sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

A ALIENAÇÃO MENTAL PROVOCADA PELA ERA DIGITAL

 

Os cérebros estão crescendo com deficiência

 Há quem diga que escrever acalma. Todavia, nem sempre é assim, principalmente quando a abordagem diz respeito ao comportamento humano descabido em pleno ano 2023. Incontáveis vezes, as palavras só aumentam a angústia. Nunca antes na história da humanidade, a “idiotização” mental foi realizado em tamanha escala. A impressão que se tem é que todo ser humano se transformou num mutante com cérebro atrofiado cuja origem se percebe, nítida e cientificamente, nos aplicativos desenvolvidos por gente incompetente com um único fim: fisgar e manter o usuário ativo. Não importa o meio, seja um Smartphone, Tablet, Computador, Televisão...verdadeiros catadores de mentes descuidadas, ingênuas e despreparadas.

Adultos à parte, a ala de jovens (dos 0 aos 18 anos, ou mais) são os mais prejudicados por uma razão muito simples: a mente está em plena construção e transformação. É um período de edificação cognitiva com forte “anemia linguística e comportamental, infelizmente. “As crianças são as mensagens vivas que enviamos para um tempo que não veremos” - palavras sábias de Neil Postman há décadas. Postman foi um renomado filósofo, crítico social e educador americano, conhecido por suas contribuições no campo da filosofia da tecnologia e da mídia. Nascido em 1931, em Nova York, Postman se destacou por sua visão crítica sobre o impacto da mídia e da tecnologia na sociedade contemporânea.

Diante de tantos alertas sobre a trajetória caótica que o mundo caminha, seria importante perguntar que tipo de sociedade se deseja num futuro não tão distante. A sociedade do futuro acenada no mundo atual promete um espectro distópico do Admirável Mundo Novo de Huxley. De um lado, os Alfas: pequena casta minoritária de crianças privilegiadas, preservadas dessa orgia recreativa e dotadas de um sólido capital humano, linguístico, emocional e cultural. De outro, os Gamas: vasta casta majoritária de crianças pouco favorecidas, privadas das ferramentas fundamentais do pensamento e da inteligência. Uma casta subalterna de executores zelosos, falando a “novilíngua” de Orwell, embrutecidos por diversões idiotas e felizes com a própria sorte. A diferença é que não haverá distinção entre jovens privilegiados e não privilegiados. No caso de haver será minúscula a tal diferenciação.

Não falta ou faltará quórum para rejeitar cegamente tal risco. O que é preciso ter em mente? Primeiramente, em termos de utilização das ferramentas digitais, a informação oferecida ao usuário carece singularmente de rigor e confiabilidade. Submetidos a inacreditáveis imperativos de produtividade, vários “críticos” simplesmente não dispõem de tempo para aprofundar o bastante sua compreensão do assunto para, de um lado, se exprimir com pertinência, e do outro, distinguir os especialistas qualificados das fontes incompetentes e duvidosas. Em segundo lugar, o consumo digital recreativo das jovens gerações não é apenas “excessivo” ou “exagerado”, é extravagante e está fora de controle. Dentre as principais vítimas dessa orgia temporal é possível perceber todos os tipos de atividades essenciais ao desenvolvimento. Por exemplo: o sono, a leitura, as trocas interfamiliares, os deveres escolares, as práticas desportivas ou artísticas, ... Em terceiro lugar, esse frenesi digital prejudica gravemente o desenvolvimento intelectual, emocional e físico dos jovens e não tão jovens.

De um ponto de vista estritamente epidemiológico, a conclusão extraída desses dados revela-se simples: as telas recreativas são um desastre absoluto (mais uma vez: não importa o meio de acesso). Qualquer doença que apresentasse o mesmo “pedigree” (obesidade, transtornos do sono, tabagismo, violência, déficits de atenção, atrasos na linguagem, ansiedade, memorização precária, e por aí vai) encontraria manifestações de um exército de pesquisadores. Contudo, com relação a esses brinquedinhos digitais, nem tanto. Apenas, eventualmente, algumas tímidas advertências e recomendações de “vigilância racional”. Em quarto e último lugar, se o efeito das telas recreativas é tão nocivo, isso se deve em grande parte ao fato de nosso cérebro não ser adaptado à fúria digital que assola a humanidade. Para um cérebro se constituir sadiamente é preciso moderação sensorial, presença humana, atividade física, sono regular e nutrição cognitiva favorável.

