O niilismo pode ser definido como a implosão da subjetividade. Alternativamente, e sendo um pouco mais claros, podemos defini-lo como uma descrença em qualquer fundamentação metafísica para a existência humana. Não se trata, entretanto, de algo difícil de ser definido, mas de ser apreendido. Por ser uma noção bastante ampla e abstrata, existe muita confusão em torno dela. Vejamos alguns dos principais motivos disso. Primeiro, o niilismo é vago em si mesmo, pois vem do latim nihil, que significa nada. A palavra niilismo, que poderia ser traduzida como “nadismo”, de imediato, não nos dá qualquer ideia do que se trata. Teoricamente o niilismo não possui qualquer conteúdo positivo. Por se tratar de uma postura negativa, só é possível entendê-la depois a partir da consciência do que ela nega, e por isso a compreensão do niilismo envolve muitos outros conceitos. Ele só se tornará visível depois esboçado o seu contexto. Por fim, o niilismo também não recebeu, historicamente, um emprego consistente, sendo que cada pensador ou movimento o interpretou de modo bastante particular, quase sempre com um pano de fundo ideológico, na tentativa míope de justificar um niilismo ativo e militante.
O
niilismo, a princípio, é associado a outras ideias, denotando seu vazio
inerente. Por exemplo, niilismo político seria mais ou menos equivalente ao
anarquismo, repudiando a crença de que este ou aquele sistema político conduziria
a sociedade ao progresso, o qual não passaria de um sonho mentiroso. O niilismo
moral equivaleria à negação da existência de referenciais morais objetivos, ou
seja, de valores bons ou maus em si mesmos. O niilismo epistemológico, por sua
vez, seria a afirmação de que nada pode ser conhecido ou comunicado. Portanto, associar
qualquer noção ao niilismo não é exatamente um elogio, mas algo como colocar ao
seu lado uma placa dizendo: aqui não há nada — principalmente nada do que se
acredita haver. O niilismo, todavia, não é só um termo justaposto a qualquer
ideia que desagrade, a fim de desmerecê-la. Seu poder de apontar o vazio das
coisas não pode ser usado como uma arma, pois, quando se dispara o tiro de
nada, automaticamente deixa de existir a arma, e a coisa toda perde o sentido.
O
niilismo, sendo um processo radical de crítica, não pode ser usado
parcialmente. Não se pode, por exemplo, usar o niilismo moral para refutar
valores específicos, com os quais não simpatizamos, imaginando que os nossos
próprios sobreviveriam. Quando afirmamos que a moral não existe, isso implica
que não existem quaisquer valores — sejam os nossos, sejam os de nossos
oponentes. Com o niilismo moral, toda a moral é reduzida a nada, inclusive a
nossa. A redução da moral a nada, como vemos, está respaldada não na gramática,
mas na suposição de que a moral é vazia em si mesma, de que ela não tem fundamentos
reais e objetivos. Não se trata de simpatizarmos ou não com a moral, mas da
constatação segundo a qual ela é um sonho, uma fantasmagoria inventada por nós
próprios, não sendo leis morais, portanto, mais relevantes que leis de
trânsito.
Nós,
entretanto, nos ocuparemos principalmente do niilismo existencial, ou seja, a
postura segundo a qual a existência, em si mesma, não tem qualquer fundamento,
valor, sentido ou finalidade. Segundo o niilismo existencial, tudo o que existe
carece de propósito, inclusive a vida. Todas as ações, todos os sentimentos,
todos os fatos são vazios em si mesmos, desprovidos de qualquer significado.
Nessa ótica, viver é algo tão sem sentido quanto morrer, e estamos aqui pelo
mesmo motivo que as pedras: nenhum. Essa parece ser a categoria mais
fundamental do niilismo, em relação à qual os demais tipos tomam o aspecto de
casos particulares. Os niilismos moral e político, por exemplo, podem
claramente ser deduzidos do niilismo existencial — pois, se a própria
existência não tem valor, isso implica que nada tem valor, inclusive valores
morais, inclusive o progresso. O único modo de compreender o niilismo
existencial é através da reflexão. O vazio da existência nunca poderia ser
demonstrado através da prática, ou apreendido por meio da experiência imediata.
Se, por exemplo, reduzíssemos nosso planeta a nada com uma bomba nuclear, isso
não demonstraria coisa alguma. A visão desse planeta despedaçado também não
provaria nada. Tal postura destrutiva prática faz pouco sentido, pois equivale
a tentar refutar um livro queimando-o.
