terça-feira, 14 de janeiro de 2025

PRIMEIROS VISLUMBRES DA VASTIDÃO DO ESPAÇO INTERIOR

 


    São Tomás de Aquino (1225-1274) preferia acreditar que os atos humanos sucediam da deliberação sobre o que é bom. Mas não pôde deixar de perceber todas as coisas que fazemos com pouca relação com a consideração racional — como soluçar, bater o pé inconscientemente com um ritmo, rir repentinamente de uma piada e assim por diante. Este era um pequeno entrave para seu sistema teórico, então ele relegou todos esses atos à categoria distinta dos atos humanos peculiares, “uma vez que não procedem de deliberação da razão”. Ao definir esta categoria a mais, ele plantou a primeira semente da ideia de um inconsciente. Ninguém regou esta semente por quatrocentos anos, até que o polímata Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) propôs que a mente é uma mescla de partes acessíveis e inacessíveis. Quando jovem, Leibniz compôs trezentos hexâmetros em latim em uma manhã. Depois inventou o cálculo, o sistema numeral binário, várias novas escolas de filosofia, teorias políticas, hipóteses geológicas, a base da tecnologia da informação, uma equação para a energia cinética e as primeiras sementes da ideia da separação entre suporte lógico e equipamento físico. Vertendo todas essas ideias, ele começou a desconfiar — como Maxwell, Blake e Goethe — de que talvez houvesse cavernas mais profundas e inacessíveis em seu íntimo. Leibniz sugeriu que havia algumas percepções das quais não temos consciência e as chamou de “pequenas percepções”.

    Os animais têm percepções inconscientes, conjeturou ele — então por que não as teriam os seres humanos? Embora a lógica fosse especulativa, ele descobriu que algo de fundamental ficaria de fora se não supuséssemos um inconsciente. “As percepções insensíveis são tão importantes (para a ciência da mente humana) quanto os corpúsculos insensíveis o são para a ciência natural”, concluiu ele. Leibniz sugeriu então que havia aspirações e tendências (“apetições”) dos quais também somos inconscientes, mas que podem impelir nossos atos. Esta foi a primeira exposição significativa do impulso inconsciente e ele conjeturou que sua ideia seria fundamental para explicar por que o homem tem o comportamento que apresenta. Entusiasmado, ele escreveu tudo isso em seus Novos ensaios sobre o entendimento humano, mas o livro só foi publicado em 1765, quase meio século depois de sua morte. Os ensaios entravam em choque com a concepção iluminista de conhecer a si mesmo, e assim só foram apreciados quase meio século depois.    

    A semente ficou em dormência de novo. Nesse meio-tempo, outros eventos ditavam as fundações para a ascensão da psicologia como uma ciência experimental e material. Um anatomista e teólogo escocês chamado Charles Bell (1774- 1842) descobriu que os nervos - as irradiações finas que partem da medula espinhal para todo o corpo - não eram iguais, mas podiam se dividir em dois tipos diferentes: motores e sensoriais. O primeiro transportava informações do centro de comando do cérebro e o último trazia as informações de volta. Esta foi a primeira descoberta importante de um padrão da estrutura misteriosa do cérebro e, nas mãos de pioneiros subsequentes, levou a um retrato do cérebro como um órgão construído com organização detalhada, e não de uma uniformidade opaca. Identificar esse tipo de lógica em um desnorteante bloco de tecido de um quilo e trezentos era muito estimulante, e, em 1824, um filósofo e psicólogo alemão de nome Johann Friedrich Herbart propôs que as próprias ideias podiam ser compreendidas em um sistema matemático estruturado: uma ideia pode ser contraposta por uma ideia contrária, enfraquecendo assim a ideia original e levando-a a afundar abaixo de um limiar de consciência.

