância, a pura e simples escolha de uma imagem do mundo por contraposição a outra. Precisaríamos saber não apenas como de cérebros podem emergir mentes, mas como essas últimas podem, reciprocamente, alterar o cérebro e o corpo. Sabemos que a ordem física dos eventos cerebrais altera estados mentais. Como dissemos há pouco, esse é um conhecimento intuitivo, que temos quando tomamos bebidas alcoólicas e drogas que alteram o equilíbrio químico das reações entre as diversas partes do cérebro. Mas não sabemos como, a partir de sinais elétricos, passamos aos pensamentos. Não sabemos tampouco como esses podem alterar os próprios sinais elétricos do cérebro e influenciar nosso corpo a ponto até de gerarmos vários tipos de doenças ou disfunções orgânicas.

            Novamente o problema que se coloca é nossa incapacidade não apenas de descobrir, mas talvez de conceber como se dá a passagem entre o mental e o cerebral, entre o físico e o subjetivo. Além daqueles que apostam na ciência e no triunfo futuro do monismo e daqueles que apostam no dualismo, seja abraçando algum tipo de crença religiosa ou não, podemos identificar um terceiro grupo nesse debate: os que supõem que o problema da relação mente-cérebro não pode ser resolvido; os chamados “agnósticos”. Assim como na matemática há vários problemas cuja solução é impossível, o mesmo ocorreria com o problema das relações entre mente e cérebro. Os agnósticos partem da ideia de que o problema da interpretação física dos fenômenos subjetivos e conscientes seria agravado pelo fato de nossa vida mental não nos permitir acesso senão aos conteúdos mentais que a compõem, ou seja, que nosso pensamento nunca poderia nos fornecer alguma pista acerca dos processos cerebrais que estão envolvidos na sua própria produção.

            Seria pouco provável que algum dia essa condição pudesse ser alterada: a perspectiva que podemos ter do mundo nos confina ao nosso próprio universo mental. Para o agnóstico, uma imagem do meu próprio cérebro em funcionamento como aquelas obtidas por ressonância magnética altamente sofisticada ou por qualquer outra técnica de neuroimagem apresenta-se tão estranha a mim quanto uma radiografia de meu pulmão. Eu só saberia que aquela é uma imagem do meu próprio cérebro em funcionamento ou que aquela é uma radiografia de meu pulmão se alguém me fornecesse essa informação (a princípio). Eventos neurais, ou seja, a interpretação física de fenômenos mentais não participa de nossas experiências subjetivas; podemos no máximo traçar algumas correlações, mas essas não explicam a passagem entre o físico e o subjetivo. Imagine uma situação experimental onde eu sou convidado junto com várias outras pessoas a pensar sobre uma mesma coisa, ou seja, produzir conteúdos mentais semelhantes. Imagine também que, simultaneamente, alguém esteja produzindo imagens desses vários cérebros em funcionamento que, por hipótese, mostrariam em todos esses cérebros um mesmo conjunto de áreas sendo estimuladas.

            Todos veríamos simultaneamente essas imagens projetadas numa tela diante de nós sem saber, contudo, qual imagem corresponde ao cérebro de quem, ou seja, as imagens não seriam numeradas nem posicionadas de forma a dar esse tipo de pista. E todas as imagens seriam praticamente iguais, mostrando um cérebro com algumas regiões semelhantes em atividade. Seria eu capaz de dizer qual dessas imagens corresponde à do meu cérebro, ou seja, seria eu capaz de relacionar meu pensamento com a imagem de minha atividade cerebral a não ser que alguém me informasse que aquela era a imagem do meu cérebro? A imagem do meu cérebro é tão estranha quanto a imagem do meu fígado; só sei que aquela é a imagem de meu fígado se alguém me disser isso ou se eu estiver numa máquina de ultrassom sabendo, de antemão, que as imagens que aparecem na tela são do meu fígado.

