terça-feira, 1 de junho de 2021

Inconsciente e Recalcamento

 

            A descoberta central de Freud foi a do inconsciente e a do recalcamento. Ele ligou este conceito central com a sua Teoria da Libido e admitiu que o inconsciente era a base dos desejos do instinto sexual, sendo que mais tarde, afirmou que parte do ego e do superego eram também inconscientes. Esta ligação facilitou um desenvolvimento que incomodava o pensamento psicanalítico. Primeiramente, porque todo interesse foi concentrado no conteúdo sexual, genital e pré-genital e o único aspecto interessante do inconsciente foi o da sexualidade recalcada. Quaisquer que sejam os méritos da Teoria da Libido, Freud criou um instrumento para conhecer-se a si mesmo que se estende, para além do domínio sexual, a todas as áreas do inconsciente. [Eu, como pessoa, sou ganancioso, medroso, narcisista, sádico, masoquista, destrutivo, desonesto etc., mas meu conhecimento de todas estas qualidades é recalcado. Se concentrar todo o meu interesse nos esforços de recalcamento sexual e erótico, posso viver com esta espécie de análise, muito confortavelmente, em especial se acreditar que a sexualidade — genital e pré-genital — é boa e não deve ser recalcada nem suprimida. Mão tenho a dolorosa tarefa de ver qual o lado de mim mesmo que não corresponde à minha autoimagem consciente]. Restrita à libido, a grande descoberta de Freud, na verdade, perde muito do seu caráter crítico e desmascarador; simplesmente, está mais apta a ser usada como instrumento de análise dos outros, daqueles que ainda não se tenham libertado de seus tabus sexuais; não como instrumento de autoconhecimento e transformação. Este modelo de psicanálise não pode ser descartado chamando-o de terapia e dizendo que pertence ao ofício do terapeuta. A terapia pode ter algum caráter técnico, mas o fenômeno em si, o entendimento de meu próprio inconsciente é de sua incompatibilidade com minha imagem consciente é, precisamente, a descoberta que dá à psicanálise sua importância, como passo radical na própria descoberta do homem e em direção a uma nova forma de sinceridade.

            Infelizmente, tomou-se elegante aplicar o conceito de recalcamento, exclusivamente ao sexo e acreditar que se não há recalque dos desejos sexuais, o inconsciente toma-se consciente. É claramente demonstrável nos grupos sociais em que a sexualidade, sob todas as suas formas, é livremente praticada e experimentada sem o fardo de tradicionais sentimentos de culpa, que a falta do recalcamento dos desejos sexuais não significa que a maior parte do inconsciente se tornou consciente. Na verdade, esta é uma das mudanças extraordinárias que ocorre na sociedade ocidental de hoje. É mais extraordinário ainda, que esta experiência do sexo, livre de "culpabilidade”, seja encontrada não somente em grupos politicamente radicais; mas está igualmente presente entre os não-politizados. Parece que, a liberação sexual ocorreu com velocidade espantosa em todos os grupos da sociedade de consumo sem as consequências políticas.  O importante é entender a qualidade da experiência sexual. Em larga escala, a gratificação sexual tornou-se um artigo de consumo e tem as características de todos os outros consumos modernos; amplamente motivada pelo vazio, pela depressão oculta e pela ansiedade; o ato de satisfação é, em si mesmo, banal, superficial. Parece que muito da motivação sexual esteja, de alguma forma, incitada pelas considerações teóricas feitas ao longo das linhas de Freud. A satisfação sexual, como forma de alguém livrar-se de todos os “complexos” pode, de alguma forma, tornar-se obsessiva, especialmente quando vem junto com um autoexame ansioso sobre o orgasmo “adequado”.

            Ainda que se possa dizer muito sobre isso teoricamente, o sexo em grupo pode, na prática (na medida em que supera o sentido de propriedade e ciúme), não ser tão diferente da vida sexual extraconjugal convencional (incluindo voyeurismo e exibicionismo), como pensam seus participantes. Isto é especialmente verdadeiro para a necessidade de novos e diferentes parceiros sexuais devido ao rápido enfraquecimento do interesse no mesmo parceiro. Enquanto a emancipação da satisfação sexual dos sentimentos de culpa avançou um passo, a questão permanece, na medida em que a juventude "radical" sofre do mesmo defeito de seus pares mais velhos e mais convencionais: a inabilidade para a intimidade humana, defeito pelo qual se substitui a intimidade sexual. O próximo passo da geração radical jovem poderia ser, assim parece, tornar-se mais ciente de seu medo da intimidade emocional profunda e o papel do sexo como seu substituto. Além disso, parece ser uma tendência das mesmas pessoas que rejeitam tão fortemente os políticos como guias, a seguir doutrinas psicanalíticas meio-digeridas para que seu sexo viva.

