A ilusão do livre-arbítrio foi um obstáculo no caminho do pensamento humano durante milhares de anos. O livre-arbítrio é um assunto de grande interesse e discussão para a humanidade, porém, o assunto deveria ser considerado com os olhos bem abertos e com a inteligência bem desperta. Não porque seja muito difícil, mas porque tem sido atado e torcido num emaranhado de nós cegos durante séculos cheios de filósofos palavrosos e malsucedidos. O partido do livre-arbítrio clama que o homem é responsável pelos seus atos porque a sua vontade é livre de escolher entre o certo e o errado. Será? A vontade não é livre e se fosse o homem não poderia conhecer o certo e o errado enquanto não fosse ensinado.
O partido do livre-arbítrio
afirmará que a consciência é um guia seguro. Todavia, a consciência não diz e
não pode dizer o que está certo e o que está errado (cientificamente falando).
Ela apenas recorda as lições apreendidas acerca do certo e errado. A “suave voz
baixa” não é a voz de algum deus: é a voz da hereditariedade e do meio. Quando
um homem diz que a sua vontade é livre, ele quer dizer que é livre de todo o
controle ou interferência e que pode dominar a hereditariedade e o meio (até
determinado ponto). Aceitando ou não, a vontade é governada pela
hereditariedade e pelo meio.
A causa de toda a confusão neste
assunto pode ser mostrada em poucas palavras. Quando o partido do
livre-arbítrio diz que o homem tem livre-arbítrio, eles querem dizer que ele é
livre de agir como escolhe agir. Não há necessidade de “o negar”. Mas o
que o faz escolher? Este é o eixo em torno do qual toda a discussão discorre.
O partido do livre-arbítrio parece pensar na vontade como algo independente do
homem, como algo fora dele. Eles parecem pensar que a vontade decide sem o
controle da razão humana.
Se fosse assim, não provaria que
o homem é responsável. “A vontade” seria responsável e não o homem. Seria tão
ridículo censurar um homem pelo ato de uma vontade “livre” como censurar um
cavalo pela ação do seu cavaleiro. O homem sabe que escolhe entre dois
percursos a todo a instante, e frequentemente a todo o minuto, e pensa (e se
ilude) que a sua escolha é livre. Mas isso é uma ilusão porque a sua escolha
não é livre. Ele pode escolher e, de fato, escolhe. Mas ele pode apenas
escolher como a sua hereditariedade e o seu meio o fazem escolher. Ele nunca
escolhe e nunca escolherá a não ser como a sua hereditariedade e o seu meio — o
seu temperamento e a sua formação — o fazem escolher. E a sua hereditariedade e
o seu meio fixaram a sua escolha antes de ele o fazer. Há uma causa para todo o
desejo, uma causa para toda a escolha e toda a causa de todo o desejo e escolha
tem origem na hereditariedade ou no meio. Um homem age sempre devido ao
temperamento, que é hereditariedade, ou devido à formação, que é meio.
E nos casos em que um homem
hesita ao escolher entre dois atos, a hesitação é devida a um conflito entre o
seu temperamento e a sua formação ou, como alguns o exprimem, “entre o seu
desejo e a sua consciência”. Um homem está a praticar tiro ao alvo com uma arma
quando um coelho se atravessa na sua linha de fogo. O homem tem os olhos postos
no coelho e o dedo no gatilho. A vontade humana é livre. Se ele carregar no
gatilho, o coelho é morto. Ora, como é que o homem decide se dispara ou não?
Ele decide por intermédio do sentimento e da razão. Ele gostaria de disparar
apenas para ter a certeza de que é capaz de acertar. Ele gostaria de disparar
porque gostaria de ter coelho para o jantar. Ele gostaria de disparar porque
existe nele o antiquíssimo instinto caçador de matar.
Mas o coelho não lhe pertence.
