No
princípio, nosso planeta era o centro do Universo. Ora, o ser humano era a obra
prima de um Deus todo poderoso que o amava — nada poderia ser mais justo!
Depois de muito tempo, vieram os astrônomos da Idade Média, que abalaram os
alicerces do pensamento geocêntrico da época, demonstrando que a Terra não era
o centro de coisa alguma — é ela que gira em torno de um Sol, e não o
contrário. Além disso, não há apenas o planeta Terra — há vários outros também.
Isso diminui um pouco o seu valor, mas não há problema, pois o sistema planetário
é tudo o que existe. Ponto! Teria sido bom para o ego da raça humana se todas
as descobertas se resumissem a isso, mas não foi o que aconteceu. Agora se sabe
que as estrelas que, à noite, são percebidas no céu, são outros sóis. Assim, o
sistema planetário deixou de ser o único, pois há muitas outras estrelas com
muitos outros planetas girando em seu redor.
Mas,
na verdade, não são apenas muitos sóis: são muitíssimos. De fato, são bilhões
de sóis! Esse é um número tão absurdo que sequer é possível imaginar o seu
significado. Contudo, tal número faz de tudo e de todos algo muito, realmente
muito pequeno, infinitamente pequeno. E isso tudo fica ainda pior quando o ser
humano chega à conclusão que é muito menor do que poderia imaginar. Toda essa
grandiosidade colossal está contida em apenas uma galáxia, e choca-nos pensar
que, além desta, há mais 100 bilhões de galáxias, com aproximadamente outros
100 bilhões de sóis em cada, e estes, talvez, sendo orbitados por muitos e
muitos planetas. No mínimo, é um tapa na cara de nossa arrogância terráquea.
Quem, diante disso, disser que representamos um grão de areia, estará fazendo
um elogio desmedido.
Contudo,
os cientistas não olharam apenas para fora da Terra. Também se voltaram para si
mesmos, colocando o homem na condição de objeto de estudo. Assim, paralelamente
às descobertas da Astronomia, as da Biologia vieram para terminar de dinamitar
o pequeno resto do orgulho do ser humano. Os estudiosos da fisiologia e
anatomia humanas já nos destrincharam por inteiro. Não há magia alguma — somos
somente animais... máquinas biológicas. Não encontraram alma nem espírito, só
vísceras. O coração não tem sentimentos — não passa de um músculo. Os
sentimentos, tão sublimes, são meras reações físico-químicas do cérebro. A personalidade,
tão cultivada e valorizada, julgada indestrutível, é tão frágil quanto a
disposição de todos os neurônios — um pequeno dano, e a pessoa que um foi deixa
de existir.
A
espécie humana, como qualquer outra, não passa de uma variedade de robô
biológico comandado por moléculas de DNA. Vive num mundo que é uma ficção
subjetiva, uma representação mental perdida entre inúmeras, infinitas
perspectivas possíveis. Os sentidos só enxergam a superfície de um ângulo da
realidade e, para eles, todo o resto é negro e impenetrável. Não é possível
abrir as cortinas da realidade para olhar o que está por detrás das aparências.
Tudo o que se pode conhecer é tão somente tudo aquilo que se pode tatear, às
escuras, com as frágeis e trêmulas mãos do intelecto. Todo o conhecimento,
desse modo, não passa de uma sofisticada suposição. Nunca haverá quaisquer
certezas plenas a respeito de quaisquer assuntos. Buscar verdades absolutas
racionalmente é uma ingenuidade, é como correr de modo desesperado a fim de
alcançar o horizonte — o anseio por tais verdades, ao contrário do que
gostaríamos de acreditar, não nasce da busca pelo conhecimento, mas da busca pela
paz de alma.