            Seguindo Freud, mesmo se completamente digerido, sua teoria conduz à uma super ênfase no sexo e à negligência de Eros e do amor. De acordo com os conceitos de Freud, que molda o comportamento sexual de alguém, eles parecem, de alguma forma, antigos e “radicais” somente em termos da geração mais velha. Mas com a liberdade sexual não significa que os participantes dela tenham perdido a maior parte de seus avós: o que mudou foi o conteúdo daquilo que é recalcado. Olhando principalmente para o inconsciente, no domínio da sexualidade, fica muito mais difícil descobrir outras experiências inconscientes. A deterioração do conceito de inconsciente é ainda maior quando este é aplicado no sentido abstrato e quando se refere, principalmente, a conceitos gerais como Eros ou o instinto de morte. Neste caso, perde todo significado pessoal e, de modo algum, é um instrumento para a autodescoberta. Até mesmo o Complexo de Édipo, ocupando o centro do recalcamento na visão de Freud, quase toca as profundezas das paixões humanas inconscientes. Na realidade, o desejo do menino pela relação sexual com a mãe, por mais escandaloso que possa ser, do ponto de vista convencional, atualmente não é nada irracional; o Complexo de Édipo é o amor triangular dos adultos retraduzido na situação infantil.

            A criança age quase racionalmente, na realidade, mais do que os adultos frequentemente o fazem em situações similares. O menino pequeno, incitado pela sua sexualidade florescente, quer a mãe porque ela é a única mulher à sua volta ou a que está mais à disposição; confrontado com a ameaça de castração do pai-rival a auto conservação vence a paixão sexual; ele desiste da mãe e identifica-se com o agressor.  Por trás do vínculo do menino com a mãe a nível genital, existe um muito mais profundo e mais irracional. O bebê — menino ou menina — está vinculado à mãe como aquela que lhe deu vida, ajuda, proteção, a figura amorosa; a mãe é vida, segurança; ela protege a criança da realidade da situação humana, que requer atividade, o saber tomar decisões, correr riscos, estar só e morrer. Se o vínculo com a mãe pudesse permanecer intacto do começo ao fim da vida, a vida poderia ser contentamento; a da existência humana não seria encarada. Assim, o bebê apega-se à mãe e resiste deixá-la. Ao mesmo tempo, no caso de desenvolvimento normal, tanto sua própria maturação física quanto as influências culturais gerais, constituem a contra-tendência que, eventualmente, faz a criança desistir da mãe e encontrar, teoricamente nos relacionamentos que tiver, o amor e a intimidade como pessoa independente. A profunda ânsia de permanecer um bebê é habitualmente recalcada, isto é, inconsciente, porque é incompatível com os ideais da idade adulta, com os quais a criança é impregnada pela sociedade patriarcal. Numa sociedade primitiva os ritos de iniciação têm a função de quebrar, drasticamente, este vínculo.

            Contudo, na forma justamente descrita a recusa em aceitar todo o fardo da individualização ainda não perdeu a racionalidade e o contato com a realidade; a pessoa pode encontrar uma figura materna ou uma representação (dela) a que pode permanecer ligada; na realidade, alguém que a domina (ou serve) e a protege: ela pode, por exemplo, prender-se a uma mulher maternal, ou a uma instituição como uma igreja ou alguém, com muitas outras formas, oferecido pela sociedade. Mas recusar a separação da mãe pode tomar formas mais extremas; mais profundas e ainda mais irracionais do que o desejo de ser amado e protegido por ela, do começo ao fim da vida, ansiando ser um com ela, retomar ao seu ventre e, eventualmente, desfazer o fato de ter nascido; então o ventre toma-se o túmulo, a mãe, a terra na qual se está “enterrado”, o oceano onde afogar-se. Não há nada “simbólico” nisso; anseios não são “disfarces” para as lutas do Édipo recalcado; ao contrário, as lutas incestuosas são, muitas vezes uma tentativa de salvar-se da mais profunda ameaça à vida e do anseio pela mãe. O anseio mais profundo e mais intenso pela mãe é o mais recalcado deles. Só no caso da psicose este anseio torna-se consciente.