Ele não tem a certeza de que não se mete em problemas se o matar. Talvez — se
ele for um tipo de homem fora do comum — sinta que seria cruel e covarde matar
um coelho indefeso. Bem, a vontade do homem é livre. Se quiser, ele pode
disparar; se quiser, ele pode deixar ir o coelho. Como decidirá ele? De que
depende a sua decisão? A sua decisão depende da força relativa do seu desejo de
matar o coelho, dos seus escrúpulos acerca da crueldade, e da lei. Além disso,
se conhecêssemos o homem muito bem, poderíamos adivinhar como o seu
livre-arbítrio agiria antes que tivesse agido. O desportista comum mataria o
coelho. Mas sabemos que há homens que nunca matariam uma criatura indefesa.
De um modo geral, podemos dizer
que o desportista desejaria disparar e que o humanitarista não desejaria
disparar. Ora, como as vontades de ambos são livres, deve ser alguma coisa fora
das vontades que faz a diferença. Bem, o desportista matará porque é um
desportista; o humanitarista não matará porque é um humanitarista. E o que faz
de um homem um desportista e de outro um humanitarista? Hereditariedade e meio:
temperamento e formação. Um homem é, por natureza, misericordioso e outro
cruel; ou um é, por natureza, sensível e outro insensível. Esta é uma diferença
de hereditariedade. Um pode ter sido toda a sua vida ensinado que matar animais
selvagens é “desporto”; o outro pode ter sido ensinado que é inumano e errado;
esta é uma diferença de meio.
O homem por natureza cruel ou
insensível, que foi treinado para pensar que matar animais é um desporto,
torna-se aquilo a que chamamos um desportista, porque a hereditariedade e o
meio fizeram dele um desportista. A hereditariedade e o meio do outro homem
fizeram dele um humanitarista. O desportista mata o coelho porque é um
desportista, e é um desportista porque a hereditariedade e o meio fizeram dele
um desportista. Isso é dizer que o “livre-arbítrio” é realmente controlado pela
hereditariedade e pelo meio.
Um homem que nunca pescou, por
exemplo, foi levado à pesca por um pescador. Ele gostou do desporto e durante
alguns meses praticou-o entusiasticamente. Mas um dia um acidente convenceu-o
da crueldade que é apanhar peixes com um anzol e ele pôs de lado imediatamente
a sua vara de pesca e nunca mais voltou a pescar. Antes da mudança, se era
convidado, ele estava sempre ansioso por ir pescar; após a mudança, ninguém
conseguia persuadi-lo a tocar numa linha. A sua vontade foi sempre livre. Como
se transformou então a sua vontade de pescar na sua vontade de não pescar? Foi
consequência do meio. Ele aprendeu que pescar é cruel. O conhecimento controlou
a sua vontade.
Mas, pode perguntar-se, como
explica que um homem faça o que não deseja fazer? Nenhum homem alguma vez faz
uma coisa que não deseja fazer. Quando há dois desejos impera o mais forte. Suponhamos
o seguinte caso. Uma jovem recebe duas cartas no mesmo correio; uma é um
convite para ir com o seu namorado a um concerto, a outra é um pedido para que
visite uma criança doente num bairro pobre. A jovem é uma grande apreciadora de
música e receia bairros pobres. Ela deseja ir ao concerto e estar com o
namorado; ela receia as ruas e as casas sujas, e evita correr o risco de
contrair alguma doença. Mas ela vai ver a criança doente e não vai ao concerto.
Por quê? Porque o seu sentido do dever é mais forte do que seu amor próprio.
O seu sentido do dever é em parte
devido à sua natureza — isto é, à sua hereditariedade — mas é principalmente
devido ao meio. Como todos nós, a rapariga nasceu sem quaisquer conhecimentos e
com apenas uns rudimentos de uma consciência. Mas foi bem ensinada e a
instrução faz parte do seu meio. É possível afirmar que a rapariga é livre de
agir como escolhe, mas ela age de fato como foi ensinada que deve agir.