            Esse experimento com imagens de vários cérebros projetadas simultaneamente numa mesma tela que, talvez por razões práticas, nunca pudesse vir a ser realizado ilustraria a pressuposição do agnóstico, qual seja, a de que jamais poderíamos encontrar uma passagem entre sinal cerebral e experiência consciente. Seria mais uma versão daquilo que os filósofos chamaram de problema da intransponibilidade entre primeira e terceira pessoa e que expressaria toda a dificuldade envolvida no problema da relação entre mente e cérebro. O desânimo do agnóstico implicitamente nos convida a abandonar o monismo e optar pelo dualismo. Dualismo é uma concepção filosófica ou teológica do mundo baseada na presença de dois princípios ou duas substâncias ou duas realidades opostas, irredutíveis entre si e incapazes de uma síntese final ou de recíproca subordinação. É dualista por excelência qualquer explicação metafísica do universo que suponha a existência de dois princípios ou realidades não subordináveis e irredutíveis entre si.

            Essa é uma visão radicalmente oposta àquela sugerida pela neurociência. Para o dualista, a mente é imaterial, com propriedades distintas e incompatíveis com o mundo físico. Será que podemos sequer imaginar o que seria algo imaterial? Certamente só poderíamos conferir uma caracterização negativa para esse conceito, ou seja, só poderíamos definir algo imaterial por oposição às propriedades da matéria, ou seja, dizendo o que essa substância imaterial não é. Dizendo que ela não tem localização espacial, não tem peso, não tem massa ... Eis aqui um belo exercício filosófico para desafiar nossa imaginação. Aparentemente, o dualista não precisaria se preocupar com o problema da interpretação física dos fenômenos subjetivos e conscientes. Pois ele não busca saber como poderíamos caracterizar esse tipo de fenômenos a partir das descrições em terceira pessoa, utilizadas pela linguagem científica: seu ponto de partida é considerar subjetividade e consciência como distintos e irredutíveis a qualquer tipo de base física. Contudo, o problema da relação entre o mental e o físico persiste, embora de uma maneira diferente.

            A maior dificuldade enfrentada pelo dualismo é saber como algum tipo de relação entre mente e cérebro pode ocorrer: como conceber que algo imaterial possa, de alguma maneira, afetar coisas materiais como o cérebro? Nesse sentido, a única diferença entre monismo e dualismo seria uma inversão na direção da investigação. O primeiro teria de dar conta de como a partir do mundo material pode surgir subjetividade e consciência; ao segundo caberia mostrar como subjetividade e consciência poderiam afetar o mundo material. Esta última questão não é menos importante e nem fácil de responder, sobretudo quando se considera o papel de intenções, crenças e desejos, ou seja, estados mentais na sua relação com o comportamento. Se esses estados mentais são imateriais, como poderiam afetar o curso de nossos comportamentos? Não parece intuitivo que nossos comportamentos sejam, de alguma forma, causados ou guiados por nossas intenções ou desejos? Mas, nesse caso, como algo imaterial pode afetar nosso corpo? Como minha intenção ou meu desejo de levantar e ir abrir a porta poderia causar algo no mundo físico como, por exemplo, meus movimentos musculares? Ou teremos que acreditar que nossos comportamentos não são causados por nossas intenções e desejos? Teríamos então de abrir mão da noção intuitiva de que nossos comportamentos resultam de estados da minha mente e com ela mantém algum tipo de relação causal? Ou buscar uma outra maneira de conceber a própria relação de causalidade? Não seria mais prudente abandonar o dualismo? Há ainda outras dificuldades que precisam ser enfrentadas pelo dualista: se a mente é imaterial e totalmente independente do cérebro, como explicar que danos causados a este último possam também afetar atividades mentais? E, se a mente é imaterial e independente do cérebro, por que temos então um cérebro tão complexo comparado com o de outros seres vivos?

