terça-feira, 21 de janeiro de 2025

A VIDA SEM A FALSA ILUSÃO DE UMA POSSÍVEL ETERNA VIDA MELHOR

 


    É impossível simpatizar intuitivamente com o conselho carpe diem — aproveite o dia, viva como se não houvesse amanhã — apregoado pelos que passaram por alguma experiência de quase-morte e, agora, dizem ver o mundo com novos olhos. A princípio, tal conselho não faz sentido algum, não somente porque, do modo impreciso como nos é apresentado, não diz absolutamente nada, mas também porque é efetivamente idiota. Quem possuir dúvidas sinceras quanto a isso, grite carpe diem! num velório. Pensemos, por exemplo, num cigarro. Ninguém em sã consciência compra um maço deles e diz “hei de fumá-los, prazerosamente, um por um, como se fosse o último, como se não houvesse amanhã”. Por mais que soe agradável, não conseguimos extrair dessa ideia nenhuma satisfação. Trata-se somente de uma forma poética de dizer algo inútil. Ademais, ninguém é capaz de acreditar honestamente que não haverá amanhã — ou agir como se não houvesse — sem um motivo razoável como um acidente iminente, uma bomba armada ou uma arma apontada à cabeça. Tornar-se convicto de que não haverá amanhã é tão impossível quanto apaixonar-se voluntariamente. Ainda assim, se fôssemos visceralmente tomados pela ideia de aproveitar o dia como se não houvesse amanhã, de fazer tudo o que temos vontade, provavelmente nos embrenharíamos em alguma patetice suicida da qual, caso sobrevivêssemos, nos arrependeríamos amargamente numa cadeia ou numa cadeira de rodas. Isso é um surto psicótico, não sabedoria.

    Todavia, como essa ideia tem muitos representantes, é razoável supor que nela possa haver algo de concreto. Como quase tudo em que os humanos acreditam está envolto em palermices poéticas que nem eles próprios compreendem claramente, nem sempre é fácil chegar ao que é propriamente o objeto da crença, o motivo real de abraçarem. A maioria abraça a poesia envolvente e ignora o resto, ou seja, aquilo que, de fato, funciona — como quem se sente bem ao fazer exercícios, sem compreender que o bem-estar vem das endorfinas, não dos movimentos, do esforço ou da saúde vindoura. Sempre nos foi comum confundir causas e efeitos. Pensemos sobre a experiência de quase-morte. O que nos faz passar a gostar da vida depois de escapar da morte por um triz? O que muda quando sofremos um acidente? Objetivamente, nada. Porém, subjetivamente, somos reduzidos, num instante, de deuses a mendigos. Completamente indigentes, o instinto de sobrevivência nos faz implorar e agradecer por qualquer migalha. Assim, quando sobrevivemos, tal experiência faz com que nos sintamos felizes por qualquer coisa que nos reste, mesmo que não reste coisa alguma. O simples fato de estarmos vivos parece nos haver sido dado como um presente, como uma reafirmação do valor da vida. Nessa situação, diante da enorme quantidade de males podem nos acometer, diante de fragilidade da vida, o fato de havermos sobrevivido toma o aspecto de um astronômico golpe de sorte. Ficamos imensamente gratos pela segunda chance que recebemos, e queremos aproveitá-la ao máximo.

    Antes éramos arrogantes; agora nos tornamos humildes, gratos por qualquer lixo que tenhamos em nossas mãos. A explicação para tal fenômeno é simples. Todos conhecem o velho ditado segundo o qual não valorizamos uma coisa até que a tenhamos perdido, e é exatamente esse o caso. Isso acontece porque nunca valorizamos a própria coisa em si mesma, mas a ausência de sofrimento de que desfrutávamos até perdê-la. Não o amor, mas a dor nos faz valorizar o objeto perdido. Trata-se do mesmo princípio que torna os alimentos mais saborosos quando estamos famintos: só conseguimos amar o que nos falta, só protegemos o que podemos perder. Então, se quase perdemos nossas vidas, o que isso significa? Que não a estávamos protegendo suficientemente bem. Qual é a reação mais lógica diante disso? Fazer com que gostemos mais da vida para que passemos a protegê-la melhor. Trata-se de uma reação de autodefesa que nos parece amor à vida, mas que na verdade é medo. Passamos a valorizar a vida não porque esta tenha algum valor intrínseco, mas porque fomos confrontados com a morte que, biologicamente, equivale a uma dor infinita. Trata-se de uma espécie de lição de moral biológica. Esse óbvio erro de cálculo nos leva a crer que, diante da vida, o valor das demais coisas é ínfimo.

