terça-feira, 4 de maio de 2021

O Narcisismo

 

            O narcisismo descreve uma condição psicológica e uma condição cultural. Em nível individual, indica uma perturbação da personalidade caracterizada por um investimento exagerado na imagem da própria pessoa à custa do self. Os narcisistas estão mais preocupados com o modo como se apresentam do que com o que sentem. De fato, eles negam quaisquer sentimentos que contradigam a imagem que procuram apresentar. Agindo sem sentimento, tendem a ser sedutores e ardilosos, empenhando-se na obtenção de poder e de controle. São egoístas, concentrados em seus próprios interesses, mas carentes dos verdadeiros valores do self — notadamente, autoexpressão, serenidade, dignidade e integridade. Aos narcisistas falta um sentimento do self derivado de sensações corporais. Sem um sólido sentimento do self, vivem a vida como algo vazio e destituído de significado. É um estado de desolação.  Em nível cultural, o narcisismo pode ser considerado como perda de valores humanos — uma ausência de interesse pelo meio ambiente, pela qualidade de vida, pelos seres humanos - seus semelhantes.

            Uma sociedade que sacrifica o meio ambiente natural em nome do lucro e do poder revela sua insensibilidade em face das necessidades humanas. A proliferação de coisas materiais converte-se em medida de progresso na vida, e o homem é oposto à mulher, o trabalhador ao patrão, o indivíduo à comunidade. Quando a riqueza ocupa uma posição mais elevada do que a sabedoria, quando a notoriedade é mais admirada do que a dignidade, quando o êxito é mais importante de que o respeito por si mesmo, a própria cultura sobrevaloriza a "imagem" e deve ser considerada narcisista.  O narcisismo do indivíduo corre a par com o da cultura. A cultura é modelada de acordo com a imagem do indivíduo e, por sua vez, a sociedade é modelada por essa cultura. É possível entender uma sem compreender a outra? Pode a psicologia ignorar a sociologia, ou vice-versa?

            As neuroses de antigamente, representadas por culpas, ansiedades, fobias ou obsessões incapacitadoras, não, são comumente vistas hoje em dia. Pelo contrário, mais pessoas se queixam de depressão; elas descrevem uma ausência de sentimento, um vazio interior, uma sensação profunda de frustração e de insatisfação com o que lograram realizar na vida. Muitas delas são bem-sucedidas em seu trabalho, o que sugere uma divisão entre o que realizam no mundo e o que vai em seu íntimo. O que parece algo estranho é uma relativa ausência de ansiedade e culpa, apesar da seriedade do distúrbio. Essa ausência de ansiedade e culpa, conjugada com a ausência de sentimento, gera uma impressão de irrealidade em torno dessas pessoas. Seu desempenho — social, sexual e profissional — parece eficiente demais, mecânico demais, perfeito demais para ser humano. Elas funcionam mais como máquinas do que como pessoas. Os narcisistas podem ser identificados por sua falta das melhores qualidades humanas: ternura, compaixão, solidariedade. Não sentem a tragédia de uma vida consumida tentando provar seu valor a um mundo indiferente. Quando a fachada narcisista de superioridade e singularidade desmorona, permitindo que a sensação de perda e tristeza se torne consciente, é frequentemente tarde demais.

             O narcisismo denota um grau de irrealidade no indivíduo e na cultura. A irrealidade não é apenas neurótica, ela toca as raias da psicose. Existe algo de loucura num padrão de comportamento que coloca a ambição de êxito acima da necessidade de amar e ser amado. Há algo de loucura numa pessoa que não está em contato com a realidade de seu ser — o corpo e suas sensações. E existe algo de loucura numa cultura que polui o ar, as águas e a terra em nome de um padrão de vida "mais elevado". Mas, pode uma cultura ser insana? A loucura é vista como o estigma de um indivíduo que está alienado da realidade de sua cultura. Por este critério (o qual possui sua validade), o narcisista bem-sucedido está longe de ser louco. A menos, é claro, que exista alguma insanidade na própria cultura. A atividade frenética das pessoas nas grandes cidades — pessoas que estão tentando ganhar mais dinheiro, conquistar mais poder, ir em frente —é como uma ponta de loucura. Não é o frenesi um sinal de loucura?

            Para entender a insanidade embutida no narcisismo, é necessária uma visão mais ampla, não-técnica, dos problemas de personalidade. Quando o ruído na cidade, por exemplo, é suficiente para "enlouquecer" qualquer mortal, está se falando numa linguagem que é real, humana e significativa. Quando se descreve alguém como "um tanto louco", se está expressando uma verdade não encontrada na literatura psiquiátrica. É preciso compreender as causas culturais que criam o problema e os fatores na personalidade humana que predispõem o indivíduo para esse problema. E cumpre-nos saber o que é ser humano, se quisermos evitar tornar-nos narcisistas.

            O meu tratamento de pacientes narcisistas tenta resgatar ou estabelecer contato com seus corpos, a recuperar seus sentimentos suprimidos e a reaver sua humanidade perdida. Tal abordagem implica trabalhar para reduzir as tensões e a rigidez musculares que refreiam os sentimentos da pessoa. Mas nunca as técnicas específicas para tal devem ser consideradas como o processo mais importante. A chave para a terapia é a compreensão. Sem compreensão, nenhuma abordagem ou técnica terapêutica é significativa ou eficaz em nível profundo. Somente com compreensão é possível oferecer real ajuda. Todos os pacientes buscam desesperadamente alguém que os compreenda. Quando crianças, não foram compreendidos por seus pais; não foram vistos como indivíduos dotados de sentimentos nem tratados com respeito por sua condição humana. Um terapeuta que não discirna a dor em seus pacientes, que não perceba o seu medo e ignore a intensidade da luta que travam para conservarem sua sanidade, numa situação familiar suscetível de levá-los à loucura, não poderá ajudar eficazmente os pacientes a resolverem o distúrbio narcisista.

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