E
quem ainda pensa que, ao buscar o conhecimento, está lutando por uma causa
supostamente nobre, está a enganado, pois isso não passa de auto bajulação. A
nobreza não existe! Lutamos porque queremos, lutamos para nada e, no fim, nos
tornaremos nada. É essa a estranhíssima realidade em que nos vemos imersos. Por
bilhões de anos, fomos poeiras. Mas, de algum modo, há mais ou menos 3,5
bilhões de anos, essa poeira acordou. Foi transformando-se ao longo das eras,
até que, num certo momento, essa poeira criou consciência de si mesma — o pó
viu que era homem. E esse homem, por sua vez, viu-se num mundo insólito, sem
razão de ser. Então percebeu o absurdo que representava o próprio fato de ele
existir. Como passageiro de um trem que, inexoravelmente, conduz ao abismo do
nada, o homem, atônito, pergunta-se: mas por que aqui, por que agora? E, frente
a tais perguntas, o universo permanece mudo. Pergunta-se, depois: que é a vida?
Aparentemente,
nada mais que uma longa sucessão de eventos casuais que, por fim, deram luz a
máquinas programadas cegamente com precisão assassina, e com isso a eficiência
impassível veio a tornar-se o objetivo de um mundo sem objetivo. Podemos então
pensar: o que sou eu? E é simples: somos a máquina de sobrevivência modelo Homo
Sapiens. Quando se para para pensar nisso tudo detidamente, a perplexidade se
apodera da consciência. Ficamos estáticos, sem saber muito bem o que pensar.
Então vem a aflição e, se conseguirmos ainda preservar nossa lucidez diante
disso tudo, quanto mais nos aprofundamos nessa análise, mais essa angústia
cresce dentro de nós. Como se estivéssemos sonhando, às vezes parece que vamos
despertar dessa realidade fria e absurda — algo em nós reluta em admitir que
isso é tudo o que há para ser vivido.
Nossa
esperança sempre tenta nos persuadir a reinterpretar o que nossos olhos nos
dizem, mas todas as manhãs acordamos e vemos que tudo isso é real,
inescapavelmente real. Entre tais pensamentos, a realidade ao redor
simplesmente paralisa. A vida fica em suspenso, e surge a esmagadora
consciência de que nada disso que estamos vivendo tem sentido — a existência
humana como a mais vazia contingência. É insólita demais a ideia de que estamos
vivendo apenas porque “acontecemos”. A humanidade, nessa corrida frenética,
buscando felicidade, dinheiro, sucesso, avanço, glória, poder, conhecimento; a
imensa competitividade, que cresce a passos largos, movendo cada vez mais
rapidamente as engrenagens do mundo; e, ainda, nós próprios, lutando,
debatendo-nos nesse formigueiro de gente chamado Terra — tudo isso para chegar
a lugar nenhum. Parece uma grande loucura. Por que, quando pensamos nisso tudo,
nos vem essa sensação de paralisia, de vazio, de ausência de referencial? Há
uma dolorosa razão para isso: são exatamente as ilusões que alimentam nossas
motivações. Todo e qualquer objetivo que imaginemos é racionalmente
injustificável em si mesmo. É da paixão por nossas ilusões que extraímos nossas
forças. Quando compreendemos tais coisas pelas primeiras vezes — pois realmente
não é fácil nos acostumarmos com elas —, é natural sentirmos certo abatimento,
certo descompasso, pois a compreensão dissipa, por algum tempo, a força de
nossas ilusões.
A
razão, de certo modo, tem a capacidade de “dissolvê-las”, ainda que só
temporariamente — mas não é algo pelo qual deveríamos lamentar. Ainda assim,
tal dissolução de ilusões é prerrogativa de apenas alguns poucos indivíduos em
certas condições bastante privilegiadas: somente quando nos tornamos
suficientemente plenos, livres e corajosos para sermos capazes de prescindir de
nossas ilusões. Isso porque, quando necessárias à nossa subsistência, as
ilusões tornam-se inabaláveis, imunes a quaisquer argumentos. Mentiras
metamorfoseiam-se em verdades quando delas precisamos. Ninguém questiona o
valor da vida numa casa em chamas; um faminto nunca questiona o valor do
alimento — seja este da alma ou do corpo. Como vimos, não é a razão que, no
mais das vezes, nos diz o que fazer — ela apenas nos diz como fazer. A
razão não pode decidir nada puramente, sem uma vontade dionisíaca por detrás
lhe dizendo o que fazer. Assim, podemos dizer que, à parte o conhecimento
objetivo, o resto de nossas opiniões e de nossas crenças não é racional em sua
gênese.