A onipresença digital oferece um mundo totalmente inverso: constante bombardeio perceptivo; desmantelamento das interações interpessoais (principalmente intrafamiliares); perturbação quantitativa e qualitativa do sono; ampliação das condutas sedentárias; e insuficiência de estimulação intelectual e cultural. Submetidos a essas pressões ambientais severamente insalubres, o cérebro sofre e se desenvolve com deficiência (querendo ou não as pessoas acreditarem nisso). Dito de outra forma, ele continua funcionando, é claro, mas muito aquém do seu potencial pleno. Isso é  trágico porque os períodos mais intensos de plasticidade cerebral, próprios da infância, não são eternos. Uma vez processados, eles não ressuscitam mais. O que foi deformado está perdido para sempre. O argumento besta da modernidade tão frequentemente apresentado adota assim sua dimensão ridícula: É preciso viver com seu tempo! Isso é incontestável. Mas é preciso prevenir o cérebro de que os tempos mudaram, porém, o cérebro é o mesmo há séculos. Há quem diga, ridiculamente, que o cérebro dos jovens de hoje já nascem sabendo tudo. Tá loko! Bota bobagem nisso! Infelizmente, antes de se adaptar perfeitamente ao ambiente digital (caso consiga um dia), alguns milênios serão necessárias. Enquanto isso, as coisas não vão se ajustar, e a realidade corre o risco de permanecer amarga.

Seria muito, muito bom que os ferrenhos defensores da digitalização do sistema escolar se conscientizassem disso também. Até hoje, o único elemento que demonstrou influência, realmente, positiva e profunda sobre o futuro dos jovens estudantes foi o professor (real, não virtual) qualificado e bem formado (para não dizer bem remunerado... mas isso já rende um outro texto bem extenso). Trata-se do único elemento comum a todos os sistemas escolares mais desenvolvidos do planeta. Bom seria se a literatura científica fosse mais positiva, encorajadora e menos inquietante. Afinal, o que é preciso fazer? Primeiro não se resignar. Não há, nesse cenário funesto, algo que seja invencível. Enquanto cidadãos e pais, há a escolha: nada obriga a entregar os filhos à terrível potência corrosiva das ferramentas digitais recreativas. Resistir não é fácil, mas é possível! Também é preciso rejeitar a célebre fábula do pária social. Esse pobre mártir que, sendo privado de acesso às redes sociais, aos videogames e aos benefícios de uma “cultura digital comum”, se encontraria irrevogavelmente isolado e rejeitado pelos seus pares. Tanta bobagem! Por sinal, na hora de negociar a compra de um Smartphone, um Tablet ou um console de jogos, crianças e adolescentes entenderam muito bem todas as vantagens que podem tirar desse tipo de discurso. Mas, na prática, essa conversa fiada não é sustentável.

Até hoje, nenhum estudo (sério) indica que a privação de telas para uso recreativo poderia conduzir ao isolamento social ou a qualquer transtorno emocional que seja. No entanto, um grande número de pesquisas enfatiza o impacto densamente prejudicial dessas ferramentas sobre os sintomas de depressão e de ansiedade. Expresso de outra maneira, a presença devasta enquanto a ausência não causa danos. Não se trata, aqui, de proibir todo acesso ao digital, mas de garantir que os tempos de utilização sejam mantidos abaixo do limite da nocividade. Assim que são rejeitados os discursos de impotência, a ação educativa pode retomar seus direitos. A questão é deveras simples de resolver: estabelecer regras precisas de consumo.

É preciso descobrir quem foi o inconsequente e irresponsável que afirmou e ainda afirma (com propriedade intelectual e científica de uma ameba) que para as crianças crescerem de modo saudável elas precisam de telas. Quem foi esse acéfalo? Elas precisam que falem com elas, leiam histórias para elas e recebam livros (não telinhas, as babás eletrônicas). As crianças precisam se entediar, brincar, montar quebra-cabeças, construir casas com Lego, correr, pular, cantar... Elas necessitam desenhar, praticar esporte, aprender música, arte ... Todas essas atividades (e muitas outras similares) constroem um cérebro de forma mais segura e eficaz do que qualquer tela recreativa. Não duvide disso! Ainda mais que a ausência da exposição digital durante os primeiros anos de vida não provoca nenhum impacto negativo a curto ou longo prazo. Não duvide disso! É tudo, absolutamente tudo, comprovado cientificamente, ao contrário do interesse mercantil dos discursos em prol da recreação e educação digital (para não citar, também, dos preguiçosos).

