"Sociedade do espetáculo": esta
expressão já está em voga, especialmente ao se falar de televisão.
No Brasil, parece se impor mais do que em outros lugares. Poucos,
porém, sabem que, na origem, este era o título de um livro de Guy
Debord. Lançado na França em 1967, A Sociedade do Espetáculo
tornou-se inicialmente livro de culto da ala mais extremista do Maio
de 68, em Paris; tornou-se um clássico em muitos países. Em um
prefácio de 1982, o autor sustentava com orgulho que o seu livro não
necessitava de nenhuma correção.O "espetáculo" de que
fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação
de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais
superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com
múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que
o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e
fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a
consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua
existência real.
Têm
de olhar para outros (estrelas, homens políticos...) que vivem em
seu lugar. A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se
realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no plano da
imagem. Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida
caracterizava-se pela notória degradação do ser em ter, no
espetáculo chegou-se ao reinado soberano do aparecer. As relações
entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no
fetichismo da mercadoria de que Marx falou, mas diretamente pelas
imagens. Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica
própria, como pensam, ao contrário, os pós-modernos "a la
Baudrillard", que saquearam amplamente Debord.
A
imagem é uma abstração do real, e o seu predomínio, isto é, o
espetáculo, significa um "tornar-se abstrato" do mundo. A
abstração generalizada, porém, é uma consequência da sociedade
capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais
desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas
as qualidades concretas do objeto são anuladas em favor da
quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo,
a economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os homens
submetem-se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice:
o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que
o homem se crê governado por algo que, na realidade, ele próprio
criou.
Nessa
base, Debord condena toda a sociedade existente, não somente
fraquezas individuais e imperfeições. Em 1967, Debord distinguia
dois tipos de espetáculo. O "difundido" (o tipo ocidental,
"democrático") caracterizava-se pela abundância de
mercadorias e por uma aparente liberdade de escolha. No espetáculo
"concentrado", ou seja, nos regimes totalitários de toda a
espécie, a identificação mágica com a ideologia no poder era
imposta a todos para suprir a falta de um real desenvolvimento
econômico. Toda a forma de poder espetacular justificava-se
denunciando a outra; e nenhum sistema, além destes dois, devia ser
imaginável.
Debord,
portanto, reconheceu na antiga e extinta URSS, nada menos do que 25
anos antes de seu fim, uma forma subalterna – e destinada, enfim, a
sucumbir - da sociedade da mercadoria. Mas, por um longo período,
enquanto existia um proletariado inquieto, o comunismo de Estado
desempenhou uma função essencial para o espetáculo ocidental: a de
assegurar que os rebeldes potenciais se identificassem com a mera
imagem da revolução, delegando a ação real aos Estados e aos
partidos comunistas totalmente cúmplices do espetáculo ocidental;
ou, então, a pressupostos revolucionários muito distantes, no
Terceiro Mundo.
Debord
anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação
de tipo novo: retomando o conteúdo liberatório da arte moderna,
teria como programa a revolução da vida cotidiana, a realização
dos desejos oprimidos, a recusa dos partidos, dos sindicatos e de
todas as outras formas de luta alienadas e hierárquicas, a abolição
do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Por isto, Debord
sempre considerou o conteúdo profundo de 1968 como uma confirmação
de suas ideias.
Teve,
porém, de admitir, em Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo
(1988), que o domínio espetacular conseguiu se aperfeiçoar e vencer
todos os seus adversários; de modo que agora é a sua própria
dinâmica, a sua desenfreada loucura econômica a arrastá-lo em
direção à irracionalidade total e à ruína. Os dois tipos
anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um único
tipo: o "integrado". Sob a máscara da democracia, este
remodelou totalmente a sociedade segundo a própria imagem,
pretendendo que nenhuma alternativa seja sequer concebível. Nunca o
poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar tudo, desde a
cerveja, o pensamento e até os próprios revolucionários. Ninguém
pode verificar nada pessoalmente. Ao contrário, temos de confiar em
imagens, e, como senão bastasse, imagens que outros escolheram. Para
os donos da sociedade, o espetáculo integrado é muito mais
conveniente do que os velhos totalitarismos. A América Latina sabe
algo a respeito. Mas Debord (1931-1994) não é apenas um dos poucos
autores de inspiração marxista que hoje podem dar uma contribuição
válida para a análise do capitalismo globalizado e pós-moderno.
Ele também fascina por sua vida singular, sem compromissos e
conforme as suas teorias.
A
busca da aventura e da vida "verdadeira" esteve na base de
sua vida pessoal - da qual a sua autobiografia Panegírico e os seus
filmes falam -, assim como de sua teoria. Levou uma existência
intencionalmente "maldita", às margens da sociedade, sem
um trabalho reconhecido, sem nenhum contato com as instituições,
sem nunca ter frequentado uma universidade, concedido uma entrevista
ou participado de um congresso e, no entanto, conseguiu fazer com que
fosse ouvido. Levou adiante a sua batalha contra a sociedade
espetacular exclusivamente com os meios que ele próprio criou para
si: em primeiro lugar, com a Internacional Situacionista, uma pequena
organização que existiu entre 1957 e 1972 e que se originou da
decomposição do surrealismo parisiense e de outras experiências
artísticas.
Com
a revista homônima e novos meios de agitação (quadrinhos,
organização de escândalos), os situacionistas souberam prefigurar,
muito melhor do que a esquerda "política", as novas linhas
de conflito na sociedade "da abundância". Entre outras
coisas, criticavam impiedosamente a nova arquitetura, o vazio e o
tédio do pós-guerra. Com poucas intervenções miradas, os
situacionistas fizeram com que ideias subversivas - que, por volta de
1960, eram compartilhadas por um punhado de pessoas - se tornassem,
em 1968 e posteriormente, um fator histórico de primeira ordem. Os
situacionistas, e particularmente Debord, distinguem-se pelo estilo
inconfundível, e não somente no plano literário. Era o resultado
da mistura entre um conteúdo radical - que remetia, entre outros,
aos dadaístas, aos anárquicos e à vida popular parisiense - e um
tom sofisticado e aristocrático, com muitas referências à cultura
clássica francesa.
Este
estilo, assim como a sua verve polêmica, mesmo para com todos os
supostos contestadores (esquerda oficial, artistas "engajados"...),
sua inacessibilidade e a sua transgressividade nas formas, logo os
cercou de um ódio significativo, mas sobretudo de uma aura de
mistério. Que ainda vive, 30 anos depois: com efeito, ainda se
publicam textos dos situacionistas e sobre eles, embora amiúde
procurem fazê-los passar exclusivamente por última "vanguarda
cultural". Na França, ao contrário, só querem enxergar em
Debord o escritor. Ainda hoje não querem perdoá-lo por ter escrito
A Sociedade do Espetáculo.