    Então, se a prioridade é viver, isso significa que já possuímos o maior dos tesouros batendo em nossos peitos, e a consequência indireta disso é a humildade. Há muita confusão em torno do assunto, e todos os testemunhos emotivos a respeito das mudanças que se seguem ao acidente fazem parecer que se trata de uma espécie de conversão religiosa, mas não é nada disso. O fato é que continuamos a viver, porém com essa ótica de mendigos traumatizados, abraçados aos seus diamantes falsos. O carpe diem pode, portanto, ser entendido como a filosofia acidental da mendicância virtuosa. Equivale, irracionalmente, à compreensão racional de que, quando somos muito ambiciosos, nossa satisfação depende de muitas coisas que podem desandar facilmente. Quando, por sua vez, a felicidade depende somente de coisas simples, é quase certo que seremos sempre felizes. Passamos a nos contentar com pouco porque o acidente deslocou o ponto de satisfação ao ponto de indigência. Nessa situação, tudo o que nos era indiferente passa a parecer bom, quase uma dádiva: sorrimos até no fundo do poço; tudo o que queremos é viver. Não foi, contudo, a vida que se tornou boa, mas nós que nos tornamos menos estúpidos sem merecê-lo — mais sábios na prática, sem entendê-lo.

    O carpe diem é a ótica de quem alcançou uma serenidade parcial por acidente, não pela inteligência. Adotam uma postura sensata sem entender o porquê. Por isso não conseguem explicá-la aos demais com clareza, limitando-se a exclamar seu mantra pelos quatro cantos do mundo. Portanto, como os acidentados não podem fazê-lo, esclareçamos o processo nós próprios. Voltemos à vida que tínhamos antes do acidente que nos tornou humildes e tentemos chegar à mesma posição racionalmente. Isso nos permitirá entender por que uma mera mudança de ótica pode tornar a vida muito mais suportável. O ponto de partida é simples: estamos insatisfeitos com o presente. Olhamos para o futuro e temos a impressão de que não conseguimos ver nada. Isso é realmente triste, mas o problema não é que não enxergamos. Conseguimos ver tudo, e muito bem, porém esperamos dessa visão do futuro algo espetacular. O que não conseguimos ver, na verdade, é o algo espetacular que esperamos, mas continuamos a esperar. Como esse algo, naturalmente, nunca acontece, seria lógico ponderarmos se não estamos equivocados quanto às chances reais daquilo que esperamos concretizar-se, mas preferimos nos fazer de cegos a aceitar o que vemos. Se ainda tivermos dúvida de que se trata de um autoengano, só precisamos nos lembrar do que enxergávamos quando, no passado, igualmente nos indagávamos sobre o futuro e, também igualmente, víamos à nossa frente essa mesma penumbra cinzenta que tediosamente nos trouxe até aqui. A situação é idêntica, mas toda a nossa experiência de vida não nos prova nada. 

    Assim, em vez de usar os olhos, começamos a devanear: talvez estejamos apenas iludidos; talvez a alegria esteja logo ao lado, esperando-nos para desmentir o que sempre foi a nossa vida; talvez o mundo todo esteja certo ao estar errado e acreditar na felicidade. Não importa quão ridículos sejam os pretextos: continuamos acreditando que a chegada do impossível é uma mera questão de tempo. Sabemos que é impossível porque isso nunca ocorreu nem a nós mesmos, nem a ninguém, mas disso também nos empenhamos em esquecer para preservar nossas mais descabeçadas ilusões, repetindo mecanicamente algum chavão sem sentido até alguma ocupação nos tirar essa ideia angustiante da cabeça. Nesse processo, cada vez em que nossas ilusões perdem suas forças, em vez de aceitar sua morte, aplicamos-lhes uma massagem cardíaca otimista, dizemos para nós mesmos: tenha fé, tenha força, tenha vontade, tenha paciência etc. Estamos certos de que basta continuar caminhando, e um dia alcançaremos o horizonte. Não conseguimos, entretanto, nos enganar o tempo todo e sem parar. Como está bem diante de nossos olhos, em algum momento veremos a verdade, e isso desmonta a motivação. Agora estamos de olhos abertos diante do óbvio, e cai sobre nós a esmagadora consciência de que nossa vida realmente é aquilo que estamos vivendo: uma patetice. Uma realidade evidente, porém demasiado amarga: não conseguimos negá-la, porém tampouco suportá-la. Qual é a solução? Fechar os olhos e cruzar os dedos.

