MENTE:
UM MISTÉRIO AQUÉM DO PONTO FINAL
A
filosofia da mente consolidou-se no século XX, resultado de uma jornada milenar
que a torna uma disciplina de história curta, mas de passado longo. Falar da
mente já foi privilégio de místicos, textos sagrados e filósofos refugiados em
teorias herméticas. No entanto, nos últimos anos esse assunto passou a ser um
tema abordado pela racionalidade profana da ciência. Na filosofia da mente
contemporânea aliam-se ciência e reflexão filosófica, numa combinação imposta
por se reconhecer a necessidade de uma investigação interdisciplinar. A mente
deixou de ser algo exclusivo dos seres humanos. Desde a década de 1940 (sim,
desde a década de 40!) a ciência passou a atribuir mente e inteligência a
máquinas e outros dispositivos artificiais. Desenvolveu-se uma tecnologia do
mental, da qual resultou uma aproximação crescente entre a psicologia, ciência
da computação e engenharia. Desse projeto interdisciplinar surgiu a
inteligência artificial e, posteriormente, a ciência cognitiva. A inteligência
artificial teve um triunfo efêmero há mais de 50 anos, suficiente para demonstrar
que muitas atividades consideradas exclusivas dos seres humanos, como, por
exemplo, jogar xadrez ou fazer cálculos matemáticos... poderiam ser executadas por
computadores.
A
replicação tecnológica da inteligência e das atividades mentais vem tendo
consequências profundas sobre o modo como se concebe a relação entre mente e
cérebro. Ela sugere que aquilo chamado de “mente” talvez não seja mais do que
um tipo específico de arranjo material, feito a partir de peças de silício.
Paralelamente à revolução computacional e seus desdobramentos mais recentes (a
partir dos anos de 1990), o mundo entra na “epopeia do cérebro”. Nela se
esperava que o desenvolvimento da neurociência, aliado aos progressos de outras
disciplinas como a genética e a biologia molecular, pudesse finalmente
desvendar a natureza da consciência humana que muitos já declaravam ser o
último mistério ainda não resolvido pela ciência (quem dera!). A década do
cérebro já terminou, grandes avanços foram alcançados, mas a natureza da
consciência ainda continua sendo um mistério.
Desse
período ficaram marcas profundas: nela, mais do que em qualquer época, houve a
tentativa de transformar a ciência da mente em ciência do cérebro - alegrias,
tristezas, pensamentos e outros estados subjetivos nada mais seriam do que o
resultado da atividade de alguns grupos de neurônios do cérebro. É possível
controlar quimicamente a ansiedade e angústia (e outros estados emocionais), o
que viria a confirmar que esses estados nada mais seriam do que desconfortáveis
ilusões subjetivas. Mas, ao dissipar ilusões subjetivas a neurociência parece
caminhar em direção a dissipar o próprio conceito de mente. Ao livrar-se da
ideia de mente, ela estaria jogando fora o bebê junto com a água do banho.
Entre
a tecnologia do mental e a neurociência haveria ainda algo que teria se tornado
uma terra de ninguém: a psicologia, que, durante muitos anos, teria permanecido
como reduto privilegiado daqueles que detinham o saber sobre as mentes humanas.
Para os neurocientistas e para os engenheiros do mental a psicologia está
vivendo seus últimos dias, estando fadada a desaparecer num futuro próximo, da
mesma maneira que a alquimia foi substituída pela química (parece improvável,
uma vez que as ciências se ajustam ao contexto histórico). “Mente” estaria se
tornando um conceito obsoleto. Desde seu aparecimento, há pouco mais de 150
anos (a princípio), a psicologia vem enfrentando um ajuste teórico (e prático) profundo.