            O dualismo é visto pelos filósofos contemporâneos da mente como uma doutrina metafísica extravagante, uma doutrina que dificilmente poderia ser coerentemente sustentada. Mas talvez o aspecto mais problemático do dualismo seja o fato de ele ser uma filosofia sem agenda. Ou seja, tudo que o dualista pode fazer é tentar provar a existência de uma diferença radical entre mente e matéria. Daí para diante nada mais poderia ser feito. A ideia de algo imaterial só pode ser caracterizada negativamente, por oposição às propriedades do mundo material: nada poderia ser afirmado acerca da natureza do mental além do fato de ele ser distinto do físico. Nunca uma ciência do mental poderia ser desenvolvida, pois a mente não teria nenhuma característica que permitisse qualquer tipo de abordagem científica. Ora, haverá alternativas ao monismo e ao dualismo sem que essas signifiquem desistir de tomar uma posição como faz o agnóstico? Ou serão essas as duas únicas alternativas possíveis para tentarmos resolver o problema mente-cérebro?

            Antes de tentarmos responder essas duas questões precisamos caracterizar o tipo de problema com que nos defrontamos quando consideramos a relação entre mente e cérebro e saber por que ele tem persistido ao longo da história da filosofia e da história da ciência. Acreditamos ser organismos complexos e que nossas funções mentais se devem a essa complexidade. Ou seja, somos educados de acordo com uma tradição científica que sempre esteve presente na nossa cultura. Ao mesmo tempo recebemos uma educação religiosa, que nos ensina sermos dotados de espíritos que sobreviverão após nossa morte. Como se não bastassem essas contradições, somos ainda educados a usar dois tipos de vocabulário: um vocabulário físico e um vocabulário mental. Referimo-nos a eventos físicos usando um tipo de vocabulário; para os eventos mentais desenvolvemos um vocabulário específico, que sugere, implicitamente, que o físico e o mental são distintos. Só esses dois fatores já seriam suficientes para percebermos por que a relação entre mente e cérebro teria, necessariamente, de se apresentar como um problema. Defrontamo-nos, na verdade, com duas crenças contraditórias, mas nenhuma delas pode ser considerada ingênua. Por um lado, somos levados a crer no monismo e na aposta de que o problema mente-cérebro é um problema científico, ou seja, um problema empírico que poderia ser resolvido, algum dia, através de alguma descoberta científica da mesma maneira que se descobriu, por exemplo, a cura das infecções através da penicilina.

            A característica básica dos problemas científicos consiste no fato de que eles podem ser resolvidos através da observação e da experimentação. Essa estratégia pode rapidamente se defrontar com várias limitações. É possível que, por mais que a neurociência avance, isto é, por mais que ela nos proporcione dados empíricos ou resultados experimentais, esses se limitem a ser sempre informações apenas acerca do funcionamento do cérebro. O problema que pode permanecer seria saber como poderíamos relacionar todos esses dados e observações com os aspectos subjetivos presentes na nossa vida mental. É possível que nenhum dado em si possa nos ajudar a passar de uma perspectiva de terceira pessoa para uma de primeira pessoa. Mesmo que esse dado venha a surgir, sempre poderá existir algum tipo de discussão envolvendo sua interpretação. Ao incluirmos a necessidade de uma interpretação específica já nos afastamos da proposta de que algum tipo de dado poderia, por si só, resolver o problema da relação mente-cérebro. Contudo, o problema da interpretação e o problema da passagem da terceira para a primeira pessoa não parecem ter sido suficientes para abandonarmos nossa aposta no triunfo do monismo e na explicação neurocientífica da natureza dos fenômenos mentais.

            Prova disto é o fato de que a pesquisa neurocientífica continua se desenvolvendo cada vez mais na sua busca pelos correlatos neurais da consciência e da experiência subjetiva. Adotar uma perspectiva oposta ao monismo significaria acreditar no que dizem os dualistas e os agnósticos. Vimos que essas duas posições, embora distintas, tendem a se confundir, pois nossa tendência é interpretar o discurso do agnóstico como sendo um discurso pela impossibilidade de solução do problema mente-cérebro. Desistir de resolver um problema, ou concluir que a ciência não pode resolver o problema mente-cérebro, não implica, porém, em optar pela solução contrária. É possível ser agnóstico sem ser dualista. Quando um matemático conclui que um determinado problema não tem solução ou que sua solução é impossível ele não está necessariamente sugerindo que devemos jogar fora o conhecimento matemático. O difícil, porém, é ser dualista sem abraçar, simultaneamente algum tipo de concepção religiosa: embora uma coisa não implique necessariamente na outra; a nossa tradição cultural sugere esse tipo de aliança. O monista conta com dados, observações e métodos experimentais consagrados. O dualista conta apenas com argumentos filosóficos e crenças religiosas.