O
niilismo existencial se demonstra quando reduzimos o homem a nada, e para isso
basta possuir algum talento intelectual aliado à honestidade, pois o
esvaziamento da existência é a mera consequência de a entendermos. Não
precisamos degolar a humanidade inteira para provar que a vida carece de
sentido. Para reduzir o homem a nada, e compreender que isso demonstra o
niilismo existencial, temos de apreender o vazio objetivo da existência — sendo
óbvio que, na condição de sujeitos, só podemos fazê-lo subjetivamente. O
problema é que, no processo de demonstrar que a existência é vazia, somos o
próprio vazio que estamos tentando apontar — tentamos explicar que nós próprios
não temos explicação. Parece paradoxal, mas não é. Bastará que consigamos entender
nós próprios como um fato, e o niilismo se tornará praticamente uma obviedade. Só
então perceberemos que o niilismo não é, como a princípio pode parecer, uma
postura extremada, envolvendo algum tipo de revolta, mas apenas uma visão
honesta e sensata da realidade — uma visão tornada possível em grande parte
devido às descobertas científicas modernas. Com algumas definições e
explicações simples, podemos chegar a uma noção razoável da ótica apresentada
pelo niilismo existencial. Como o argumento é um pouco longo!
Façamos
algumas observações preliminares sobre por que o niilismo nos parece algo tão
incômodo. Muitos, por preconceito, têm medo do “vazio da existência”, mas esse
medo, em si mesmo, é algo completamente sem sentido, pois equivale a temer
aquilo que não existe. O vazio não é uma ameaça positiva. Senão, vejamos: Não
existe vida em Vênus. Alguém se sente aterrorizado diante dessa afirmação?
Dificilmente. Não existem bancos em Marte. Alguém empalidece diante disso?
Também não. Suponhamos, entretanto, que durante todas as nossas vidas
houvéssemos trabalhado arduamente, acreditando que todo o nosso esforço seria
convertido em dinheiro num banco em Marte. Agora sim nós nos sentiríamos
ameaçados pela afirmação de que nesse planeta não há, nunca houve banco algum,
pois vivíamos em função disso, acreditávamos nesse suposto dinheiro marciano
como aquilo que dava sentido às nossas vidas.
Portanto,
o que nos aterroriza não é o vazio da existência, ou o vazio de bancos
interplanetários — o que nos enche de medo é a possibilidade de descobrir que
estávamos completamente equivocados em nossas crenças a respeito da realidade.
Seria esmagadora a consciência de havermos dado grande importância, de havermos
dedicado nossas vidas inteiras a algo que simplesmente não existe. É por isso
que estremecemos diante da afirmação de que a existência não possui sentido,
embora essa afirmação seja tão segura quanto a de que não há dinheiro nos demais
planetas do sistema solar. Resistimos ao niilismo, não porque ele seja falso,
mas porque reorganizar nossa visão da realidade seria muito trabalhoso. Então,
se colocarmos nossos interesses pessoais de lado, veremos que aquilo nos
inquieta no niilismo é o fato de que ele nos confronta duramente com nossa
própria ingenuidade, com o fato de termos nos deixado enganar tão
grandiosamente que nossas vidas passaram a depender de mentiras, de suposições
imaginárias. Portanto, quando o niilismo aponta essas mentiras, ele não está
destruindo a realidade, e sim as ilusões. Nessa ótica, o niilismo nada mais é
que um exercício de honestidade e imparcialidade, e apenas esvazia a realidade
das ficções que nunca existiram de fato. Essa honestidade pode ser dolorosa,
mas é um sinal de maturidade. Se a existência, despida de ilusões, nos parece
vazia, saibamos ao menos admitir que a culpa é nossa por termos nos enchido
delas. Se gostamos de nos enganar, tudo bem. Porém, se nosso interesse for nos
tornarmos capazes de lidar coma realidade como adultos, sempre será preferível
aceitar a existência tal qual é em si mesma, ainda que isso signifique abrir
mão de muitas crenças mais arraigadas.
É
preferível viver num mundo sem sentido a acreditar num sentido falso para o
mundo, que aponta para lugar nenhum. Como vemos, a preocupação essencial do
niilismo não é descobrir a verdade, mas apontar as mentiras e reconhecer as
limitações. Descrever os fatos é o papel da ciência. O niilismo apenas consiste
na disciplina de sermos honestos diante desses fatos que observamos, entender e
aceitar suas implicações. Nesse sentido, uma das áreas mais afetadas pelo
niilismo são as “grandes questões” da existência. Isso porque as respostas para
tais questões são, em geral, muito mais óbvias do que pensamos — e muitas vezes
inclusive sabemos quais são, mas preferimos continuar acusando a ciência de ser
“cega e limitada” para justificar nossos preconceitos. Afirmamos que tais
assuntos são demasiados “profundos” apenas como pretexto para tratá-los
superficialmente. Dizemos que são “mistérios”, “impossíveis de responder”,
apenas porque temos medo das respostas. Outras vezes deixamos essas questões de
lado, não para proteger nossas ilusões, mas porque pensamos que investigá-las
nos conduziria à loucura. Muito pelo contrário, isso nos conduziria apenas à
lucidez, nos permitiria viver com os pés no chão. Mas o que é o chão? Ora,
aquilo que está sob nossos pés. O que é o mundo? Ora, é aquilo que temos diante
de nossos olhos. O que é o ser? Ora, é aquilo que existe.
