A PERIGOSA INDÚSTRIA DAS DOENÇAS MENTAIS
Diretor da revisão do DSM
IV, em 1994, o psiquiatra Allen Frances alerta que aumento de diagnósticos de
transtornos mentais está engolindo a normalidade.
Por:
Flávia Milhorance 17/10/2014 - 14:20
(Allen Frances alerta que
expansão da fronteira psiquiátrica está levando a aumento de diagnóstico e
engolindo a normalidade)
Traduzido para 12
idiomas, mas ainda em busca de editora no Brasil, o livro de Allen Frances
“Saving Normal” (Salvando o normal, em tradução livre) questiona o manual que é
referência para psiquiatras do mundo nos diagnósticos de transtornos mentais.
Para Frances, dificuldades diárias ganharam nomes de distúrbios no DSM (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Como resultado, uma legião
de pessoas usa remédios sem necessidade, tendência que, ele diz, tem influência
da indústria farmacêutica.
O DSM 5, mais recente
edição da “bíblia da psiquiatria”, é cercado de polêmicas, e uma delas veio do
Instituto Nacional de Saúde Mental (NHI), um dos principais órgãos
norte-americanos, que decidiu excluir de financiamentos as pesquisas que se
baseiam nas categorias do guia. Especialistas como Frances — diretor da revisão
da edição anterior a esta, o DSM IV — dizem que os critérios de diagnósticos
são “frouxos” e podem sofrer pressões de setores interessados.
O senhor acredita num
retrocesso do DSM 5 em relação do DSM IV?
Houve pouca controvérsia
no DSM IV (1994) porque ele rejeitou 92 de 94 sugestões de novos diagnósticos.
O DSM 5 (2013) é muito polêmico porque abriu as portas para a irresponsável
abundância de diagnósticos e de venda de remédios.
Na sua opinião, novos
transtornos foram incluídos sem necessidade no DSM 5? De quem é a
responsabilidade?
Sim, estamos
transformando os problemas diários em transtornos mentais e tratando-os com
comprimidos. Parte do problema é que o sistema de diagnóstico é muito frouxo.
Mas o principal problema é que a indústria farmacêutica vende doenças e tenta
convencer indivíduos de que precisam de remédios. Eles gastam bilhões de
dólares em publicidade enganosa para vender doenças psiquiátricas e empurrar
medicamentos.
Quais seriam os exemplos
desses excessos do manual?
Uma tristeza normal se
tornou “transtorno depressivo maior”; um esquecimento da idade é “transtorno neuro
cognitivo leve”; birras usuais do temperamento infantil se tornam “transtorno
disruptivo de desregulação do humor”; exagerar na comida virou “transtorno da
compulsão alimentar periódica”; uma preocupação de um sintoma médico é
“transtorno de sintoma somático”; e em breve todos terão “transtorno de déficit
de atenção e hiperatividade” (TDAH) e tomarão estimulantes.
Quando o psiquiatra Leon
Eisenberg, considerado “o pai do TDAH”, se deparou com o aumento do diagnóstico
nos EUA, ele o chamou de “doença fictícia”. Qual é a sua opinião?
O TDAH ocorre em 3% das
crianças, mas é diagnosticado em 11% de americanos e, ridiculamente, em 20% de
adolescentes homens. O remédio pode ser bom para poucos e terrível se usado em
muitos.
Quão profundo pode ser o
impacto de remédios desnecessários no comportamento desses indivíduos?
Fazemos um vasto e
descontrolado experimento em nossas crianças, banhando seus cérebros imaturos
com produtos químicos fortes sem saber seus efeitos de longo prazo. Pais
precisam se tornar consumidores informados e proteger seus filhos.
A indústria farmacêutica
exerce alguma pressão sobre o grupo de trabalho responsável pela revisão do
DSM?
Ela espera às margens e
não faz pressão na revisão de diagnósticos. Mas tem financiamento ilimitado e
os melhores cérebros publicitários dedicados a difundir a desinformação de que
transtornos psiquiátricos são subdiagnosticados e fáceis de diagnosticar. E
apresenta comprimidos como solução.
Temos dados científicos
suficientes para embasar os diagnósticos?
Aprendemos muito sobre o
funcionamento do cérebro, mas até agora isso não ajudou um único paciente. O
cérebro é a coisa mais complicada que existe. A passagem da ciência básica para
a prática clínica é dolorosamente lenta, e não podemos nos apressar na psiquiatria.
Ainda não temos testes biológicos para definir doenças mentais, mas isso não
significa que não podemos ajudar aqueles que realmente precisam.
Como balancear a crítica
ao excesso de diagnóstico sem elevar o preconceito com os doentes?
Enquanto tratamos em
excesso os que não precisam, vergonhosamente deixamos os doentes de verdade ao
léu. Temos ferramentas para ajudá-los a ser produtivos e ter dignidade.
Quais são as
consequências disto?
Os gravemente doentes
terminam na rua, em prisões ou hospitais psiquiátricos inadequados. Precisamos
focar nos que estão doentes e proteger os que acham que estão. Nos EUA, pessoas
morrem mais por remédios prescritos do que de drogas ilícitas.
Que medidas sociedade,
cientistas, autoridades e indústria farmacêutica poderiam tomar?
Apertar o sistema de
diagnóstico; recapacitar médicos para os riscos, e não apenas os benefícios de
remédios; eliminar a propaganda de companhias farmacêuticas. É uma batalha de
Davi contra Golias, mas foi bem-sucedida contra a indústria do tabaco.
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