Nossa
“filosofia de vida”, na prática, consiste apenas de uma racionalização de
nossas necessidades humanas — e tentamos, através disso, justificar nossas
ações, dando-lhes uma máscara de racionalidade. Porém, por detrás de todos os
nossos raciocínios, esconde-se a sombra irracional de nossos preconceitos e
paixões inconscientes. Desse modo, é inevitável que sejamos seres
necessariamente superficiais, pois nossa subsistência fundamenta-se no
autoengano. O fato é que, se nossa significância fosse proporcionalmente dosada
às crenças que precisamos nutrir para nos sentirmos motivados, seríamos todos
deuses — e que melhor exemplo poderíamos encontrar desse fenômeno que as
religiões? Nossas ilusões de significância precisam ser constantemente
alimentadas por razões que ignoram a própria razão, apontando diretamente
para nossas necessidades de autopreservação.
Nessa
perspectiva, podemos dizer que o esquecimento, às vezes, representa uma dádiva,
pois seria simplesmente impossível convivermos com a constante companhia dos
paralisantes fantasmas do vazio. Não pretendemos, portanto, promover o
aniquilamento generalizado de todas as nossas ilusões. Não pretendemos
extirpá-las porque isso não é possível — e tampouco desejável. Sem essas
pequenas mentiras, a vida não passaria de uma enfadonha tragicomédia. Estamos
apenas tentando delinear certas fronteiras. Estamos tentando, na medida do
possível, manter a distinção entre a subjetividade e a objetividade, visando,
com isso, duas coisas: compreender o que somos realmente e, assim, aprendermos
a lidar com nossa natureza de modo objetivo e eficiente, chegando o mais
próximo possível de nosso ideal de vida — seja este qual for.
E,
por outro lado, também desejamos evitar o dogmatismo, o misticismo e toda
cegueira de origem afetiva que paralisa o progresso do conhecimento humano. A
busca pelo saber científico deve ser feita com os pés muito firmemente presos
ao chão, sempre com o máximo de objetividade, para não se perder de vista —
inflados por ilusões antropocêntricas — a realidade da condição humana. Essa
separação é importante porque sempre que místicos investem em seu amor não correspondido
com a lógica, o resultado é um deplorável atravancamento do progresso do
conhecimento. É um erro tendencioso partir de desejos interiores, de crenças, e
então passar a procurar por uma correspondência na realidade. Se quisermos ser
imparciais, devemos sempre ter a honestidade de partir apenas dos fatos
objetivos — e não de nossos sonhos metafísicos — para inferir o que é real. Ao
longo da História até os dias de hoje, sempre se tentou comprovar a veracidade
das crenças religiosas — e sempre se falhou. Mesmo assim, elas subsistem,
conservando toda a sua vivacidade — e isso não é nenhuma surpresa.
Todo
tipo de crença mística pode prescindir da verificação exatamente porque possui
uma existência que é autônoma, independente da razão, independente dos fatos.
Desse modo, cumpre entendermos que a função de todas as crenças místicas,
religiosas e transcendentais é simplesmente satisfazer as necessidades afetivas
do ser humano. Deus, bem-aventurança, transcendência, elevação, nirvana,
paz espiritual, reino dos céus, contato com Deus — isso tudo são coisas tão
verdadeiras quanto um poema de amor. Ser um “filho de Deus” é um estado de
espírito, um sentimento, é algo que se vive, não algo que se prova
cientificamente. Crenças desse gênero servem para proporcionar bem-estar e
segurança, para reduzir a ansiedade através de respostas definitivas sobre o
mundo, sobre a moral, sobre a vida... Contudo, parece que a maior parte dos
indivíduos ainda não tomou consciência de que a felicidade que uma crença
proporciona não pode assegurar sua veracidade. Como podemos perceber, quando
analisamos e entendemos uma ilusão racionalmente, quando a tiramos de seu
pedestal mágico, ela perde muito de sua força, a qual residia exatamente na
incompreensão ou em seu caráter inquestionável.