Em
grande parte, o niilismo consiste na rara capacidade de ver o óbvio.
Perguntemo-nos, por exemplo: o que, afinal, é o homem? Ora, somos aquilo que
parecemos ser: “máquinas”. Basta consultar qualquer livro de anatomia básica.
Não há nada “por detrás”. Esse “por detrás” não passa de uma fantasia. Foi
inventado por nós numa tentativa infantil de humanizar a existência. Não
obstante, apesar de sabermos perfeitamente bem o que é o homem, ainda assim
acreditamos que há na equação um misterioso “algo mais”. Continuamos nos
enganando com a noção de “profundidade” do saber, que nos faz querer buscar o
“por detrás” do mundo. Ainda mais, que nos faz acreditar que a verdadeira
realidade está nesse “por detrás”, que, exatamente por ser uma ilusão, equivale
a nada. Quando estudamos o homem como se ele não fosse uma máquina, é claro que
não poderíamos chegar à conclusão alguma, pois isso é um absurdo. Seria o mesmo
que um rato investigando-se como se não fosse um roedor, julgando que a “razão
de ser” de seu dente não pode ser apenas roer queijo. O suposto “sentido íntimo
da realidade” que o homem busca a partir de sua subjetividade é o mesmo que
esse rato buscaria se tivesse uma inteligência semelhante à nossa, supondo toda
uma ordem metafísica “por detrás” do mundo que atribui ao seu dente um “sentido
roedor transcendental” que remete ao Queijo Absoluto.
Pouco
surpreende que a ciência até hoje nunca tenha encontrado aquilo que não existe.
A ciência só pode investigar o mundo natural pelo simples fato de que o resto
são delírios metafísicos. Abandonar problemas sem sentido não é limitação
intrínseca, é sensatez. Aquilo que se preocupa em buscar o que está “além” da
realidade não é a ciência, mas a metafísica, que significa literalmente depois
da física. Mas o que está além da física? Ora, a resposta é óbvia: nada. Muito
menos razões. Num mundo onde tudo é físico, só aquilo que inventamos pode ser
metafísico, ao menos se entendermos por metafísica a clássica investigação de
“razões últimas”. Para além do âmbito do realismo científico, a metafísica não
tem função. É absurdo que tenha função! Na busca pelo conhecimento objetivo, o
bastão foi passado para a ciência. Está morta a metafísica que investiga o
mundo “profundamente”, por meio da razão pura. Isso nunca levou a nada, pois
tentamos descobrir a realidade, não olhando para o mundo, mas para um espelho.
As respostas metafísicas para a existência parecem-nos interessantes porque,
obviamente, partem do conveniente pressuposto de que a razão humana é capaz de
substituir a experimentação e acessar uma suposta “essência do ser” por meio de
uma intuição mágica, como que descobrindo o mundo por controle remoto.
Parece
tentador explicar a realidade desse modo, mas a metafísica é um tiro no escuro,
algo tão inútil quanto usar a imaginação para prever o futuro. Vejamos a
questão do seguinte modo: a metafísica nasceu numa época de ignorância, em que
os homens sequer sabiam da existência de bactérias. Sequer lhes passava pela
cabeça que nossos cérebros eram feitos de neurônios. Mesmo assim, queriam
explicar racionalmente a decomposição e o pensamento. Como não tinham
microscópios para ver a realidade com precisão, constatando assim a existência
de micro-organismos decompositores, limitavam-se a devanear teorias
metafísicas, especulando sobre “realidades ocultas” que nos apodreciam em
segredo, e é claro que não tinham a menor ideia do que estavam falando. Ao ver
um corpo em decomposição, por exemplo, imaginavam que isso talvez se devesse a
alguma ordem natural das coisas que nos impunha a decomposição como um “sentido
existencial”. Assim, por ignorarem que o apodrecer é decorrente das bactérias,
supuseram que isso seria devido à misteriosa “essência decompositora do ser”.
Esse tipo de raciocínio delirante, constituído por uma rigorosa lógica
tapa-buracos, é o cerne da metafísica. Ela aborda todas as questões da
existência com esse mesmo grau de autismo. Nessa abordagem, em vez de
investigado, o mundo deve ser pensado. Em vez de observar fatos, devemos buscar
explicações de razão pura, devaneando sobre alguma essência sobrenatural que
determina fatos naturais.
