terça-feira, 23 de março de 2021

A “Psicoterapia” dos Amigos e Familiares

    

 Os indivíduos denominados de “nervosos” formam legiões mundo afora. Alguns, porque este “nervosismo” é pouco acentuado, conseguem dominar os ânimos, embora isto lhes custe um grande esforço contínuo e penoso. Outros, entretanto, depois de imensa e por vezes silenciosa luta interior, manifestam o desajustamento do sistema nervoso, por sintomas mais ou menos ruidosos e extremamente variáveis. Esse último, não podendo mais deixar de dar vasão às suas queixas – o que fazem seguidamente – acabam percebendo que a sua presença se torna desagradável, tanto aos familiares como amigos. O “nervoso” vê-se então, em dura e amarga alternativa: ou à custa de sacrifícios ingentes não se queixam de seus padecimentos, sentindo-se então ainda mais ansioso e angustiado, ou externa suas fobias, obsessões e preocupações de toda ordem. Nesta última hipótese fica mais aliviado, alívio este contrabalançado pelo desprazer de perceber sua companhia pouco desejada e incômoda.

    Com frequência, entre as pessoas relacionadas com o nervoso, ou melhor, neurótico, seja parente ou amigo, há alguém mais abnegado e compreensivo com tendências para fazer “psicoterapia”, portanto, que lhe dá mais atenção e conselhos. Estes também, no decorrer dos dias, acabam se cansando com os inúteis esforços que fazem para restituir a saúde psíquica a tal “paciente”. Isto acontece pelas decepções que o neurótico ocasiona a esse psicoterapeuta leigo, que repete e amplia inúmeras vezes e inutilmente argumentações, no sentido de provar-lhe que os sintomas de que se queixa são imaginários, não tem base em alguma lesão orgânica irreparável do corpo ou do cérebro. Por vezes o paciente dá sinais de que tais argumentações estrão produzindo bom efeito, chegando mesmo a confessar a esse parente ou amigo dedicado que, afinal, convenceu-se de que tudo que sente não passa de “cismas”, receios infundados e pueris. Contudo, quando o psicoterapeuta improvisado chega a julgar-se vitorioso e recompensado de seus esforços, surgem novamente, mais vigorosos do que antes, as fobias e obsessões, entrelaçadas quase sempre com sintomas físicos – palpitações, distúrbios digestivos, opressão cardíaca, garganta cerrada, sudorese em demasia, fadiga...

    Quando o assistente leigo, apesar da sua abnegação bate em retirada, literalmente derrotado, surge a nova etapa para o paciente, ainda mais ingrata, eis que passa a observar, já horrorizado, os amigos e parentes a se coligarem no sentido de provar-lhe com palavras mais energéticas e rudes que a única coisa de que precisa para ficar completamente curado é reagir contra os sintomas que o martirizam. Um dos erros mais lamentáveis cometidos pelos familiares e amigos do desajustado do sistema nervoso é praticado quando em uníssono, em coro, incitam-no a reagir a todo o transe, contra todos os sintomas neuróticos que, assim, dizem eles, desaparecerão de maneira rápida e definitiva, para satisfação plena de todos. Essas pessoas não lembram que se um adulto – seja homem ou mulher – chega a confessar sua sintomatologia neurótica, seus receios aparentemente pueris, tal como não poder passar por sobre um viaduto, não conseguir sair de casa sozinho, de perder o juízo, enfim, de uma infinidade de queixas, variáveis para cada caso, já se trata de uma reação heroica e quanto lhe foi possível.

    Isto porque essa confissão lhe é extremamente penosa, pois tem autocrítica e amor próprio, às vezes até exacerbado, para se acalmar de não ter outra saída senão a de falar sobre o seu próprio caso. Sugerir que estas pessoas reajam a qualquer preço contra os seus temores e apreensões, sem um preparo prévio, sem um treinamento cientifico e progressivo, é um absurdo igual ao se pretender que alguém com força física suficiente para erguer somente 15 quilos erga três vezes mais. Esta técnica de exigir que o neurótico reaja sem estar preparado para isto é contraproducente por duas razões fundamentais: primeiro, porque irá gastar nesta tentativa inglória as últimas reservas de energia que poderiam ser melhor aproveitadas; segundo, porque o paciente, nesta contingencia, não põe em dúvida que tais conselhos, partindo de pessoas estimadas, devem estar corretos. Por este motivo julga, ao fracassar nestas cruéis tentativas de reação, que isso acontece por ele ser fraco, carente de decisão e energia, ou seja, porque é diferente e inferior em comparação com os que o cercam.

    Uma vez verificado que o paciente não reage como os seus amigos e familiares desejavam e previam, estes últimos, continuam a achar que os sintomas de que se queixa não tem fundamento nem base real. Mudam, então, a tática: se não reage é mais uma prova de que tudo são “nervos”, exclusivamente “nervos”. Se acontece de o neurótico ter sido tímido quando criança, emotivo, tudo piora, pois à guisa de consolo e para prova de que os males dos quais se queixa não têm importância nem interferem na saúde. Logo, surgem mais apreciações de efeitos deprimentes: - isso não é nada!; - isso não tem importância!; - você sempre foi nervoso! Como o vocábulo nervoso tem na acepção popular, sentido, sob certos aspectos, pejorativo, depreciativo, sendo empregado por vezes para indicar falta de energia e coragem para enfrentar a vida e as situações difíceis, o indivíduo, depois de certo tempo fica convicto que, de fato, é um fracassado, um inútil, sem probabilidades de recuperação.

    Começa, então, a adquirir hábitos de vida singulares, a contornar os obstáculos, dando rodeios, em vez de encará-los de frente e a adotar um modo de vida em que procura adaptar-se à neurose, com perigo de cristalização definitiva da sintomatologia e consequente desdobramento da personalidade. Este desdobramento tem lugar quando, ao lado da parte sadia que raciocinam com lógica, julga os fatos com bom senso comum, começa a surgir outra doentia, cheia de temores, apreensões, inquietações, ansiedades, ao lado de sintomas físicos os mais variados, tudo aparentemente sem sentido, sem nexo, absurdo. O paciente dá conta de tudo isso e não consegue eliminar esse estado de coisas, ainda que se esforce ao máximo em tal sentido. Desde que chega ao ponto de sentir a própria personalidade combalida em seus alicerces e invadida por sensação de absoluta insegurança interna e externa, o neurótico começa a achar seus sintomas estranhos, incompreensíveis, por vezes mesmo algo misterioso e fora do alcance de recursos médicos.

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