Por que os homens são o
verdadeiro sexo frágil
Vamos
começar pelo simples fato de que a incapacidade de distinguir entre o vermelho
e o verde é muito mais comum em meninos do que em meninas. Nisso o daltonismo
se assemelha a uma série de outros problemas de desenvolvimento - da dislexia a
certas doenças cardíacas. Dizem que tais problemas são heranças ligadas ao sexo
da pessoa. A correlação com o gênero ocorre quando o gene afetado reside nos
cromossomos sexuais, quase sempre no cromossomo X. O X é o maior e mais rico em
genes dos cromossomos humanos, de modo que muitos de nossos traços apresentam
algum grau de ligação com o gênero – ou, mais precisamente, com o cromossomo X.
Já o cromossomo Y não passa de uma coisinha minúscula. As mutações ligadas ao
gênero seguem um padrão característico de transmissão hereditária. Isso vale
principalmente no caso das mutações recessivas, isto é, aquelas que precisam
estar presentes em ambos os cromossomos, o herdado da mãe e o herdado do pai,
para exercer algum efeito.
Esse
padrão se aplica, em graus variáveis, a genes encontrados em todos os outros
cromossomos, que recebem a denominação comum de autossomos, mas não aos
cromossomos do sexo – pelo menos não nos seres humanos. As mulheres são
agraciadas com dois cromossomos X, um de cada um dos pais. Os homens, por outro
lado, herdam apenas um cromossomo X – recebido da mãe –, além do minúsculo
cromossomo Y do pai. Assim, no sexo masculino, qualquer mutação recessiva no
cromossomo X materno funciona na prática como dominante e causa problemas.
Portanto, essas mutações recessivas afetam muito mais homens que mulheres. A
deficiência masculina no que diz respeito ao cromossomo X decerto é uma das
razões pelas quais, em qualquer fase da vida ou estágio do desenvolvimento,
desde antes do nascimento até a senilidade, o índice de mortalidade é maior
para os homens do que para as mulheres.
Entre
os muitos genes do cromossomo X há dois que especificam a síntese de opsinas,
as proteínas sensíveis às cores encontradas nas células chamadas cones, os
detectores cromáticos situados na retina. Há um terceiro gene para opsinas, mas
este reside no cromossomo 7, não no X. Como em cada célula é expressado um
único gene para opsinas, existem três tipos distintos de cones: vermelho, verde
e azul. Os genes das opsinas vermelha e verde se localizam no cromossomo X, o
da azul, no 7. Quando herdada por um homem, a mutação recessiva no gene da
opsina vermelha ou verde resulta em cones vermelhos ou verdes defeituosos e,
portanto, na incapacidade de enxergar essas cores. No entanto, mesmo que
houvesse herdado da mãe a mesma mutação, uma irmã, por exemplo, não seria
daltônica, a menos que o pai também lhe transmitisse um cromossomo X com o gene
mutante, o que só seria possível se ele próprio fosse daltônico.
Pelo
menos é assim que os manuais explicam os traços ligados ao gênero. Mas essa
diferença sexual não pode ser tão simples, quanto mais não seja por um fato
surpreendente: algumas portadoras dessa mutação têm uma visão melhorada das
cores. Essas mutantes enxergam distinções cromáticas que nenhum homem normal
enxergaria. Vamos chamá-las de mulheres super X. O que está por trás do
fenômeno das mulheres super X? Para isso, é preciso explorar um novo mecanismo
epigenético que envolve um alto grau de aleatoriedade. É apropriado que se estude
o cromossomo X, afinal, a exploração de seus mistérios contribuiu muito para
assentar os alicerces da ciência epigenética.
Uma
questão de dose
Por
maior que seja a desvantagem masculina no que se refere ao cromossomo X, a
situação seria ainda pior se não fosse um processo chamado compensação de dose,
que ajuda a amenizar o desequilíbrio fisiológico. Sem esse mecanismo
compensatório, a quantidade de cada proteína derivada do cromossomo X seria
duas vezes maior nas mulheres. Se fosse assim, a divergência entre as
características masculinas e femininas ultrapassaria até a capacidade de
imaginação dos psicólogos evolucionistas mais empedernidos. E os homens,
comparados com as mulheres, seriam fragilíssimos (pense naquelas espécies de
peixes abissais nas quais os machos minúsculos se ligam à primeira fêmea
gigante que aparece para então degenerar, transformando-se em parasitas
fornecedores de esperma, pouco mais do que um testículo ou uma verruga no corpo
da hospedeira). A solução evolutiva para esse problema de dose está na chamada
inativação do X, na qual um dos dois cromossomos X de cada célula feminina é
desativado. Graças a esse fenômeno, tanto homens quanto mulheres têm apenas um
cromossomo X funcional por célula.