Claro
que, se o ser fosse racional em si mesmo, algo como uma equação matemática, a
verdade seria algo abstrato que transcende os próprios fatos, isto é, a
“essência do ser” seria constituída de princípios lógicos. Mas de onde tiramos
a ideia de que o ser é racional? E o que é isso de “essência”? Não se sabe. O
fato é que essa metafísica delirante nunca teria nascido se houvéssemos dado
aos gregos um microscópio e uma tabela periódica. Vistas desse modo, as mais
profundas investigações metafísicas são pura e simples perda de tempo, pois
estão em busca de algo que simplesmente não está lá — e a grande maioria das
questões da existência, das questões que consideramos mais importantes, são
levantadas não pela física, mas pela metafísica, pelo mais vergonhoso blablablá
inquisitivo. Se tais observações parecem fortes, isso ocorre porque, mesmo
hoje, nossa visão moderna da realidade ainda esconde muitos preconceitos
metafísicos. Pensemos, por exemplo, na razão de ser da vida. De onde tiramos
essa ideia maluca? Certamente não da experiência, certamente não do mundo que
temos diante de nossos olhos. Essa é uma questão metafísica despropositada,
pois se trata de algo que em nenhuma circunstância poderia ser solucionado pela
observação do mundo físico, e isso pode ser ilustrado pelo simples fato de que
a observação do mundo físico feita pela biologia moderna, apesar de explicar
perfeitamente bem como a vida funciona, não é aceita como resposta para essa
questão.
Senão,
vejamos: observamos um espermatozoide e um óvulo fundirem-se. Vemos as células
multiplicando-se. Vemos todas as etapas envolvidas na formação de outro
organismo. Vemos a vida acontecer bem diante de nós. Tudo está perfeitamente
claro. Mesmo assim, continuamos insistindo na crença de que há algo “por
detrás” dessa realidade, um algo que é mais importante que a própria realidade.
Esse algo, obviamente, são nossas crendices metafísicas. A ciência não pode responder
a questão da “razão de ser” da vida porque esse modo de conceber a vida não
corresponde à realidade. Seria o mesmo que pedir que a ciência respondesse onde
ficam os dragões alados que vimos após consumir alucinógenos. Para ser no
mínimo razoáveis, temos de admitir que nunca tivemos motivos legítimos para
pensar que a vida tem uma “razão de ser”, pois nada em nossa experiência no
mundo nos sugere essa pergunta. Que tipo de fenômeno físico poderia nos ter
insinuado essa questão? Olhamos para uma flor e pensamos: ó, que curioso, há
nesse vaso uma flor! Por que não há na flor um vaso? Por que a flor não tem
dentes? Que mistério! Isso só pode ser porque ela tem uma “razão de ser” — a
flor desabrochou para cumprir um sentido transcendental! Sementes e pólen nada
têm a ver com isso: trata-se de algo mais profundo, muito superior ao mundo
material! Então propomos a nós mesmos o desafio: vou descobrir que razão é
essa! Passados alguns anos, voltamos da faculdade de teologia e respondemos que
isso só Deus sabe. Nesse tipo de investigação, saímos desesperadamente em busca
da resposta para uma pergunta sem sentido, e ainda nos espantamos por nunca a
encontrar.
Claro
que essa pergunta só poderia ser respondida se o mundo fosse algo como um playground
de humanos, feito à nossa imagem e semelhança por alguma divindade entediada.
Porém, como o mundo não se comporta segundo nossas expectativas infantis, em
vez de admitir o óbvio, de aceitar que real é aquilo que está bem diante de
nossos olhos, achamos mais sensato inventar uma segunda existência misteriosa
que carrega a “essência oculta” da nossa — um mundo que só podemos imaginar
como uma imensa biblioteca cheia de pergaminhos empoeirados nos quais ficam
anotadas as “razões de ser” de tudo o que há no mundo em que estamos. Portanto,
para transformar uma crença absurda qualquer numa gloriosa “investigação
metafísica”, basta colocar no fim dela um ponto de interrogação: teremos diante
de nós mais um “mistério insondável”, mais uma prova da profunda ignorância do
homem em relação ao mundo em que vive. Contudo, sejamos francos: não fomos nós
próprios que, sem nenhum motivo respeitável, inventamos que a flor tem uma
“razão de ser”, que precisa ter uma razão?
Transformamos
esse raciocínio circular em algo tão grandioso que, ao investigá-lo, temos a
ilusão de estar andando em linha reta. Perdemo-nos em devaneios, e chamamos
isso de “meditações transcendentais”, de “busca pelo sentido íntimo do ser”,
coisa que não passa do homem correndo em torno do próprio rabo em busca de
razões que insuflem sua vaidade. Diante desse algo oculto que nos torna tão
monstruosamente ingênuos, a questão do mistério do mundo parece um assunto de
piolhos. Recobremos a sensatez! Se prestarmos alguma atenção, veremos que a
verdadeira razão de ser da flor não é realmente uma razão, mas um fato: o fato
de ela ter germinado e desabrochado. E isso é tudo! O resto são questões
metafísicas sem sentido, meros disparates interrogativos que levam nossas
investigações para um mundo imaginário que nada tem a ver com aquilo que
estamos tentando entender. Já deve estar bastante claro por que a postura
niilista é incômoda, então prossigamos... Como o niilismo está ligado a uma
mudança em nossa concepção metafísica da existência, convém esboçarmos o que é
a metafísica atualmente — e principalmente o que ela era.
