terça-feira, 30 de março de 2021

A essência do homem

 

O Bicho Homem

                Qual a razão da espécie humana ser concomitantemente racional e primitivo em alguns aspectos da vida? Existe um elemento negativo que diferencia o homem da existência animal: a ausência relativa, no homem, de uma regulamentação instintiva do processo de adaptação ao mundo que o rodeia. O modo de adaptação do animal a seu mundo é sempre o mesmo e se o seu “equipamento” instintivo não mais estiver apto a fazer face a um meio em transformação, a espécie perecerá. O animal pode adaptar-se a condições mutáveis, modificando o seu meio. Dessa maneira, ele vive harmoniosamente, não na acepção de ausência de luta, mas na de que seu equipamento herdado se torna uma parte fixa e imutável de seu mundo: ou ele se adapta ou morre.

                Quanto menos complexo e rígido for o equipamento instintivo dos animais, tanto mais desenvolvido será o cérebro e, por conseguinte, sua capacidade de aprendizagem. O aparecimento do homem pode ser definido como tendo ocorrido no ponto do processo da evolução em que a adaptação instintiva atingiu o seu mínimo. Ele aparece, porém, com novas qualidades que o diferenciam do animal: sua consciência de si mesmo como entidade independente, sua capacidade de lembrar do passado, de visualizar o futuro e de indicar objetos e atos por meio de símbolos; sua razão para conceber e compreender o mundo; e sua imaginação que alcança bem além do limite de seus sentidos.

                O homem é o mais inerte dos animais, mas essa mesma debilidade biológica é a base de sua força, a causa primordial do desenvolvimento de suas qualidades especificamente humanas. A consciência de si mesmo, razão e imaginação romperam a harmonia que caracteriza a existência animal. O seu surto fez do homem uma anomalia, a aberração do Universo. Ele faz parte da Natureza, está sujeito a suas leis físicas e é incapaz de muda-las, no entanto ultrapassa o resto da Natureza. Tendo consciência de si mesmo, percebe sua importância e as limitações de sua existência. A razão, a bênção do homem, também é a sua maldição; ela o força a enfrentar incessantemente a tarefa de resolver uma insolúvel dicotomia.

                A existência humana, nisto, difere da de todos os outros organismos; acha-se em um estado de desequilíbrio constante e inevitável. A vida do homem não pode “ser vivida” repetindo o padrão de sua espécie: ele tem de viver. O homem é o único animal que pode aborrecer-se, que pode ficar descontente, que pode sentir-se expulso do paraíso. O homem é o único animal para quem sua própria existência é um problema que ele tem de solucionar e do qual não pode fugir. Ele não pode voltar ao estado pré-humano de harmonia com a Natureza; tem de prosseguir para desenvolver sua razão até que se torne o senhor da Natureza e de si mesmo. O aspecto mais saliente do comportamento humano é a tremenda intensidade de paixões e anelos revelada pelo homem. Freud, mais do que ninguém, reconheceu esse fato e procurou explica-lo em função das ideias mecanistas-naturalistas de seu tempo.

                Ele partiu da hipótese de que as paixões que eram expressões evidentes do instinto de conservação e do instinto sexual eram tão obstantes apenas manifestações mais indiretas e complicadas daqueles mesmos impulsos instintivo-biológicos. Brilhantes como sejam, entretanto, suas suposições não convencem ao contestar o fato de que grande parte das aspirações do homem não pode ser explicada pela força dos instintos. Mesmo que a fome, a sede e os desejos sexuais do homem estejam completamente satisfeitos, ele não está satisfeito. Em contraste como o animal, seus problemas mais compulsórios não estão ainda resolvidos, mas apenas iniciados. Ele anseia por poder ou por amor ou destruição; arrisca a sua vida por ideais religiosos, políticos ou humanistas. São esses os anelos que constituem e caracterizam a peculiaridade da vida humana. De fato, “nem só de pão vive o homem”.

 

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