Este ensino, que faz parte do seu meio, controla a sua vontade. Também é
possível afirmar que um homem é livre de agir como escolhe. Ele é livre de agir
como ele escolhe, mas ele escolherá como a hereditariedade
e o meio o fizerem escolher. Porque a hereditariedade e o meio
fizeram com que ele seja aquilo que é. Diz-se que um homem é livre de decidir
entre dois percursos. Mas na realidade ele é apenas livre de decidir de acordo
com o seu temperamento e a sua formação. Macbeth, personagem de uma tragédia de
William Shakespeare, era ambicioso; mas ele tinha consciência. Ele queria a
coroa de Duncan; mas ele recuava perante a traição e a ingratidão. A ambição
puxava-o num sentido, a honra puxava-o no outro. As forças opostas estavam tão
uniformemente equilibradas que ele parecia incapaz de decidir-se. Era Macbeth
livre de escolher? Até que ponto era ele livre? Ele era tão livre que não
conseguia decidir-se e foi a influência da sua mulher que inclinou a balança
para o lado do crime.
Era Lady Macbeth livre de
escolher? Ela não hesitou porque a sua ambição era mais forte que a sua
consciência, e nunca houve dúvidas sobre qual decisão tomar. Ela escolheu como
a sua ambição a compeliu a escolher. E a maior parte de nós nas nossas decisões
assemelhamo-nos a Macbeth ou à sua mulher. Ou a nossa natureza é de tal modo
mais forte do que a nossa formação, ou a nossa formação é de tal modo mais
forte que a nossa natureza, que decidimos para o bem e para o mal tão
prontamente quanto um rio decide correr colina abaixo; ou a nossa natureza e a
nossa formação estão tão bem equilibradas que dificilmente podemos decidir.
No caso de Macbeth a competição é
clara e fácil de seguir. Ele era ambicioso e o seu meio ensinou-lhe a olhar a
coroa como uma possessão gloriosa e desejável. Mas o meio também lhe ensinou
que o assassinato, a traição é perversa e a ingratidão é deplorável. Se nunca
lhe tivessem ensinado estas lições ou se lhe tivessem ensinado que a gratidão é
uma tolice, que a honra é uma fraqueza, e que o assassinato é desculpável
quando conduz ao poder, ele não teria de todo hesitado. Foi o seu meio que
impediu a sua vontade. A ação da vontade depende sempre da força relativa de
dois ou mais motivos. O motivo mais forte decide à vontade; tal como o peso
mais pesado decide o equilíbrio dos pratos de uma balança.
Como podemos, então, acreditar
que o livre-arbítrio é exterior e superior à hereditariedade e ao meio? Podemos
dizer que a vontade de uma pessoa é livre e que ela poderia, se o desejasse,
saltar de uma ponte e afogar-se. Mas ela não pode desejar. Ela é feliz,
ama a vida e teme o rio. E, no entanto, devido a alguma cruel volta da roda da vida,
ela pode tornar-se pobre e infeliz; tão infeliz que odeia a vida e está ansiosa
pela morte e, por isso, pode saltar para o temeroso rio e morrer. A sua
vontade é tão livre numa altura como na outra. Foi o meio que forjou a mudança.
Antigamente ela não podia desejar morrer; agora não pode desejar viver.
Os apóstolos do livre-arbítrio
acreditam que todos os homens são livres. Mas um homem pode apenas desejar
aquilo que é capaz de desejar. E um homem é capaz de desejar aquilo que outro
homem é incapaz de desejar. Negá-lo é negar os fatos da vida mais comuns e mais
óbvios. Todos sabemos que podemos prever a ação de certos homens em certos
casos, simplesmente porque conhecemos a natureza dos homens. Sabemos que nas
mesmas condições Jack Sheppard (ladrão e fugitivo da prisão de Londres, nascido
em uma família pobre, foi aprendiz de carpinteiro, mas começou a roubar por
volta de 1723) irá roubar e que Cardinal Manning (Henry Edward Manning, um
prelado - título de honra atribuído a certos eclesiásticos que ocupam cargos
altos e muito importantes da Igreja Católica) não irá roubar. Sabemos que nas
mesmas condições o marinheiro irá namoriscar com a empregada de balcão e o
padre não irá; que o bêbado se embebedará, e o abstêmio manter-se-á sóbrio.