A
metafísica que criticamos aqui é a chamada metafísica tradicional, a qual parte
de pressupostos antropocêntricos e investigações sem pé nem cabeça, buscando
algo que não existe para explicar o que existe. A metafísica moderna, por outro
lado, busca apenas delinear uma visão coerente do que é a realidade, deixando à
ciência o papel de descobrir o que existe. Em vez de sonhar, ela pensa a partir
dos fatos que conhecemos, mas sem fazer extrapolações aberrantes. O contraste
entre ambas nos ajudará a entender melhor o contexto do niilismo. A metafísica
é uma área da filosofia que busca investigar os aspectos mais fundamentais da
existência por meio da razão. Ela trata daquilo que não nos é imediatamente
acessível através dos sentidos, que não pode ser investigado direta e
experimentalmente, isto é, através da ciência. Faz perguntas como “o que é
existir?”, “o que é a razão?”, “o que é a realidade?”. A metafísica faz
perguntas tão básicas que a ciência não pode respondê-las diretamente, e a
própria prática da ciência pressupõe muitos assuntos que apenas a metafísica
investiga. A ciência somente observa fatos e os registra metodicamente — ela
investiga com os olhos; a metafísica, com a razão. Quando afirmamos que “todos
os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem e morrem”, fazemos uma afirmação
científica, que pode ser observada. Quando afirmamos que “a vida não tem
sentido”, fazemos uma afirmação metafísica, pois se trata de algo que
concluímos a partir de um processo de abstração intelectual, e abstrações, em
tese, não podem ser observadas. Portanto, quando conceituamos a realidade a
partir de fatos, estamos fazendo filosofia, não ciência.
A
ciência não pensa, mas precisamos pensar para fazer ciência coerentemente, e
esse é o papel da reflexão metafísica no contexto moderno: orientar nossas
investigações. Em grande parte, a metafísica moderna tornou-se um meio de
evitar os erros ingênuos da metafísica tradicional. Como vimos acima, a
metafísica tradicional é essencialista, ou seja, supõe que tudo o que existe
possui uma “essência” que faz com que seja aquilo que é. O papel da reflexão
metafísica seria, nessa ótica, investigar racionalmente tal “essência”, já que
os fatos observados não seriam mais que sua manifestação. Já foi dito que essa
essência é fogo, água, números, razões, deuses ... agora se afirma que essa
essência é tolice. Tal metafísica não se preocupa em entender o mundo em que
estamos: busca entender um mundo transcendental de essências imaginárias do
qual o nosso seria o resultado. Suas investigações pressupõem uma ordem das
coisas que é extrínseca ao ser, ou seja, sobrenatural. Ela busca descobrir uma
essência que também é uma explicação: a razão pela qual o mundo existe. Esse
tipo de questionamento, obviamente, só seria compatível com um mundo que
tivesse uma “essência transcendente”, coisa que remete à ideia de uma
“subjetividade por detrás do mundo”. Por isso dizemos que a metafísica
tradicional possui uma orientação teológica, pois confere atributos divinos à
existência. Assim, esse tipo de investigação metafísica parece filosofia, mas
na verdade é teologia.
A
metafísica moderna, por outro lado, investiga a realidade, não numa ótica
transcendente, mas imanente. Em vez de especular sobre o que há “por detrás” do
horizonte da existência, ela busca entender o que é a existência que está sob
nossos pés, não sobre nossos travesseiros. Ou seja, trata a questão da
“essência do ser” não como algo que fica fora do próprio ser, remetendo a
“razões últimas”, mas como uma ordem das coisas que é intrínseca ao ser, ou
seja, natural. A partir dos fatos que conhecemos, buscamos entender o aqui em
função do aqui, não de um suposto “além”. A própria noção científica que temos
da realidade está baseada em suposições metafísicas — basta pensarmos no
objetivismo e no naturalismo. O objetivismo afirma que, fora de nossas cabeças,
existe uma realidade comum a todos. O naturalismo afirma que o mundo funciona
em seus próprios termos, que não possui qualquer essência sobrenatural que o
determina de fora para dentro. Pode parecer estranho que a ciência moderna
parta de suposições metafísicas, mas elas são necessárias para que não caiamos
no relativismo, para que tenhamos um ponto de referência sensato sobre o que é
o mundo.