    Diante do impasse entre a verdade e a ilusão, ficamos sempre com a última, pois damos mais importância ao que esperamos da realidade que à própria realidade. Assim, como o presente sempre nos parece absolutamente detestável, e como esperamos muito da vida, continuamos a acreditar que o agora não é nada perto do que há de vir. Por mais que os fatos nos mostrem o contrário, a hipótese de que nossas vidas sempre serão apenas isso nos parece absolutamente ridícula. Sabemos que um dia será diferente, porém por motivos que não sabemos explicar. Pois, se assim não for, melhor seria desistir de tudo. Sentimos que nossos esforços, em si mesmos, não valem nada. Então, para justificá-los, usamos o futuro. O presente, então, pode ser insípido, mas o futuro haverá de ser fantástico, e sempre nos brilha com uma diferença cativante. Mesmo que não tenhamos a menor ideia do que o futuro nos reserva, sabemos que será diferente, será magnífico. Simplesmente exigimos que essa diferença exista, pelo menos em nossa imaginação, pois a vida não pode ser só essa sucessão despropositada de eventos mesquinhos que cabem na vulgaridade do dia a dia. O problema, todavia, é que não só pode ser, como é, e nós testemunhamos isso diariamente, apesar de fecharmos os olhos da alma para que nossa esperança não veja a cena e morra de desgosto. Reafirmamos a nós mesmos que essa realidade só pode ser uma ilusão, pois não condiz com nossos sonhos, e continuamos convictos de que fechar os olhos é o melhor meio de levar a vida adiante até que comece a verdadeira felicidade que nos foi prometida nos livros de autoajuda. Nesse processo de autoengano, nutrimos esperanças tolas que nos fazem acreditar que num futuro inespecífico — para o qual estamos caminhando — a realidade do viver haverá de transmutar-se da constante ansiedade da insatisfação com o presente para um agradável estado de serenidade, aquele dos velhinhos de chinelos, sentados nas varandas lendo o jornal, em que preocupar-se é somente uma opção, não um tormento. E para chegarmos a esse futuro a tempo de aproveitá-lo? Precisamos correr, correr muito, run like hell! Assim o fazemos por longos anos.

    Muitas cãibras depois, cansados de correr, paramos para descansar, e a sensatez acaba nos alcançando. Começamos a pensar, e percebemos que já faz muito tempo que corremos, e nunca chegamos a nada com esse desespero encharcado de suor. Eis que dos céus do mais cristalino bom senso se derrama sobre nós a luz da verdade, e tudo se torna claro: somos perfeitos idiotas. Aqui entra a questão do carpe diem, não como a solução mágica que fazem parecer, mas como um raciocínio óbvio, porém capaz de explicar a razão pela qual nunca nos damos por satisfeitos. A satisfação ou insatisfação para com a vida está estreitamente vinculada à nossa expectativa. Se esperamos que o mundo se dobre de joelhos perante nossa presença somente porque corremos a vida inteira como dementes, isso não é senão um fato lamentável, e não espanta que com isso sempre tenhamos sido infelizes. Nossa vida é o que vivemos, não o que esperamos viver. Depositando tudo no futuro, nossas expectativas nos sugam para fora de nós mesmos, tornando-nos ainda mais desgraçados. O presente sempre será miserável, mas se torna ainda mais quando deslocamos o centro de gravidade da vida para um futuro no qual nunca estaremos. Diante disso, a única solução consiste em abandonarmos a inocência de pensar que, um dia, sem nenhum motivo, os cigarros serão saborosos como se fossem os últimos, o kit jornal-varanda-chinelo possuirá uma serenidade inerente da qual desfrutaremos plenamente todas as manhãs, todo sono será profundamente ininterrupto e, assim, inabalavelmente calmos, conseguiremos, a caminho do trabalho, passar pelos jardins e apreciar com plenitude a beleza das flores e o canto dos passarinhos com aquela morbidez platônica caracterizada pela desatenção de um olhar vago e distante que esboça um sorriso também vago e distante, ignorando totalmente o fato de estarmos vendo isso tudo pela janela do carro, presos no engarrafamento.