Mas
se ambos os sexos contam com um único X funcional, por que os homens têm muito
mais problemas relacionados a esse cromossomo que as mulheres? Acontece que,
embora o segundo cromossomo X das mulheres seja quase um peso morto, elas ainda
extraem muitos de seus benefícios. Isso se explica, em parte, pelo fato de que
nem todos os genes do cromossomo inativado deixam de funcionar. Nos seres
humanos, de 15% a 25% desses genes escapam à inativação. Muitos dos genes não
desativados são genes de manutenção, que participam de processos celulares
básicos necessários a todas as células, estejam estas na pele, no cérebro ou na
retina. Há ainda outra razão pela qual as mulheres colhem muitos dos benefícios
de possuir dois cromossomos X, ainda que um deles esteja em grande medida
desativado. Na maioria dos mamíferos, a inativação afeta aleatoriamente o
cromossomo paterno ou materno, sendo que a inativação aleatória de cada
linhagem de células se dá de maneira independente.
Isso
significa que, de uma dada população celular – digamos, os cones vermelhos –,
metade terá o X paterno desativado e metade o X materno. As mulheres são
essencialmente mosaicos de cromossomos X. Se uma mulher herdar uma mutação
recessiva no gene da opsina vermelha, seja do pai ou da mãe, apenas a metade de
seus cones será afetada. Já no homem, a mesma mutação afetaria todos os cones
vermelhos. Quem conta com metade das células normais não é daltônico pelos
critérios dos testes-padrão, mas, pode haver deficiências sutis na percepção
cromática dessas mulheres. Nos mamíferos marsupiais (cangurus, coalas e gambás,
por exemplo), a inativação não é aleatória. Ao contrário, o X desativado é
sempre o paterno. Portanto, todo canguru depende do funcionamento do cromossomo
materno, e, nesse aspecto, machos e fêmeas são fisicamente equivalentes.
A
epigenética da inativação do cromossomo X
A
inativação do cromossomo X tem início no chamado centro de inativação do X (Xic).
Entre os vários elementos genéticos situados no Xic, existe um cuja importância
para o processo é fundamental: o transcrito específico do X inativo (Xist). Às
vezes, fragmentos de um cromossomo se soltam e vão parar em outro cromossomo,
num processo denominado translocação. Quando a porção do cromossomo onde reside
o Xist é translocada para um dos autossomos, o X não pode mais ser inativado.
Em vez disso, é o autossomo receptor que sofre uma inativação (parcial). Portanto,
o Xist é indispensável para a inativação do X. O Xist não é exatamente um gene
no sentido tradicional do termo. Os genes, como você deve estar lembrado,
funcionam como modelos indiretos para as proteínas. Mas o Xist não tem
correspondência com nenhuma proteína, correspondendo apenas ao RNA. É por isso
que o chamamos de transcrito específico do X inativo, e não de proteína
específica do X inativo (ou Xisp). O RNA correspondente ao Xist é bem longo e
se liga ao cromossomo do qual se origina. À medida que são produzidas mais
cópias do RNA do Xist, o cromossomo X vai sendo coberto por esse material. Esse
é o primeiro estágio da inativação.
Em
seguida, o RNA atrai histonas, que encobrem ainda mais o X inativo, além de
fatores de metilação (Metilação é um processo químico que consiste na
adição de grupos metil (CH3) a moléculas ou ao DNA e RNA). Por fim, chega a
hora do grande aperto, quando o cromossomo inativado é compactado como um carro
no ferro-velho. Ao microscópio, a forma compacta do X se apresenta como uma
pequena estrutura globular, o chamado corpúsculo de Barr, que não parece em nada
com um cromossomo ativo. A inativação do X é aleatória. Isso não é uma verdade
completa por dois motivos. O primeiro tem a ver com a definição do momento em
que se dá o processo. Não sabemos com precisão em que ponto do desenvolvimento
ocorre a inativação, mas esta acontece muito antes do nascimento.