Para
investigar o mundo cientificamente, temos de supor o que o mundo é, e isso é
uma suposição metafísica. Ainda mais, temos de conceituar o que é conhecimento,
diferenciar o conhecimento subjetivo do objetivo, definir o que é uma prova, e
por que provas são válidas, assim como por quais critérios essa validade é
estabelecida — o que é tarefa de outra área exterior à ciência, a
epistemologia. Sem investigar tais questões com seriedade, não saberíamos como
interpretar os resultados de nossas observações ou como estruturar experimentos
científicos a fim de conhecer a realidade. A função da metafísica moderna,
nessa ótica, seria justamente estabelecer um fundamento teórico para nortear a
investigação da realidade sensível feita pelas ciências. Um ponto de vista que
rejeitasse indistintamente a metafísica não nos permitiria fazer quaisquer suposições
a respeito da realidade que estivessem além da experiência imediata. Não
poderíamos, por exemplo, justificar a suposição de que existe de uma realidade
objetiva, e com isso cairíamos no relativismo, talvez até no solipsismo. Não
havendo nada objetivo, toda a realidade se resumiria a uma construção social —
inclusive a matéria, a gravidade, a eletricidade. A criação de um mapa-múndi
seria algo tão arbitrário quanto um romance, pois tudo não passaria de uma
ficção subjetiva.
O
relativismo faz bem ao enfatizar nossas limitações, mas levá-lo a sério seria
tão despropositado quanto afirmar que uma publicação científica é tão
arbitrária como uma revista de quadrinhos. Não há, portanto, qualquer sentido
pejorativo em dizer que fazemos uma afirmação metafísica ao supor que o mundo é
natural e objetivo. Trata-se de algo metafísico apenas porque falamos a
respeito da constituição básica do mundo, de algo teórico de que precisamos
para alicerçar as ciências. Claro que as descobertas da ciência respaldam
perfeitamente tais suposições, mas nem por isso elas deixam de ser metafísicas,
pois são algo que nunca poderá ser demonstrado diretamente através da realidade
sensível, mas apenas conceituado, pensado. As suposições metafísicas a respeito
da realidade são importantes para nos nortear, para nos dar uma visão global da
realidade, mas, como se trata de um terreno especulativo, devemos ser muito
cuidadosos quanto ao que supomos sobre o mundo em si mesmo. A metafísica pensa
no escuro, e pode facilmente perder-se em devaneios. Se supusermos, por
exemplo, que o mundo é “racional em si”, passaremos a pensar que nele tudo tem
uma “razão de ser”, que há um motivo inteligível que explica, digamos, por que
a gravidade atrai os corpos em vez de os repelir. Que tipo de razão seria essa?
Não
se sabe, mas corpos caindo a 9,8 m/s ao quadrado seriam o resultado dessa
“razão”. Mas por que essa essência não faz com que os corpos caiam a 15 m/s ao
cubo? Qual é o motivo disso? Não sabemos onde procurar tais razões, mas
conforta-nos pensar que o mundo é racional, e isso é tudo de que precisamos
para nos convencermos. O fato é que não há metafísica alguma na gravidade.
Sabemos que a gravidade atrai os corpos porque vimos isso acontecer. Trata-se
de uma afirmação científica, empírica, não de uma racionalização abstrata.
Argumentos puramente racionais, no fim das contas, só refletem o modo como
usamos as palavras. Se não pudermos verificá-los, eles não dizem nada — assim
como não diz nada o argumento da “causa primeira”. Quando perguntamos por que
“motivo” a gravidade é assim, estamos pressupondo que ela poderia ser de outra
forma, e que é como é por um motivo que pode ser entendido. Isso pressupõe que
as leis naturais são racionais, implicando que a razão, de algum modo, está na
essência da realidade. Mas a gravidade não foi pensada, foi observada. Não é
uma teoria, mas um fato — e não precisamos pensar quando podemos ver. Portanto,
aqui a metafísica não tem função.
Levantar
questionamentos metafísicos sobre fatos naturais equivale a humanizar a
existência, supondo que haja uma “intenção racional” por detrás do que existe,
como se o mundo houvesse sido projetado por seres humanos ou supra-humanos. Mas
de onde tiramos a ideia de que o ser é racional em si mesmo? A explicação mais
plausível é esta: de nós mesmos, pois isso nunca foi demonstrado por qualquer
observação da realidade. Novamente vemos que essa busca pelo “sentido oculto da
realidade” é apenas teologia disfarçada. Para ilustrar, percebamos que
perguntar o “porquê” do mundo natural seria o mesmo que perguntar o porquê de o
Sol brilhar. Claro que, ao fazer esse tipo de pergunta, colocamo-nos no lugar
do Sol, pensando nas razões pelas quais brilharíamos se fôssemos essa estrela.
Partindo disso, respondemos, por exemplo, que o Sol brilha “para aquecer a
Terra”, e é claro que essa suposição não pode ser demonstrada, tampouco condiz
minimamente com as descobertas da Astronomia. Essa espécie de resposta é
claramente antropocêntrica, pois busca fora do homem, na realidade em si mesma,
algo que só existe em nosso universo subjetivo: intencionalidade.