    Quando somos tão ingênuos, a vida nunca nos deixa de passar a perna. Por mais miserável que seja, estamos trancados no presente, e só nos resta aceitá-lo. Para ilustrá-lo, retomemos o exemplo inicial do cigarro. Seja no agora, seja no futuro, o cigarro sempre será um cigarro, com suas misturas diversas de fumo, que temos de acender e ficar tragando. Se o acendermos pensando que isso nos transportará fantasticamente ao mundo do cowboy Marlboro, onde tudo é uma aventura maravilhosa e sem fim, podemos somente estar certos de que nos sentiremos perfeitos idiotas depois da segunda ou terceira tragadas. Dotado da mais pura realidade, nosso cigarro vai queimar por alguns minutos, enfumaçar o ambiente, desprender algumas cinzas e transferir ao nosso corpo um bocadinho de nicotina; isso é tudo. Entretanto, quando mesmo assim não nos damos por satisfeitos com os resultados e, por algum motivo mirabolante, insistimos que na verdade precisamos fumar vinte vezes mais fazendo certa pose para vivenciar o verdadeiro resultado Marlboro em toda a sua intensidade, podemos apenas supor que nosso futuro não será algo muito diferente de uma infelicidade carcinogênica. Se o exemplo utilizado nos parece ridículo, basta substituirmos resultado Marlboro por felicidade, e veremos como isso é sério. Desaprender a infância é a desilusão essencial da vida. O mundo não é um lugar mágico, é um lugar físico: não vai nos dar presentes gratuitamente para ver nossos sorrisos, e nosso sofrimento não vai compadecê-lo absolutamente, tampouco nos dar o direito de exigir ressarcimento por nosso infortúnio. Não nascemos para ser felizes, e isso é um fato. Nossa felicidade é um objetivo nosso, não do mundo. Se isso fosse o objetivo primordial da existência, nasceríamos felizes e morreríamos contentes na própria maternidade.

    O desencanto da vida adulta consiste em aprender lidar com essa situação sem exigir que um mundo impessoal nos trate com a gentileza que sentimos merecer somente porque somos vaidosos e egocêntricos, acreditando nos elogios dos demais até quando sabemos tratar-se de uma mentira óbvia. Cegueira é a única consequência de priorizarmos a vaidade no processo de levar a vida adiante, pois acreditar que sejamos importantes demais para esta reles realidade terrena só faz com que, por desdém, permaneçamos ignorantes sobre as verdades mais elementares. A necessidade de não nos iludirmos só passa a ser sentida como uma responsabilidade pessoal quando compreendemos que o mundo realmente não se importa conosco, que estamos sozinhos. Apenas então nos arrependemos de haver aceitado, tantas e tantas vezes, conselhos que sabíamos ser falsos, acreditando que a pessoa que os dava sempre estaria lá para nos proteger da realidade. Se algo em nós sempre nos dizia o contrário, esse algo era a sensatez. Assim, se pegarmos todas as experiências e sensações que já tivemos e as considerarmos honestamente — como realmente foram, não como as contamos aos demais tentando impressioná-los sobre como nossa vida é melhor —, perceberemos que, se não predeterminarmos que o mundo deve manifestar uma perfeição proporcional à nossa sensação metafísica de importância, não haverá tanta frustração quando um descuido nos faz acender o filtro do cigarro, não sentiremos que o mundo é um caos porque o pneu furou, porque o café está frio e sem açúcar, porque a energia elétrica acabou, porque alguém morreu etc. Se comprarmos uma obra de arte milionária e, embriagados pela estética magnífica, nos apressarmos em pendurá-la, cravando um prego bem onde passa o encanamento de água, seremos lembrados de que as paredes não ligam para a arte nem para nós. Essas coisas acontecem porque a vida é assim.