            A psicanálise clássica não leva em conta a profundidade deste anseio e não dá o peso apropriado ao fato de que o vínculo primitivo do bebê, menino ou menina, é com a mãe. Só em 1931, Freud, no seu artigo sobre a sexualidade feminina, fez uma significativa revisão de sua mais primitiva teoria, estabelecendo que a fase “pré-edípica (ligação pré-edípica com a mãe precedendo a ligação com o pai) na mulher ganha uma importância pouco atribuída até agora”. É interessante observar que Freud compara esta ligação pré-edípica à mãe com a sociedade patriarcal. Em Esboço da Psicanálise de Freud, ainda dá um outro passo. Ele escreve: “Nessas duas relações (alimentação e cuidado com o corpo da criança) situa-se a origem da importância da mãe. Única, sem paralelo, estabeleceu-se inalteravelmente por toda a vida como primeiro e mais forte objeto de amor e como protótipo de todas as relações posteriores de amor — para ambos os sexos. Em tudo isto, a base filogenética tem muito mais domínio sob a experiência pessoal acidental que não faz diferença se a criança tiver realmente mamado no seio ou se tiver sido criada na mamadeira e nunca desfrutado a ternura dos cuidados matemos". Certamente, parece que, no fim de sua vida, Freud apresentou uma teoria que contradisse drasticamente sua posição prévia. Depois de descrever a profundidade do vínculo pré-edipiano com a mãe, declarou que ele existe, tanto nas meninas como nos meninos, (em 1931 seu artigo discutiu só as meninas) e também no desenvolvimento filogenético, no que diz respeito a alimentação atual e ao cuidado com o corpo. Contudo, Freud não introduziu esta afirmação como uma revisão radical; em vez disso, seguiu os comentários tradicionais sobre como a mãe estabelece vínculos com o bebê, alimentando-o e cuidando do seu corpo. A maneira quase casual como Freud acrescentou isto só pode ser explicada pela psicanálise literária. É admissível que Freud tenha estado ocupado anos com a possibilidade de um número de hipóteses mais antigas não terem sido corretas, por exemplo, o significado, exclusivamente sexual, do Complexo de Édipo e a negação de vínculos vitais, duradouros e profundos com a mãe, nos meninos e nas meninas; ele não poderia, contudo, permitir-se fazer mudanças explícitas, e tomar claros os velhos elementos da teoria que haviam tido colapso e os novos conceitos que os substituíram.

            É como se algumas novas ideias tivessem estado inconscientes e fossem agora, expressas como tal num "descuido" dos freudianos; escrevendo esse relato, Freud, provavelmente, não estava ciente da extensão da contradição com suas hipóteses anteriores. A maioria dos psicanalistas, mesmo depois de 1931, não levou bastante a sério as sugestões de Freud para revisar seu pensamento teórico mais antigo. A psicanálise clássica fracassou tanto em ver a profundidade e a irracionalidade do anseio pela mãe, quanto no fato de que este anseio não é simplesmente uma luta "infantil". É verdade que, geneticamente falando, o bebê por razões biológicas, atravessa uma fase de intensa “fixação na mãe”; mas esta não é a “causa” da dependência posterior da mãe. Este vínculo com a mãe pode conservar sua força — ou a pessoa pode regredir a esta solução — precisamente porque ele é questão de “espírito”, da existência humana. Verdadeiro o suficiente para conduzir à dependência absoluta, à insanidade ou ao suicídio — mas também uma das possibilidades abertas ao homem na sua existência. Explicá-lo em bases sexuais ou como repetição-compulsiva é omitir o verdadeiro caráter desta questão da existência. Todas estas considerações levam a crer que a solução do controle não é realmente a “vinculação com a mãe”, mas o que pode ser referenciado como “existência paradisíaca”, caracterizada pela tentativa de evitar alcançar a completa individualização; mas em vez disso, viver na fantasia de proteção absoluta, da segurança, do aconchego no mundo, às custas da individualidade e da liberdade. Este é um estado de desenvolvimento biologicamente condicionado cuja fantasia é realidade e absolutamente normal. Mas, pode-se pensar demais em termos genéticos, se a atenção estiver centrada na vinculação com a mãe, mais do que em toda a função desta experiência. É preciso estudar muito mais de perto a sua estrutura total — o papel do narcisismo, o medo de perceber completamente a realidade, o desejo de “invulnerabilidade”, de onisciência; a predisposição à depressão, o senso de solidão total quando a experiência de invulnerabilidade está ameaçada e muitos outros elementos. Afinal, quando se olha a existência humana como um todo, não se deve esquecer de que o adulto não é tão diferente da criança no seu desamparo em relação às forças que determinam sua vida; ele é muito mais ciente de si e do quão pouco pode fazer para controlá-las. Seu desamparo atinge o grau mais alto, mas, num certo sentido, não menor do que o da criança; somente a total expansão de todas as suas potencialidades pode capacitá-lo a fazer face a seu desamparo objetivo e ainda, a não procurar refúgio na “fantasia paradisíaca”.

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