As
ciências, ao chegarem aos mesmos resultados a partir de observadores
independentes, podem justificar a suposição de que existe uma realidade
objetiva, independente de nós. Como nunca constatamos mudanças nas leis que
regem os fenômenos, também podemos justificar a suposição de que o mundo é
natural. Mas como podemos sustentar que a razão existe fora do homem? Só
estaríamos autorizados a pensar na existência como possuidora de uma “razão de
ser” se esta houvesse sido criada por uma força sobrenatural inteligente, se
houvesse muitos indícios disso nos fatos que observamos, mas não há nenhum. Esse
tipo de raciocínio reverso, que procura intencionalidade nas coisas, só é
admissível em questões subjetivas. Por exemplo, assim como prédios possuem
alicerces, colunas de concreto, reforços de aço, elevadores, janelas, andares,
portas, e assim como cada um desses elementos possui uma estrutura e uma
finalidade, se o universo houvesse sido projetado, também nele haveria uma
“razão de ser” inteligível que constitui sua essência e que explica por que
cada coisa é como é, e não de outro modo.
A
essência do mundo em si mesmo, no caso, seria equivalente à intenção do
engenheiro que o projetou — e só nessa ótica esse tipo de investigação
metafísica faria sentido, mas precisaríamos pressupor que ele teve um criador.
Isso nos permite entender melhor por que a metafísica tradicional possui uma
orientação teológica: ela faz questionamentos que só são admissíveis
partindo-se do pressuposto de que o mundo foi criado inteligentemente para
cumprir uma finalidade. Por isso, no fim das contas, a metafísica tradicional
resume-se à tentativa de fazer engenharia reversa no projeto divino. Quando
colocamos a razão antes da observação, em vez de investigar o mundo,
investigamos nossa própria razão, nosso próprio universo subjetivo. Fechamo-nos
para o mundo sensível e passamos a buscar não fatos observáveis, mas “razões
últimas”, “intenções por detrás do mundo”, e essa postura investigativa nunca
chegou a lugar algum. Investigar o mundo natural com uma postura metafísica
equivaleria, digamos, a tentar descobrir a geografia dos continentes, não
navegando ao seu redor e anotando aquilo que se observa, mas trancando-nos num
quarto e meditando sobre a razão de ser, sobre a essência e a finalidade das
voltinhas caprichosas de cada continente. Com essa abordagem, não apenas
ficamos sem saber como o mundo é, mas ainda gastamos todas as nossas energias
em investigações inúteis sobre coisa nenhuma.
Percebemos
o erro de inquirir o mundo racionalmente, através da razão pura, e passamos a investigá-lo
com os olhos, por meio de procedimentos empíricos. Investigamos a realidade
através da experimentação científica, e chamamos de leis naturais os padrões
que conseguimos descobrir a respeito de como o mundo funciona. Como tais
padrões independem da ótica de um sujeito, dizemos que são objetivos. Assim,
quando colocamos a observação antes da razão, passamos a investigar aquilo que
queremos descobrir. Em vez de devanear, saímos pelo mundo afora, contornamos os
continentes e anotamos aquilo que observamos, e só usamos a razão para saber
como estruturar nossas investigações, não para dispensar a necessidade de
barcos. Essa postura nos proporcionou mapas úteis, que servem para orientar
quaisquer navegadores, em vez de apenas grossos livros com especulações
metafísicas sobre a essência transcendente da areia fina. Terminada a
observação empírica, tudo o que a metafísica pode fazer é afirmar que há um
mundo ao qual o mapa corresponde.
Como
o objetivo das ciências é conhecer o mundo, e não entender os porquês de seu
suposto criador, tivemos de reajustar nossa concepção metafísica do mundo,
reduzindo-a àquilo que tínhamos diante de nós e que era passível de
investigação. Nosso conhecimento tornou-se então a descrição objetiva dos fatos
— em vez de uma tentativa de explicá-los como resultado da subjetividade de um
ser superior. A partir de então demos à ciência o papel de investigar os fatos,
de explorar o mundo, e à metafísica restou apenas o papel de conceituar o mundo
a partir desses fatos que observamos, ajustando um ao outro para permitir um
conhecimento cada vez mais preciso e coerente. Passamos a usar a razão não para
entender ou explicar o mundo, mas para tornar o conhecimento possível, para
justificar a validade das ciências como um saber objetivo. Como se percebe,
hoje o campo da metafísica é muito mais modesto, e busca apenas entender o que
é a realidade e como se dá a nossa relação com ela. Busca explicar como é
possível entender o mundo objetivamente, não a partir da ótica subjetiva do
“ser absoluto”, mas da ótica subjetiva do homem, que está contida na própria
realidade natural, e não acima dela. Assim sendo, o que hoje denominamos
metafísica não é a tentativa de investigar o que existe “além” da física, mas
além da experiência imediata. Ela busca distinguir aquilo que existe em si
mesmo — e que existiria mesmo se não existíssemos — daquilo que existe apenas
em nossas mentes. Com essa abordagem, já não tentamos justificar o mundo, mas o
conhecimento. Em vez de distinguir entre ser e essência, entre dentro e fora da
física, passamos a distinguir entre subjetivo e objetivo, entre dentro e fora
do homem.