            Vista dessa perspectiva, nossa escolha por uma doutrina em favor de outra já estaria feita. Restaria apenas aguardar que a ciência se desenvolvesse e culminasse com uma solução definitiva para o problema mente-cérebro. O monista não conta com a possibilidade de que isto possa não acontecer ou que a própria ciência possa concluir que a solução desse problema seja impossível. O monismo tem sido uma grande aposta no futuro da ciência. Uma aposta que, aliás, já dura alguns séculos. O monista acredita no sucesso futuro da ciência da mesma maneira que os dualistas (na sua maioria) acreditam na religião: ambos fazem discursos opostos, nos quais, entretanto, se expressa algum tipo de crença. Faz parte da crença do monista acreditar que não existem problemas para os quais a ciência não possa oferecer uma solução. Acreditar na existência desse tipo de problema não significa, aliás, como sugere o monista, assumir necessariamente uma postura anticientífica. Não podemos esperar que a ciência responda, por exemplo, questões do seguinte tipo: “Quais os princípios que devem reger uma sociedade para que essa seja justa?” Tal questão não poderia ser respondida unicamente com base em dados de observação ou em experimentos. Isto não a torna uma falsa questão nem tampouco uma questão irrelevante.

            Trata-se de uma questão de outra natureza, ou seja, aquilo que chamamos de uma questão conceitual. Questões conceituais dizem respeito ao modo como concebemos o mundo e como podemos tornar essas concepções coerentes e adequadas. Reconhecer a existência de questões conceituais não significa desprezar a investigação científica nem os dados que podem se originar. Significa apenas reconhecer que dados e experimentos podem não ser suficientes para resolver certas categorias de problemas. A ilusão do monista consiste em achar que a ciência poderia resolver todos os problemas, inclusive os conceituais. Ao assumir essa perspectiva, ele se esquece de que ao fazer ciência ele está, necessariamente, envolvendo-se com questões conceituais. É ingênuo supor que podemos separar a produção da ciência de questões conceituais, embora muitas vezes o ensino de ciências que recebemos na escola nos dê a impressão de que isto seria possível.

            Questões conceituais perpassam a própria prática da ciência e compõem os pressupostos sobre os quais essa se baseia. Basta pensar nos conceitos que são implicitamente mobilizados pelo discurso científico, como, por exemplo, teoria, explicação, confirmação, teste empírico e assim por diante. Usar a ciência para explicar a natureza dos conceitos sobre os quais ela mesma se assenta equivaleria a correr o risco de incorrer num círculo vicioso: dificilmente chegaríamos a algum lugar. O mesmo poderíamos afirmar das tentativas de resolver o problema das relações entre mente e cérebro na qualidade de um problema unicamente científico ou empírico: pois a mente que se quer explicar é a mesma que produz a ciência usada para explicá-la. Estaríamos girando em círculos. Os dualistas e os agnósticos correm, entretanto, o risco inverso. Eles supõem ser possível discutir e até chegar a uma solução para o problema da relação entre mente e cérebro sem sair de sua poltrona, isto é, virando as costas para a ciência e para qualquer tipo de resultado empírico que possa surgir. Eles parecem se esquecer de que a filosofia começa onde a ciência acaba, ou seja, que os problemas conceituais adquirem sentido e consistência por se situarem no limiar da investigação científica. Isto é o que vem ocorrendo, por exemplo, com a física a partir do século XX que passou a se confrontar com questões do tipo “será o universo determinista ou não?” ou “podemos ter uma imagem estritamente objetiva do mundo físico?” e assim por diante. Questões do tipo “qual a natureza da mente?” ou “como é possível a relação entre mente e cérebro?” surgem no limiar da neurociência. Avaliar sua verdadeira amplitude e espessura não poderia ser feito se ignorássemos o que a ciência tem a dizer acerca da mente, do cérebro e de sua relação. Portanto...esse debate ainda vai longe, muito longe...

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