Há
muitas divisões celulares posteriores, e cada linhagem celular conserva o
padrão de inativação da célula com o X inativado que lhe deu origem. Assim,
seria mais correto dizer que o fenômeno é aleatório em relação às linhagens
celulares, a uma determinada população de células capilares ou cones, por
exemplo. Isso é mais fácil de perceber em certos padrões de coloração
encontrados no pelo de alguns mamíferos, como os gatos. As pelagens tricolores
(das raças Cálico e tartaruga) servem muito bem para isso, já que esses padrões
estão relacionados ao cromossomo X e são exclusivos das fêmeas. A distribuição
de áreas claras, escuras e cor de laranja numa gata Cálico revela com riqueza
de detalhes a inativação aleatória do X nas linhagens de células capilares. É
irônico, portanto, que o primeiro gato clonado tenha sido uma fêmea tricolor. O
dono do animal queria recriar sua amada Rainbow (Arco-íris). O procedimento deu
certo, mas a clone, batizada Cc (cópia carbono), não era nem de longe idêntica
à original. Ela desenvolveu uma distribuição de cores completamente diferente,
o que, dada a aleatoriedade da inativação do X, já se deveria esperar.
A
personalidade de Cc também não era nada parecida com a de Rainbow, mas essa é
outra história. A inativação do X também não é aleatória no que diz respeito
aos tecidos maternos que sustentam o feto. Nesse caso, somente o cromossomo
paterno é inativado, tal como ocorre nos cangurus e em outros marsupiais. A
inativação seletiva dos cromossomos X de determinado sexo é uma forma de imprinting
(fenômeno epigenético que ocorre quando a expressão gênica é induzida a partir
de apenas um dos cromossomos parentais). Por ora, basta atentar para o fato de
que, nos cangurus, o imprinting do X é generalizado, estendendo-se à maioria
das células, enquanto nos seres humanos e nos gatos o fenômeno se restringe às
células da placenta e a alguns outros tecidos extraembrionários.
A
forma de inativação observada nos marsupiais é considerada a condição primitiva
dos mamíferos. A aleatoriedade que encontramos no gato, no homem e em outros
integrantes de linhagens mais modernas da classe Mammalia resulta de uma
evolução divergente da dos marsupiais. O advento do Xist foi o marco dessa
divergência. Os marsupiais carecem desse transcrito, portanto, estão privados
dos benefícios da inativação aleatória. De fato, o RNA do Xist pode ser o
elemento mais importante na diferenciação entre os marsupiais e os mamíferos
mais “avançados”, como o ser humano.
Uma
dádiva epigenética
O
daltonismo é apenas uma das formas de sofrimento desproporcional a que os
homens estão sujeitos pela falta de um segundo cromossomo X. A dose de
compensação da inativação do X, quando depende do acaso, como nos seres
humanos, não chega a ser perfeita. A inativação aleatória do X é uma dádiva
para o sexo feminino e um enorme avanço em relação à inativação por imprinting
observada nos cangurus. A aleatoriedade não se tornou possível pela evolução de
um novo gene, mas graças a um novo trecho de DNA não codificante que funciona
como modelo para um novo tipo de RNA, chamado Xist, que possibilitou uma nova
forma de regulação epigenética do cromossomo X. A inativação do X mediada pelo
Xist é apenas uma das formas de regulação epigenética baseada no RNA. A maior
parte dos tipos de regulação gênica dependente do DNA apresenta uma
distribuição mais ampla entre vegetais, animais e fungos. Entre os vertebrados,
o fenômeno se restringe, em larga medida, aos mamíferos. Esse processo
epigenético, denominado imprinting, não se limita ao cromossomo X, ocorrendo
por todo o genoma, ainda que de maneira esporádica. Além disso, o imprinting
acontece numa fase ainda mais inicial do desenvolvimento que a inativação do X
nas mulheres super X. Na verdade, o processo se dá antes mesmo do encontro
entre óvulo e espermatozoide.
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