quinta-feira, 17 de junho de 2021

SOLIDÃO

 

   

    A SOLIDÃO

    Reflexões de um Psicanalista

    Fevereiro de 2021. Após algumas sessões com a paciente M., ela por livre e espontânea vontade, afirma: “Creio que não precisamos mais nos encontrar. Sinto-me muito bem! ”. E realmente, apresentava um semblante de segurança e tranquilidade. Mesmo ciente da forte e provável possibilidade da Sra. M. ter uma recaída das suas ansiedades e depressões constantes, o Analista, diante de um quadro expressivo de intensa serenidade e felicidade, resolve satisfazer a sua vontade. Afinal, nada, absolutamente nada, foi escavado no seu passado que revelasse algo perturbador que ressurgisse das profundezas do inconsciente. Maio de 2021. A Sra. M. parece ter readquirido a sua instabilidade emocional e excessiva preocupação com determinados objetos, pessoas e cenários. Na visão neurótica da Sra. M. tudo acaba terminando com um resultado desastroso, apesar das situações serem na maioria das vezes, simples. Ela comumente acaba frustrando-se com os próprios pensamentos ruins e, de certa forma, lamuriando para quem estiver próximo e disposto a ouvi-la. A questão que sempre acaba suscitando é: - afinal, as psiconeuroses mais brandas, não provenientes de um quadro clínico físico severo, são incuráveis, apenas administráveis ou o paciente (no fundo) não quer se ver livre delas? Sempre me causou e ainda provoca espanto quando ouço um paciente declarar que faz terapia há cinco, dez, vinte anos. Mais surpresa ainda fico quando um profissional da saúde mental afirma, categoricamente, que é bom fazer análise pelo “resto da vida”. Enfim, ninguém em perfeito juízo gosta de permanecer com gripe, sarampo, catapora, dor de dente, dor de cabeça, ..., contudo, por que os “grilos” mentais, aparentemente, fazem parte ou acabam por se incorporar na personalidade das pessoas.

    No final das contas, sem qualquer estudo mais aprofundado sobre este e tantos outros cases parecidos, até mesmo sobre o tema relacionado, surge uma palavra que assombra quase 50% da população mundial: solidão. Mas o que de fato vem a ser este sentimento? Ao digitar a palavra “solidão” no site “https://www.dicionarioinformal.com.br” surgem vários sinônimos. Dentre eles destaco alguns: apartado, acantoado, afastado, arredio, despedida, desunião, desviado, disjunto, distanciado, isolado, partida, remoto, retiro, deserto, abandono, árido, desabitado, despovoado, ermitão, inabitado, banimento, deportação, exílio, proscrição, relegação, descampado, eremita, retirado, clausura, retraimento, privação, viuvez, ausência... São alguns sinônimos, contudo suficientes, para provocar a reflexão sobre o quanto se sentir só pode vir a ser ruim e por vezes fatídico. A solidão é um lamento recorrente de bilhões de viventes mundo afora. E, curiosamente, estar só fisicamente não seria um pré-requisito para que isto aconteça. A solidão emocional é real e mesmo que possa parecer impossível ou “coisa da cabeça”, ela surge até quando se está rodeado de pessoas. A internet e as redes sociais, artifício que propicia conexão e interatividade com os mais variados navegadores, teoricamente deveria amenizar ou eliminar a solidão. Todavia, parece que não acontece de fato. Pesquisa norte-americana revelou que 46-47% das pessoas carregam consigo o sentimento de solidão e abandono na maioria das vezes ou quase sempre.  Sobretudo, é importante salientar que a solidão é natural em alguns períodos da vida. Entretanto, se esse sentimento é constante e ininterrupto é preciso procurar urgentemente algum tipo de ajuda. A solidão, acima de tudo, é um sentimento de não pertencimento, como os sinônimos anteriormente elencados traduzem. Por dedução, quem não consegue criar vínculos, nunca se identifica e não se relaciona com as outras pessoas, sofrem, mesmo que inconscientemente, com a solidão.  O medo de ser julgado e incompreendido é característico do solitário sofredor, cuja única força interior passa a ser o vazio existencial. A solidão até certo ponto é um sentimento inerente e subjetivo à existência humana. Existe uma visão completamente errônea de que a pessoas que vivem ou que desejam viver sós estão ou estarão, inevitavelmente, acompanhas da solidão.  

    Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão do século XIX, já dizia: “somos uma espécie de porco-espinho”. Qual seria o significado deste pensamento? Para compreender, uma analogia se faz necessária: Frio do inverno x “frio” da solidão. Ambos ferem! Diante do frio o ser humano pode buscar se aquecer com a ajuda do calor do corpo alheio... ficando próximo. Mas, como um porco espinho, os espinhos espinham, furam, provocam dor... e a reação instantânea é se afastar o mais rapidamente possível do incômodo provocado. Resultados imediatos: a dor aos poucos vai voltando e o isolamento é consequência. O frio permanece, o sofrimento persiste, e mais uma tentativa de aproximação acontece sem um efeito diferente. Novamente, o incômodo afasta e o “porco espinho” fica novamente isolado. Este pensamento metafórico do filósofo Schopenhauer demonstra um dilema da existência humana: para ser livre é preciso ser solitário, contudo, o “frio” os acompanha. Por outro lado, a escolha de permanecer com mais um ou em grupo traz na escolha as dores das diferenças. Existe alguma saída para tal impasse? Talvez ou certamente a solução estaria em encontrar a distância considerada segura, que proporcionasse o calor ideal e necessário... que evitasse o espinhamento. Mas, qual seria em tese, a barreira minimamente segura para que duas criaturas espinhentas convivam?

    A solidão, ainda mais em momentos de pandemia, faz com que o isolamento social deixe de ser considerado algo normal. A solidão é distinta do estar sem alguém perto, assim como estar acompanhado não garante “calor”. Caso contrário a solidão inexistiria em cidades com aglomerações demográficas consideráveis. A questão é que simplesmente não existe vinculo algum entre pessoas que cotidianamente trocam cumprimentos e gentilezas em espaços comuns de convivência. As suas respectivas histórias de vida podem até mesmo serem parecidas, mas, provavelmente, nunca se cruzarão. Contar com alguém? Dificilmente. A existência sem vínculos torna-se deveras inexpressiva e desinteressante, coloca uma pitada significativa de melancolia no viver. Muitos confundem este estado melancólico com a conhecida e temida depressão, mal que enfraquece vínculos com tudo e com todos e enfraquece o desejo de viver. A solidão sempre foi percebida e encarada como algo negativo e destrutivo.

    Quem não recorda de Norman Bates, personagem solitário do filme “Psicose” do cineasta Alfred Hitchcock. Bates, vivendo isoladamente em um local nitidamente decadente e, para piorar, com um sofrimento imenso pela ausência da mãe falecida, se transforma no assassino que a produção retrata. Seria possível concluir que o seu perfil assassino é resultado do isolamento? Talvez! Até porque o filme não demonstra o protagonista antes do episódio fatídico. Então vamos rememorar outro personagem para ilustrar que um ser humano considerado normal pode, sim, se comportar de maneira, no mínimo, estranha defronte o isolamento social. Chuck Noland, personagem interpretado por Tom Hanks no filme “O Náufrago”, acaba conversando com uma bola “batizada” de Sr. Wilson. Aliás, Noland quase perde a vida tentando resgatá-la do mar quando se desprende da embarcação que se encontravam. A bola havia sido personificada como um amigo, companheiro, ouvinte e salvador da solidão. Aliás, sem “espinhos”. Agora, se o primeiro exemplo retratou um personagem abalado pela solidão, porém sem um passado revelado; se o segundo exemplo retratou um personagem que se tornou solitário contra a vontade e um passado revelado; agora, vamos exemplificar um personagem com passado revelado e que não ficou solitário. Jack Torrence, personagem interpretado por Jack Nicholson no filme “o Iluminado”. Contrariando a percepção da maioria das pessoas que uma pessoa insana, geralmente ou provavelmente, é um ser solitário, isolado, “cai por terra” nesta produção. Torrence, literalmente perde a estabilidade humana mesmo não estando sozinho.

    Retornando ao case da Sra. M. Não existe (até o momento) medicação para a solidão, isolamento social, dor dos espinhos alheios... a solidão chega de mansinho, sem aviso, sem alarde, sem prazo de validade. Ela carrega em si uma roupagem disfarçada, tão dissimulada que fica difícil e até mesmo impossível de reconhecer e compreender. Mas domina, determina e desmantela sentimentos sadios e imprescindíveis para uma existência saudável e duradoura. Quando se está feliz mesmo sem companhia, o ser humano acorda, abre a janela do quarto (e da vida) canta para os pássaros, late para os cães, mia para os gatos, xinga o vizinho, pouco importa. Neste caso a loucura faz parte da felicidade e, paradoxalmente, da sanidade. Mas um dia o pássaro migrou, o cão não abana a cauda, o gato não dá importância e a vizinha ficou dentro de casa. Agora chega o momento da completa falta de interação, ausência do reconhecimento, carência até mesmo do enfrentamento. Hoje passa. Mas, e amanhã? Depois de amanhã? E depois? Por isso, conhecer a si e as pessoas do mundo que nos cercam, perceber a solidão chegando, saber a distância que os espinhos alheios não irão ferir é o princípio, não a cura, mas o essencial para conviver sadiamente com ela, que não irá nos abandonar nem agora e nem depois.

 Heitor Jorge Lau

 

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