Esse
tipo de honestidade, quando voltada à existência como um todo, faz com que,
passo a passo, tomemos consciência de nossa completa insignificância — e,
depois de tê-lo feito, dificilmente conseguimos voltar ao que éramos. O
esclarecimento é um caminho que, além de penoso, é sem volta — daí ser trilhado
por tão poucos. Por nossa própria integridade, fomos reduzidos da coroa da
criação a um ponto infinitesimal que não é útil nem inútil — que simplesmente
não importa. Sem dúvida, ainda podemos dar algum sentido às vidas, mas nosso
senso de importância foi irreparavelmente abalado pelos rudes golpes da
ciência. E, na verdade, o que ela atingiu foi apenas a parte dele que havia
sido inflada por devaneios antropocêntricos, pois o fato é que nunca fomos
importantes. Ela só nos pegou de surpresa, pois era impossível imaginarmos que
todos nós somos tão pouco. Lançamos nossas esperanças ao desconhecido e fomos
vítimas de nossas próprias expectativas. Agora colhemos a frustração e o
desapontamento de nada daquilo que sonhávamos ser real.
Muito
bem, aqui estamos nós, solitários, no deserto inóspito que se oculta por detrás
de nossas ilusões. A diferença está no fato de que nós, ateus e
livres-pensadores, somos capazes de sobreviver sob tais condições. Suportamos
tamanha aridez sem invocar consolos em realidades paralelas, onde seremos
recompensados post mortem por todas as nossas infelicidades e
frustrações. Da vida, não esperamos nada além da vivência, e poucos são os que
compreendem quanta coragem está contida na lúcida afirmação de que nossa vida
não é senão um efêmero lampejo — quem disso ri, pouco compreende de si mesmo e
do mundo em que vive. Sim, somos humildes, mas apenas porque somos honestos,
não porque somos obedientes. Nossa pequenez não é virtude — são os fatos. Nós
somente admitimos o que vemos — nossa incomensurável insignificância frente ao
existente. É uma situação que tem um gosto acre, e o sabemos muito bem. Mas o
que poderíamos fazer?
Não
podemos permanecer crianças para sempre. O infantilismo místico tem de ser
superado se não quisermos passar o resto de nossas vidas imersos num oceano de
sonhos falsos. É certo que esse entendimento da realidade, além de penoso, não
é muito intuitivo. É por isso que só intelectualmente, através de uma reflexão
séria, o homem se vê diante de tais conclusões. Apenas assim apreende o enorme
vazio que é a existência — e é precisamente isso que faz surgir nele a
consciência de que sua liberdade é absoluta. O fato é que, nessa situação, o
homem se vê isento de qualquer responsabilidade em toda perspectiva que puder
imaginar. Simplesmente não há autoridades — nenhuma. Não há deveres — nenhum.
Não há bem e não há mal. Não há melhor nem pior. Não há certo nem errado.
Afinal, que é um ser humano senão um aglomerado de átomos que sabe que existe?
Uma máquina sozinha no mundo, ciente de que existe e de que, um dia, deixará de
existir?
Ora,
se há algo certo, é que estamos todos condenados a inexistir. E, quanto a isso,
não importa o que fazemos de nossas vidas. É de todo irrelevante se durante ela
fomos ateus ou crentes, bondosos ou maldosos, esforçados ou indolentes,
honestos ou hipócritas, egoístas ou altruístas. Todos nós, um dia, seremos
despojados de nossas faculdades. Nosso “eu” será suprimido da existência e
nosso corpo se converterá em ausência — e, não muito tempo depois, sequer
restarão memórias do que fomos. Se quisermos imaginar como é inexistir, só
precisamos tentar nos “lembrar” de quando ainda não havíamos nascido — é como
um sono eterno, sem sonhos. Não haverá recompensas no fim desse jogo, somente a
face eternamente negra do nada. Pode parecer pessimismo, mas não é. A
existência humana resume-se a isso.
