quarta-feira, 5 de maio de 2021

Narcisismo versus Histeria


                O padrão de comportamento neurótico - em qualquer época em particular - reflete a ação de forças culturais. No período vitoriano, por exemplo, a neurose típica era a histeria, cuja reação histérica resultaria do recalque da excitação sexual. Assumia a forma de uma explosão emocional, que irrompia através das forças repressivas e assoberbava o ego. A pessoa, então, chorava ou gritava incontrolavelmente.  Contudo, se as forças repressivas mantinham o seu domínio, sufocando qualquer expressão de sentimento, a pessoa poderia, em vez disso, desmaiar, como acontecia a tantas mulheres vitorianas quando expostas a alguma manifestação pública de sexualidade. Em outros casos, a tentativa de reprimir uma experiência sexual precoce, simultaneamente com o sentimento sexual, produzia o que se chama um sintoma de conversão.  Neste caso, a pessoa manifestava alguma perturbação funcional, como paralisia, embora nenhuma base física possa ser encontrada para tal.  Foi através de seu trabalho com pacientes histéricos que Sigmund Freud começou a desenvolver a psicanálise e seu pensamento acerca da neurose. Entretanto, é importante não esquecer o contexto da sociedade em que suas observações foram feitas.

                A cultura vitoriana caracterizava-se por uma rígida estrutura de classes. A moralidade sexual e o excessivo recato sexual eram os padrões reconhecidos, sendo a austeridade, a compostura e a submissão as atitudes aceitas. As maneiras de falar e vestir eram cuidadosamente controladas e vigiadas, sobretudo na sociedade burguesa: as mulheres usavam espartilhos bem apertados e os homens colarinhos duros. O respeito pela autoridade era a ordem estabelecida. O efeito disso tudo era fazer com que muitas pessoas desenvolvessem um superego severo e rígido, o qual limitava a expressão sexual e criava culpa e ansiedade intensas a respeito do sentimento sexual.

                Atualmente, depois de muito tempo decorrido, o quadro cultural fez um giro de quase 180 graus (ou seria 360 graus). A cultura vigente é marcada por uma desintegração da autoridade dentro e fora do lar. Os hábitos sexuais parecem muito mais soltos e condescendentes. A capacidade das pessoas para mudarem de um parceiro sexual para outro avizinha-se de sua capacidade física de mudança de um lugar para outro. O recato sexual foi substituído pelo exibicionismo (e a pornografia). Por vezes, fica a vontade de perguntar se existirá qualquer padrão aceitável de moralidade sexual. Em todo o caso, é perceptível a existência de menos pessoas sofrendo de um sentimento consciente de culpa ou ansiedade acerca de sexo. Pelo contrário, muitas pessoas queixam-se de sua incapacidade para funcionar sexualmente ou do temor de fracassarem no desempenho sexual.

                É claro que esta é uma comparação muito esquemática entre os tempos vitorianos e os modernos. Entretanto, pode servir para sublinhar o contraste entre os neuróticos histéricos da época de Freud e as personalidades narcisistas da atualidade. Por exemplo, os narcisistas não sofrem de um superego severo e rígido. Muito pelo contrário. Eles parecem carecer do que poderia ser considerado até um superego normal, fornecendo alguns limites morais ao comportamento sexual e a outros. Sem um senso de limites, eles tendem a "transformar em atos" os seus impulsos. Há uma ausência de moderação em suas reações às pessoas e situações. Nem se sentem coibidos pelo costume ou a moda. Veem-se como indivíduos livres para criar seus próprios estilos de vida, sem regras sociais. Também neste caso, o inverso dos histéricos da época de Freud.

                Não é somente o quadro comportamental que revela o contraste; uma oposição semelhante existe ao nível de sentimento. Os histéricos são frequentemente descritos como hipersensíveis, como indivíduos que exageram seus sentimentos. Os narcisistas, por outro lado, minimizam seus sentimentos, almejam ser "frios". Os histéricos parecem vergados ao peso de um sentimento de culpa, do qual os narcisistas parecem aliviados.

                A predisposição narcisista é para a depressão, para uma sensação de vazio ou de ausência de sentimento, ao passo que a histeria a predisposição é para a ansiedade. Na histeria há um medo mais ou menos consciente de ser derrotado pelo sentimento; no narcisismo, esse medo é predominantemente inconsciente. Mas estas são distinções teóricas. Observa-se amiúde um misto de ansiedade e depressão por estarem presentes elementos tanto da histeria quanto do narcisismo. Isto é especialmente verdadeiro na personalidade de fronteira, uma variedade do distúrbio narcisista.

                A cultura vitoriana favoreceu sentimentos fortes, mas impôs restrições definidas e maciças à sua expressão, sobretudo na área da sexualidade. Isso parece ter culminado em histeria. A cultura atual impõe relativamente menos restrições ao comportamento, encorajando inclusive a "transformação em atos" de impulsos sexuais em nome da liberação, mas minimizando a importância do sentimento. O resultado é o narcisismo. É possível afirmar que a cultura vitoriana enfatizou o amor sem sexo, ao passo que a presente cultura enfatiza o sexo sem amor. Levando em conta o fato de que estas afirmações constituem amplas generalizações, elas colocam em foco, no entanto, o problema central do narcisismo: a negação de sentimento e sua relação com uma ausência de limites. O que sobressai hoje é uma tendência de considerar os limites como restrições desnecessárias ao potencial humano. Os negócios são conduzidos como se não existisse um limite ao crescimento econômico, e até na ciência já se fala (ou se almeja) a ideia de que é possível driblar a morte, isto é, transformar a natureza à própria imagem. Poder, desempenho e produtividade tornaram-se os valores dominantes, desalojando virtudes obsoletas como dignidade, integridade e respeito próprio.

 

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