Em meio a tantos conflitos mundo afora, o homem, aquele bicho tartamudeante que se conhece emergindo da Idade da Pedra, procura o seu caminho, procura a si mesmo. Nas várias definições conhecidas, ele é o animal que ri, o bicho econômico, o “retrato de Deus”, o fabricante de instrumentos. Já há mesmo quem tenha dito, estabelecendo o quão é absurdo o homem, que de todos os animais é o único que se suicida, que atenta contra a própria sobrevivência, o instinto mais arraigado na natureza animal.
Decerto nenhuma dessas definições é totalmente verdadeira...ou, talvez, cada uma diga um pouco da sua verdade. Chafurdando na mais bruta animalidade, erguendo-se às maiores alturas, humilde e orgulhoso, rindo e chorando, possessivo e desprendido ao mesmo tempo, o homem é uma organização demasiadamente complexa para caber, todo inteiro, numa só formula definidora.
Como não há fórmula que o defina, não há solução à vista para a sua felicidade. Os horizontes atuais não nos garantem que se possa equaciona-lo com precisão e, em consequência, não podemos supor qual o estado ideal em que ele se realizaria plenamente, desenvolvendo todas as suas potencialidades e sendo feliz como até agora não o foi.
Não é segredo que vivemos numa sociedade competitiva que nos obriga a fazer o que não gostamos, a fazer trabalhos que impedem qualquer realização humana. É uma corrida desumana para resultados aparentes, para nos afirmarmos, para nos rodearmos de coisas e, muitas vezes, sem transcendência espiritual. Muitas vezes, conseguimos perceber que nossa vida interior é dirigida pelo que há a nossa volta e não tem, na realidade, uma meta.
Helvécio, um enciclopedista, considerado um radical materialista, principal pensador do utilitarismo, na linha de John Locke, entendia que todos os atos são ditados pelo egoísmo e pelo amor próprio. A virtude é o egoísmo munido de óculos de alcance. A consciência não é a voz de Deus, mas o medo da polícia, o sedimento deixado em nós pelas inibições com que pais, mestres e livros inundaram a nossa alma em formação.
Desde que os nossos ancestrais pré-históricos iniciaram o desenvolvimento do neocórtex, ou camada de massa cinzenta cerebral mais recente, cuja função diz respeito ao uso da razão, muita coisa mudou – já existiam outras estruturas primitivas relacionadas ao instinto e às emoções. Saltos tecnológicos conduziram o homem até ao quase inimaginável. Da pedra lascada à modificação genética, o mundo foi testemunha de cada avanço obtido através do pensamento e da ousadia. Mas tal avanço revela dois aspectos dignos de nota: a evolução, por um lado, gerou o convívio regrado entre as pessoas pelas determinações do que se convencionou chamar de sociedade, e, por outra parte, as razões que levaram o ser humano a empreender (e aceitar), obstinadamente, tamanha empreitada.
Indaga-se, pois: que motivos impulsionaram o homem a inventar tanto? É possível estabelecer facilmente duas justificativas. Uma delas é o conforto, pois nós somos atraídos pelo prazer e inversamente repelimos o desprazer, reforçando, portanto, o apego ao bem-estar que deriva de cada invento, além da economia de energia e acomodação pessoais que se estabelecem inevitavelmente. Outra prova versa sobre o desenvolvimento humano, considerando-se tanto a aprendizagem quanto a mudança - elementos fundamentais à sobrevivência e ao progresso evolutivo -, sem as quais seria impossível a convivência humana. Inicialmente, o ser humano teve que lidar do modo mais grosseiro com os reveses impostos pela vida. Para melhorar a condição em que se encontrava precisou pensar e aprimorar o intelecto. Eis o preço cuja moeda foi a reflexão.
Todavia, quanto mais penetrava no novo universo da sapiência, tanto mais se abriam os seus olhos diante de novos problemas mais sutis e menos motivadores: a natureza mostrava-se nua e crua para aquele que conseguira superar alguns graus de inconsciência a esse respeito. Do ser tosco e sombrio que ficava para trás, em razão do homem que desabrochava na direção da luz do saber, rompeu-se a cegueira que camuflava a causticante realidade. Nasceu daí uma dor, profunda e agonizante, levando o seu autor a ter de se defender. Eis a maçã bíblica do paraíso.
Porquanto após trágico diagnóstico, restava ao enfermo o automedicamento cuja cura lhe asseguraria a retomada do prazer roubado pela olhadela que dera na inoportuna realidade. Foi então que, sem se dar conta, passou a fazer uso do autoengano, tornando as coisas mais suaves, pelo menos na sua aparência. Pelo menos enquanto lhe fosse permitido ludibriar a si próprio.
E o engodo deu certo. O entorpecimento resultante foi bom. O pesar febril cedeu. Mas a infecção da ignorância não arredou o pé. O aconchego morno das vantagens relacionadas ao bem-estar e a acomodação que se sucederam ajudou a sustentar tamanha arapuca. As estratégias se sofisticaram, e de invenções como o agrupamento social das pessoas, legalizando o poder, o controle, e a submissão (e a aspiração para tal), o suplício original revestiu-se de roupagem aceitável. Com o tempo, cada invento, o casamento, por exemplo, incorporou-se tão enraizadamente que o artificial se transformou em natural. É infantil, mas até hoje é percebido assim.
Entretanto, a inconsciência ainda domina o homem. Para sair dela é preciso enfrentar, mesmo sob forte dor, a realidade que o psiquismo teima em negar. O próprio fato de o ser humano ser bem pouco consciente sobre o seu próprio estado já é uma evidência da escuridão em que se encontra mergulhado. Pior: se auto iludir, convencido de que se situa em um alto grau de consciência, pouco lhe criará incômodo, e, assim, dificilmente sairá do lugar, restando atrasado e bastante inconsciente dos deveres e direitos que têm para consigo mesmo. Não sem antes retirar, reflexiva e gradativamente, o manto do entorpecimento que lhe atrasa consideravelmente a própria evolução rumo à maturidade real e não auto enganada.
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