    Acreditar que tais coisas não podem ou não deveriam acontecer só prova que estamos nos comportando de um modo completamente estúpido, fazendo um esforço monumental para ignorar a realidade. Ora, isso acontece o tempo todo, todos os dias. Se não devessem acontecer, simplesmente não aconteceriam, pois necessidades físicas não estão preocupadas em nos paparicar. Os anos se passam, mas a vida sempre será isso que, com justificável desprezo, chamamos de presente. É inútil negar esses fatos, acreditando que, se tivermos filhos, ou se realizarmos qualquer outro sonho, a vida virará do avesso e nos servirá de bandeja até nos darmos por satisfeitos e dormir sob uma lápide de granito. Nada vai mudar, e o verdadeiro mistério da vida é como conseguimos ser tão cegos. Em essência, depois de realizar um sonho, tudo o que teremos é um sonho a menos. Se isso nos parece perda de tempo, então ao menos admitamos que nossos sonhos são sem sentido, que não servem para nada além de povoar um mundo poético cuja função é perpetuar o autoengano. Nossos sonhos só são importantes para nós, e não nos dão o direito de reinventar as regras do mundo. Pouco importa se isso nos desaponta. Se compramos realidades falsificadas, não deveríamos nos espantar que não funcionem como a original. Embora insistamos em ignorá-la, a saída lógica desse problema é simples: esperar que aconteça o que de fato acontece, ou seja, admitir que nossos sonhos nunca nos darão a satisfação que queremos. A outra opção é passar a vida inteira resignados como uma vítima deste mundo real, material, cruel e injusto. Um mundo do qual seremos redimidos por um fator externo miraculoso que incorpora todos os nossos desejos nãorealizados. Por exemplo, a segunda volta do pop star do cristianismo, recompensando-nos com bem-aventurança por havermos vivido ansiosamente como imbecis sem rumo. Pode parecer quase surreal que, para proteger uma grande ilusão, inventaram outra ainda maior.

    Contudo, é fato: realmente se acredita nisso. Prefere-se abraçar duas ilusões absurdas a aceitar a realidade mais elementar, que está bem diante de nossos olhos. Quem pensar que tal argumentação se reduz a uma blasfêmia gratuita de um ateu imoral, então abra sua Bíblia e leia o Evangelho com atenção: verá que o reino dos céus não é apresentado como um lugar real para o qual ganhamos um bilhete de entrada depois de batermos as botas como bons cristãos, mas um estado de espírito sereno, um modo modesto de encarar a realidade. Originalmente, o cristianismo não era algo tão venenoso, essa negação monstruosa da realidade que vemos nos dias de hoje, mas a ideia de que devemos levar uma vida simples e sem grandes pretensões, ou seja, não era uma segunda ilusão maior ainda, mas uma tentativa malsucedida de desfazer também a primeira, de desiludir os homens de seus sonhos impossíveis e inúteis. Por isso diz-se que o paraíso é dos humildes, e por isso diz-se também que o evangelho morreu na cruz, pois quase ninguém entendeu a mensagem. Pelo contrário, depois de tantas falsificações, acabaram a interpretando da pior forma possível, como uma missão grandiosa, coisa que faz dela uma má-nova. Claro que isso não implica que os valores cristãos sejam dignos de qualquer consideração séria, pois essa coisa chamada cristianismo já está mais vazia que a caixa de Pandora. Se, de início, foi apenas uma tentativa bastante infantil de alcançar a serenidade, agora se transformou em algo completamente ridículo, que nos distancia ainda mais dessa possibilidade, tanto que, no sistema cristão, só podemos concebê-la numa outra vida, no além. Assim, em vez de remediar a dor causada pela ilusão de um futuro grandioso e impossível, o cristianismo converteu-se numa versão ainda mais aguda dessa mesma ilusão. Chegamos à conclusão de que, neste mundo, devemos apenas sofrer por ser pecadores, sendo que o próprio sofrimento era o pecado original. A salvação era viver em paz. Seja como for, a ideia de que seremos satisfeitos e recompensados depois da morte é tão descabida que ninguém consegue acreditar nela na prática, nem o cristão mais devoto e demente. Alguns podem dizer que acreditam, gritar que acreditam, se flagelar e jejuar para tentarem provar aos demais que acreditam. Contudo, se acreditassem mesmo, do fundo de suas almas, quando sofressem um acidente chamariam um padre, não uma ambulância. Apesar de toda a sua megalomania, o homem é só um pobre mamífero jogado neste mundo absurdo, quase sempre sem entender bulhufas do que está acontecendo. Um mamífero sem sentido que acredita precisar de sentido; que, como qualquer outro, é cheio de necessidades, impulsos, sentimentos e desejos que serão frustrados frequentemente; repleto de ideias, teorias e crenças nas quais muito se mostrará errado; preso a angústias, dores e misérias que serão consistentemente reais.