Nenhuma, nenhuma criança se tornará um deficiente no mundo digital porque não foi exposta às telas durante seus seis primeiros anos de sua vida. Ao contrário! O que ela desenvolverá longe das telas a ajudará a melhor utilizar o que o digital pode oferecer de positivo no futuro. Em doses modestas, controladas e inteligentemente “conduzidas”, as telas não são nocivas. Sem jamais esquecer: desde que os conteúdos sejam adaptados e o sono preservado. Em particular, quando o consumo diário é inferior a 30 minutos, elas não parecem ter efeitos negativos detectáveis. Entre 30 minutos e uma hora, emergem os danos, mas estes parecem bem fracos e podem ser considerados toleráveis. A partir desses dados, uma abordagem prudente poderia propor uma graduação por idade: máximo de 30 minutos até os 12 anos e 60 minutos além disso. Aos pais, convém lembrar que a quase totalidade de suportes digitais (tablet, smartphone, consoles de videogames, computadores, televisão, Internet, ...) propõe hoje, sob forma de opções ou aplicativos, sistemas úteis e eficazes de controle temporal. Uma vez atingido o limite diário previamente definido, o aparelho é bloqueado. Simples assim! Não sabe como fazer? Procura ajuda!

As telas (sejam quais forem) nos quartos têm um impacto especificamente desfavorável. Elas aumentam o tempo de uso (em particular tomando o lugar do sono) e favorecem o acesso a conteúdos inadequados. O quarto deveria ser um santuário, livre de qualquer presença digital. E para responder a uma objeção frequentemente apresentada: existem relógios despertadores de qualidade e baratos. Logo, o smartphone não se faz necessário (eles podem muito bem passar a noite dentro de uma gaveta na sala de estar). Seja sob a forma de videoclipes, séries ou videogames, os conteúdos de caráter violento, sexual, tabagista, alcoólico, ..., têm profundo efeito sobre a maneira como as crianças e adolescentes percebem o mundo. No mínimo, é importante respeitar as indicações etárias (uma tolerância quase surrealista reside na impressionante permissividade de certos sistemas de classificação das programações da rede televisiva do brasileiro).

Mas há solução: os aplicativos permitem, em quase todos os suportes digitais, bloquear o acesso a conteúdos inadequados. Obviamente, existem exposições incontroláveis por intermédio do smartphone dos amigos. É essencial falar sobre o assunto com as crianças e adolescentes. Não é uma solução final mas, infelizmente, é uma opção enquanto o poder público não ousa regular com seriedade o acesso de menores de idade aos conteúdos hiper-violentos, pornográficos e racistas ... Os conteúdos “estimulantes”, em especial, esgotam de forma duradoura as capacidades cognitivas da criança. De manhã, deixar ela sonhar, se entediar e tomar o café da manhã num ambiente sereno é saudável. Acredite! O reflexo poderá ser percebido no rendimento escolar. Também, as telas “noturnas” afetam intensamente a duração (deita-se mais tarde) e a qualidade (dorme-se mal) do sono. Os conteúdos “estimulantes” são, também, muito prejudiciais. Desligar tudo ao menos 1h30 antes da hora de ir para a cama é o indicado.

Um ponto de extrema importância. As telas devem ficar fora do alcance durante as refeições, os deveres e as conversas familiares. Quanto mais um cérebro em desenvolvimento é submetido a multitarefas, mais ele se torna permeável à distração. Além disso, quanto mais coisas ele faz ao mesmo tempo, pior é seu desempenho e pior é seu nível de aprendizado e memorização. O cérebro não foi arquitetado para as práticas da nova modernidade digital. Menos telas significa mais vida! Estas regras, sem dúvida restritivas, nada têm de extravagantes. Elas são incrivelmente eficazes! Quanto às horas reconquistadas da hegemonia das telas, é preciso devolvê-las à vida. Isso não é simples nem imediato, pois é toda a ecologia familiar que precisa se reorganizar. Mas se houver vontade, a galera se adapta, e o tempo “vazio”, enfim, pode se rechear de novas atividades: falar, trocar ideias, dormir, praticar esporte, tocar um instrumento musical, desenhar, pintar, esculpir, dançar, cantar, fazer cursos de teatro e, obviamente e muito importante, ler. E se o livro parecer realmente inóspito, muito simples, é só alçar mão das histórias em quadrinhos. Muitas delas são repletas de de uma riqueza criativa e linguística de causar surpresa. Enfim, se tudo isso parece um tanto difícil, jamais esquecer de uma coisa: no futuro, muitos agradecerão por ter oferecido à sua existência a fertilidade libertadora do esporte, do pensamento e da cultura, no lugar da esterilidade perniciosa das telas.

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