Nas últimas décadas ela se tomou particularmente aguda, ao ponto de filósofos
como o austríaco Ludwig Wittgenstein a ironizarem com sentenças bombásticas
como “na psicologia há métodos experimentais e confusão conceitual”. Ele sugeriu
que os psicólogos nunca teriam realmente sabido do que estavam falando ao se
referirem a mentes. Desse pântano não parecem ter escapado os tecnólogos da
mente nem tampouco os neurocientistas. Quando lemos atentamente seus trabalhos
ou visitamos seus laboratórios frequentemente ficamos com a impressão de que
muitas vezes aqueles que se envolvem nesse tipo de empreendimento não sabem
exatamente o que estão fazendo. É como se tivessem um excelente navio, com uma
tripulação altamente qualificada sem, contudo, saber de onde se partiu e para
onde se está navegando, correndo o risco de algumas vezes tomar uma ilhota por
um continente ou cometendo o erro oposto.
O
conceito de mente ainda parece constituir o grande ponto cego da investigação
científica. Na contramão desse movimento científico encontramos uma forte
reação à invasão progressiva da ciência nos últimos redutos do mundo da mente:
o misticismo. Como se ele buscasse reencontrar algum tipo de (re)encantamento
do mundo, opondo-se à dessacralização e ao processo de naturalização da mente,
ou seja, a redução dessa ao substrato químico e biológico do cérebro. Do
misticismo desliza-se facilmente para a mistificação. A psicologia não ficou
imune a esse tipo de movimento, encontrando-se hoje invadida por doutrinas
exóticas dos mais variados tipos. O desafio a enfrentar é, então, o de
desenvolver um conceito de mente e de sua relação com o cérebro que acomode a
possibilidade de uma investigação científica interdisciplinar, uma investigação
que concilie a própria descrição como cérebros e organismos com nossa descrição
como pessoas dotadas de mentes.
Não
poderíamos resolver esse problema decretando unilateralmente o fim da ideia de
mente ou sustentando que essa passará para a lista dos conceitos científicos
obsoletos, da mesma maneira que o “flogisto” (a teoria dizia que quando um
objeto se incendiava, liberava uma substância misteriosa, denominada de
flogístico, considerada inerte e que não podia ser isolada dos outros
compostos, mas apenas transferida de um objeto para outro) foi substituído pelo
oxigênio. O problema da natureza da mente e de sua relação com o cérebro ainda
extrapola o âmbito da investigação cientifica existente. Mas, se a ciência não
pode resolver essa outra ordem de problemas filosóficos ou conceituais, tampouco
é possível virar as costas para ela.
Enfim,
a filosofia tradicional tem se debatido, durante séculos, com a questão de
saber se o cérebro produz a mente ou se ele apenas a manifesta, sendo apenas um
complexo e misterioso hospedeiro biológico. Da filosofia tradicional teríamos
legado apenas a aridez metafísica e da neurociência e engenharia do mental a
excessiva ingenuidade filosófica de alguns cientistas. Cabe à filosofia da
mente buscar uma terceira margem do raciocínio ou uma perspectiva da qual se
possa, ao se falar de mentes e cérebros, distinguir entre cavaleiros e moinhos
de vento. O problema das relações entre mente e cérebro constitui um problema
conceitual ou filosófico. As raízes históricas da discussão sobre a relação
entre mente e cérebro propõem que ambos são a mesma coisa, como o materialismo
contemporâneo. E, segundo os funcionalistas, a mente é um tipo específico de
organização que ocorre no cérebro humano, mas que pode ocorrer também num
computador ou em algum outro tipo de dispositivo artificial.
Esse tema impressiona não apenas pela enorme proliferação teórica que tem produzido nos últimos anos, como também pela perplexidade que tem suscitado. Busca-se uma teoria geral da consciência e da subjetividade, seja através de simulações computacionais, seja através do estudo do cérebro. A busca incessante dos correlatos neurais da consciência conduzem para um outro tipo de discussão que ocupa a filosofia da mente contemporânea: avaliar o significado das novas técnicas de mapeamento cerebral através das tecnologias de neuroimagem, que se consolidaram nas últimas décadas e que apontariam para a possibilidade de explicar a natureza dos fenômenos mentais a partir de propriedades específicas do cérebro humano. Trata-se de um assunto que já alcançou muito em termos de conhecimento, maaaassssss, está longe, muito longe de um ponto final (como tudo na vida).
Nenhum comentário:
Postar um comentário