    Já as ideias que partilham de uma semelhança podem apoiar a sua ascensão mútua à consciência. À medida que uma nova ideia ascende, puxa com ela outra similar. Herbart cunhou a expressão “massa aperceptiva”, indicando que uma ideia se torna consciente não isoladamente, mas assimilada a um complexo de outras ideias já presentes na consciência. Desta maneira, Herbart introduziu um conceito fundamental: existe um limite entre os pensamentos conscientes e inconscientes; tornamo-nos conscientes de algumas ideias, e não de outras. Neste pano de fundo, um físico alemão chamado Ernst Heinrich Weber (1795-1878) interessou-se cada vez mais em levar o rigor da física ao estudo da mente. Seu novo campo da “psicofísica” objetivava quantificar o que as pessoas podem detectar, com que velocidade reagem e o que precisamente percebem. Pela primeira vez, as percepções eram medidas com rigor científico e as surpresas começaram a aparecer. Por exemplo, parecia evidente que seus sentidos lhe dão uma representação precisa do mundo — mas, em 1833, um fisiologista alemão, Johannes Peter Müller (1801-1858), percebeu algo perturbador.    

    Se acendesse uma luz no olho, pressionasse este órgão ou estimulasse eletricamente seus nervos, tudo levava a sensações semelhantes de visão - isto é, uma sensação de luz, e não de pressão ou eletricidade. Isto lhe sugeriu que não estamos diretamente conscientes do mundo, mas apenas dos sinais no sistema nervoso. Em outras palavras, quando o sistema nervoso lhe diz que algo está “lá fora” — como uma luz —, é nisso que você acreditará, independentemente de como os sinais lhe chegaram. Estava montado o cenário para as pessoas relacionarem o cérebro físico com a percepção. Em 1886, anos depois da morte de Weber e Müller, um americano de nome James McKeen Cattell publicou um artigo intitulado “The time taken up by cerebral operations - O tempo gasto nas operações cerebrais”. O ponto central desse artigo era enganosamente simples: a velocidade com que se pode reagir a uma pergunta depende do tipo de pensamento que se tem. Se simplesmente tivermos de reagir a um clarão ou um estouro, podemos fazer com muita rapidez (190 milissegundos para os clarões e 160 milissegundos para os estouros). Mas, se tivermos de tomar uma decisão (“Diga-me se viu um clarão vermelho ou verde”), levaremos dezenas de milissegundos a mais. E se tivermos de nomear o que acabamos de ver (“Eu vi um clarão azul”), levaremos mais tempo ainda.

    As medições simples de Cattell não chamaram a atenção de quase ninguém no planeta, no entanto foram os rumores de uma mudança de paradigma. Com o alvorecer da era industrial, os intelectuais pensavam em máquinas. Como agora as pessoas aplicam a metáfora do computador, a metáfora da máquina permeou o pensamento popular na época. Àquela altura, a última parte do século XIX, os progressos na biologia atribuíam confortavelmente muitos aspectos do comportamento a operações mecânicas do sistema nervoso. Os biólogos sabiam que era preciso tempo para que os sinais fossem processados nos olhos, viajassem pelos axônios que os conectam ao tálamo, depois subissem as vias nervosas até o córtex, e por fim fizessem parte do padrão de processamento em todo o cérebro. O pensamento, porém, ainda era considerado por muitos algo diferente. Não parecia surgir de processos materiais, mas recaía na categoria especial do mental (ou, frequentemente, o espiritual). A abordagem de Cattell batia de frente com o problema do pensamento. Mantendo os mesmos estímulos, mas alterando a tarefa (agora tome tal e tal decisão), ele pôde medir quanto tempo a mais levavam para tomar uma decisão. Isto é, ele pôde medir o tempo de pensamento e propôs isso como uma maneira clara de estabelecer uma correspondência entre o cérebro e a mente. Escreveu que esse tipo de experimento simples traz “o mais forte testemunho que temos para o paralelismo completo dos fenômenos físicos e mentais; não há dúvida nenhuma de que nossas determinações medem ao mesmo tempo a taxa de mudança no cérebro e de mudança na consciência”. No zeitgeist do século XIX, a descoberta de que o pensamento consome tempo destacou os pilares do paradigma do pensamento imaterial. Indicava que o pensamento, como outros aspectos do comportamento, não era uma magia tremenda - mas tinha uma base mecânica. Poderia o pensamento ser equiparado ao processamento feito pelo sistema nervoso? Poderia a mente ser como uma máquina? Poucas pessoas prestaram atenção a esta ideia nascente; a maioria continuou a intuir que suas operações mentais apareciam imediatamente por ordem sua. Mas, para uma pessoa, esta ideia simples mudou tudo. Fim!


Nenhum comentário:

Postar um comentário

HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR

  HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR by Heitor Jorge Lau             É uma verdade quase inquestionável que, em algum mome...