Sabemos que Wellington recusaria um suborno, que Nelson não fugiria, que
Bonaparte agarrar-se-ia ao poder, que Abraham Lincoln seria leal ao seu país,
que Torquemada não pouparia um herético. Por quê? Se a vontade é livre, como
podemos estar certos, antes de o teste ocorrer, de como a vontade deve agir?
Simplesmente porque sabemos que a
hereditariedade e o meio formaram e moldaram de tal modo os homens e as
mulheres que em certas circunstâncias a ação das suas vontades é certa. A
hereditariedade e o meio tendo feito de um homem um ladrão, ele irá roubar. A
hereditariedade e o meio tendo feito de um homem honesto, ele não irá roubar. Quer
dizer, a hereditariedade e o meio decidiram a ação da vontade antes de ter
chegado a altura da vontade agir. Sendo as coisas assim — e todos sabemos que
são assim — o que acontece à soberania da vontade? Deixemos qualquer homem que
acredite que pode “agir como lhe agradar” perguntar a si mesmo por que lhe agrada e
ele verá o erro da teoria do livre-arbítrio e irá compreender por que a vontade
é escrava e não mestre do homem: porque o homem é o produto da hereditariedade
e do meio e estes controlam à vontade.
No caso de uma criança ter má
formação, como poderia o livre-arbítrio salvá-la? Ou como poderia ela ser
censurada por ser má? Ela nunca teve oportunidade de ser boa. Cada igreja, cada
escola, cada lição de moral é uma prova de que os pregadores e os professores
confiam no bom meio, e não no livre-arbítrio, para tornar as crianças melhores.
Nesta, como em muitas outras matérias, as ações falam mais alto do que as
palavras. Isto desata os muitos nós com que milhares de pessoas eruditas ataram
o tema simples do livre-arbítrio e destrói a alegação de que o homem é
responsável porque a sua vontade é livre. Mas há uma outra causa de erro,
relacionada com este assunto. Muitos parecem confundir a palavra “conhecer” com
a palavra “ouvir”. Algumas pessoas sustentam que é ruim não acreditar em certas
coisas e que os homens que não acreditam nessas coisas serão punidos. Mas um
homem não pode acreditar numa coisa que lhe dizem para acreditar; ele pode
apenas acreditar numa coisa em que ele pode acreditar; e ele pode
apenas acreditar naquilo que a sua própria razão lhe diz que é verdade.
É inútil pedir a um agnóstico que
acredite na história de Jonas e da baleia. Ele não poderia acreditar
nela. Ele pode fingir que acredita. Ele pode tentar acreditar nela. Mas a sua
razão não lhe permitiria acreditar nela. Portanto, é um erro dizer que um homem
“conhece melhor” quando lhe disseram “melhor” e ele não pode acreditar no que
lhe disseram. Essa é uma questão simples e parece muito banal; mas quanta má vontade,
quanta intolerância, quanta violência, perseguições e assassinatos foram
causados pela estranha ideia de que o homem é mau porque a sua razão não
pode acreditar no que para outra razão humana é absolutamente verdade.
O livre-arbítrio não tem qualquer
poder sobre as crenças de um homem. Um homem não pode acreditar por querer, mas
apenas por convicção. Um homem não pode ser forçado a acreditar. Poderia ser
ameaçado, ferido, espancado; e ele pode ser assustado, irritado ou atormentado;
mas não pode acreditar, nem se pode obrigá-lo a acreditar. Até que seja
convencido. Embora isto possa parecer óbvio, é necessário dizer que um homem
não pode ser convencido nem pela ofensa nem pelo castigo. Ele pode apenas ser
convencido pela razão. Sim! Para que um homem acredite em alguma
coisa, é necessário encontrar várias razões mais poderosas do que um milhão de
pragas ou um milhão de baionetas. Queimar um homem vivo por não acreditar que o
Sol gira em torno da Terra não é convencê-lo. O fogo é penetrante, mas não lhe
parece ser relevante para a questão. Ele nunca duvidou de que o fogo queima;
mas talvez os seus olhos moribundos possam ver o Sol a pôr-se no Oeste, à
medida que o mundo gira no seu eixo. Ele morre com a sua crença. E não conhece
“melhor”.
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