    Apenas agora conseguimos reconstituir racionalmente o bocado de realidade que a ideia do carpe diem abriga. O lado funcional dessa postura, como vemos, consiste em podar as esperanças para que o peso das expectativas não nos esmague. Poderia, numa sentença, ser resumido desta forma: não use somente o cérebro, mas também os olhos. Desse modo, o significado real, aquilo que funciona, não é a ideia de aproveitar o dia como se não houvesse amanhã, mas pensar o hoje como se já fosse amanhã, como se já estivéssemos no futuro com o qual sonhamos. Essa ótica nos faz perceber que o futuro será também um agora: deixa de haver uma ruptura brusca entre ambos; tornam-se uniformes. O porvir passa a ser encarado como um longo agora. Apenas assim situamos o foco de nossa atenção não num vasto futuro incerto, mas num ínfimo e real momento presente que se prolongará indefinidamente. Portanto, para colher os benefícios dessa postura não é preciso sofrer acidentes nem negar o futuro, mas apenas aceitar o presente. Ao contrário do que parecia à primeira vista, a questão não tem relação com a valorização da vida, mas com a aceitação do presente. Nessa situação, a realidade imediata e nossas expectativas convergem numa só coisa e, quase magicamente, nos sentimos satisfeitos com o presente, seja qual for. Não porque este seja bom, mas porque não temos outra escolha, nunca teremos — e, quando não temos escolha, já não nos inquietamos em buscar algo diverso. Paramos de tentar transcender o presente, paramos de vê-lo como um problema a ser solucionado pelo futuro e passamos a vê-lo como um fato incontornável. Há algo de confortante nessa postura estoica perante a vida, pois com ela limitamos nossos esforços àquilo que pode ser mudado, limitamos nossas preocupações àquilo que temos diante de nós. Abandonamos, no agora, nossos sonhos sobre um mundo melhor, sobre como as coisas poderiam ser, pois não são. Aceitamos que o presente é tudo o que temos, tudo o que sempre teremos. Se isso soa mais convincente, é apenas porque resgata o que há de real nessa postura. Se, por um lado, alivia nosso sentimento de insatisfação com o presente, por outro, não nos livra da dor de nossas necessidades, nem deveria.

    O fato de nos deixar mais atentos à verdadeira fonte de nosso sofrimento já está de bom tamanho. Essa mudança corretiva em nossa ótica torna a vida muito mais suportável, pois deixamos de sofrer além do necessário, soltamos um fardo inútil que havíamos colocado sobre nós mesmos. A vida não se torna boa, apenas menos desgraçada. Contrariamente aos acidentados, sabemos que o que sentimos é alívio, não felicidade. Porém, por havermos procedido racionalmente, não apenas praticamos a arte de viver com leveza, mas também a entendemos: toda esperança é venenosa, pois desmente o que sabemos sobre a realidade — desesperança é o que nos permite viver em paz. O que os acidentados chamam de humildade, nós de desilusão; o que chamam de felicidade, nós de serenidade. Não somos virtuosos, apenas sensatos: recebemos do bom senso a lição que receberam do acaso. Sendo que alcançamos essa postura pela inteligência, não cometemos o equívoco de substituir a ilusão do futuro grandioso por outra ilusão, a do valor da vida. Apenas nos desiludimos, e só. Não valorizamos, como beatos da biologia, a vida porque temos medo, mas a quietude, porque ela não vale nada. Não temos mantras, não pregamos superstições, não vivemos sabedorias de mendigo. Temos filosofia, temos ciência; não queremos nos enganar. Pelo contrário, aceitamos a condição humana, tivemos a coragem de confrontar esse acidente honestamente: destruímos o valor da vida. O resultado foi o mesmo, mas isso não nos aleijou a inteligência. Paramos de correr não por possuir um intelecto paraplégico, mas porque existir é andar em círculos. Deitamos ao chão as pesadas mochilas repletas dos sonhos que usaríamos quando saíssemos deles. Não temos futuro, e não há nada a ser feito quanto a isso. Viver é rodopiar inutilmente até cair numa sepultura.


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