Se
a ideia soa deprimente, é porque a realidade de fato é deprimente. O homem
simplesmente está aí, suspenso no vácuo, lançado na existência, no eterno devir
do mundo, sem significado, sem razão, sem sentido ou objetivo. Portanto, livre
de qualquer obrigação, livre de qualquer destino. Todavia, não sejamos
ingênuos: isso certamente não equivale a dizer que o homem é dono de seu
destino. Por detrás de seu suposto livre-arbítrio se escondem seus muitos
preconceitos genéticos, suas inúmeras limitações e todo o condicionamento
externo — coisas que, sem dúvida, fogem de seu controle. E, ainda supondo-se
que sua vontade fosse totalmente livre, isso não faria muita diferença, pois
ela não é a única força que atua na determinação do destino dos indivíduos.
Portanto, dizer que o homem é totalmente livre não equivale a dizer que o homem
é onipotente — “tudo é permitido” não significa “tudo é possível”.
Devemos
enxergar nossas limitações: somos apenas um amontoado de aminoácidos
presenciando este efêmero e curioso passatempo chamado vida. O importante é
termos em mente que parte considerável da estrutura de valores e significados
que carregamos é criada por nós mesmos. Isto é, tudo o que possui valor, o
possui apenas porque reconhecemos esse valor e o aceitamos como verdadeiro — e
fazê-lo não equivale justamente a criar esse valor? Se não atribuíssemos valor
aos diamantes, que seriam eles senão diminutas pedrinhas brilhantes difíceis de
se encontrar? Assim, se quisermos ser ao menos intelectualmente livres, nunca
devemos perder de vista o fato de que todos os significados, valores e sentidos
são apenas um reflexo da natureza humana. Devemos ignorar a fictícia autoridade
dos gélidos valores fossilizados, idealizados e impessoais. Não demos ouvidos
aos moralistas dogmáticos que nos falam de “virtudes boas por si mesmas” — não
passam de déspotas, quer o saibam ou não. Nunca devemos dobrar nossos joelhos a
qualquer tipo quimera da abstração — pelo contrário, coloquemo-las de joelhos
perante nós!
Sejamos
nós os senhores de nossas virtudes, não as virtudes os nossos senhores. Os
únicos valores verdadeiros são os humanos. Eles devem possuir vida, devem
respirar, devem ser nossa criação, devem surgir como fruto de nossa
individualidade, de nossa autenticidade, de nosso reconhecimento, de nossa
necessidade interior e pessoal e em nossa defesa — representando, assim, nossa
natureza íntima, nosso posicionamento frente à realidade. Os valores de todos
os tipos se estabelecem através de um mecanismo baseado na autoridade — numa
espécie de imposição. A diferença é que, no homem escravo e resignado, os
valores se estabelecem através de sua submissão à autoridade de ideias
externas, sacrificando sua individualidade em nome de supostas verdades
superiores. Por outro lado, no homem esclarecido, os valores se estabelecem por
meio do entendimento — a imposição nasce de dentro para fora, e nisso ele é sua
própria autoridade. Assim, seus valores surgem como um reflexo de sua
inteligência, de seus desejos e de suas necessidades — os valores, aqui, muito
antes de suprimirem sua individualidade, são sua mais elevada expressão.
Por
isso, tendo em vista todos os fatos que apresentamos, negamos a existência de
qualquer espécie de verdade, valor ou dever impessoal. À medida que a verdade é
transformada em abstração como uma lei suspensa acima do homem, à medida que
ela julga — aprovando ou condenando — apenas em função de si mesma, como valor
em si, sem levar em consideração as circunstâncias específicas de cada
situação, de cada indivíduo, ela se torna despótica, restringente, opressiva e
tirânica. Quando se permite que a verdade tome vida própria — e sem dúvida isso
nos remete à ideia de Deus —, ela se transforma num monstro dogmático,
autoritário e intolerante, que representa uma enorme ameaça à liberdade humana.
Quando são impostos alicerces comuns à construção de todas as individualidades,
quando se aquilata todos os homens com a mesma balança, quando se nivela o
valor fundamental de todos através da mentira da “ordem moral do mundo”, da
“igualdade das almas perante Deus” ou através do respeito à autoridade de
qualquer quimera da abstração, a injúria com isso cometida é substancialmente a
mesma: o acorrentamento da individualidade, a imposição da igualdade entre os
diferentes — um ataque fulminante contra a liberdade humana, uma punhalada no
coração de nossa autenticidade. Certamente em vão se procuraria por um crime
mais revoltante que esse.
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