Abandonamos
a ideia de que haveria uma “essência transcendental” inefável, pois percebemos
que essa essência era apenas nossa subjetividade projetada no mundo exterior.
Esse movimento de naturalização tem profundas implicações a respeito de como
pensamos o mundo e o lugar do homem na existência — e, como essa mudança de
ótica é relativamente recente, ainda carregamos muitos preconceitos metafísicos
herdados da metafísica tradicional essencialista. A relação do niilismo com a
metafísica, no caso, seria justamente a tentativa de entender as implicações de
reduzir o homem ao natural. O niilismo existencial nega que haja sentido em
buscar um sentido subjetivo no mundo objetivo, exterior ao homem. Ou seja, a
investigação da realidade natural nunca poderá envolver questões subjetivas,
pois não podemos investigá-las por meio da observação de fatos naturais. Para
levar tais questões subjetivas adiante, investigando, por exemplo, a “razão de
ser do homem”, precisaremos naturalizar essa questão, isto é, abordá-la dentro
do contexto de um mundo natural regido por leis físicas impessoais. O problema
é que, ao naturalizar a subjetividade, a questão mostra-se algo tão
despropositado quanto procurar uma fundamentação física para o Natal ser em
dezembro. Entender nossa subjetividade como resultado de um processo natural
torna ilegítima a maioria das questões que levantamos sobre o mundo em si
mesmo. Assim, quando o âmbito da reflexão metafísica fica amarrado à ciência, à
experimentação, aos fatos naturais, o resultado é que deixam de ser admissíveis
as investigações metafísicas que não digam respeito àquilo que foi observado no
mundo natural. Afirmar que o homem não pode procurar para si mesmo um sentido
que não seja baseado em fatos naturais equivale, é claro, a destruir a ideia de
sentido pela raiz — ficando as investigações sobre o sentido da vida restritas
a fatos naturais, como sobrevivência da espécie e perpetuação genética, por
exemplo.
Como
se nota, o niilismo faz o incômodo papel de “carrasco das investigações sem
sentido”. Não se trata realmente de uma ideologia, de uma ótica com qualquer
objetivo “positivo”, mas de uma postura de reflexão analítica e retificadora. O
niilismo não busca explicar ou guiar o homem, mas situá-lo imparcialmente
dentro daquilo que se conhece por meio da ciência. Nessa ótica, como o fim da
metafísica tradicional equivale a uma ruptura radical com a teologia, podemos
dizer que o niilismo faz o papel de coveiro do sentido: busca sepultar todas as
questões levantadas com base na suposição de que haveria uma “razão” para tudo
o que existe. O além desaparece, restando apenas o aqui. Nessa abordagem,
aquilo que denominamos vazio da existência seria precisamente o vácuo criado
por essa drástica redução de nossa concepção metafísica do mundo. Pensávamos
que aquilo que existia dentro de nós, nossa subjetividade, também existia fora
de nós, refletindo os “princípios últimos” da realidade, algo como um “espírito
do mundo”. Agora, reduzindo o mundo à física, aos fenômenos naturais, essa
essência passou a equivaler às leis físicas — algo que julgávamos ser apenas
uma pequena parcela da realidade.
Quando
passamos a ver o mundo como algo natural e objetivo, tornamo-nos também algo
natural e objetivo, e isso nos decepcionou grandemente — sendo o papel do
niilismo manter o homem decepcionado até que decida abandonar suas criancices
existenciais. Entendendo que as leis físicas são, por assim dizer, a “essência”
da realidade, a observação mais interessante a ser feita é a seguinte. A
existência do homem é uma lei física? Não! Há algo no mundo natural que torne a
existência do homem necessária como a gravidade? Não! Segue-se que não fazemos
parte do mundo natural enquanto homens, mas enquanto matéria. Como não há leis
naturais subjetivas, nossa subjetividade não tem essência. Em vez de
necessária, a existência do homem é contingente: somos um acidente. A
naturalização da realidade implodiu a subjetividade, e o homem foi reduzido a
nada. Feitas essas observações, vemos que o niilismo nos coloca numa situação
bastante estranha, como se fôssemos visitantes no mundo, hóspedes temporários
da matéria — e é exatamente esse o caso.
Somos
um fenômeno natural, e nossa ideia aqui é nos revisarmos por completo enquanto
tais, passando a limpo nossa compreensão da realidade. Até este ponto,
ocupamo-nos em explicar que o vazio da existência decorre de reconhecermos o
caráter não-humano do mundo em si. Daqui em diante, é preciso delinear com
maior clareza o que seria esse mundo não-humano, distinguindo-o do universo
subjetivo. A primeira observação será a respeito da busca pelo conhecimento.
Isso foge um ponto do assunto, mas é importante. Depois, é preciso delinear a
distinção entre objetivo e subjetivo em detalhes, com exemplos de “aplicação”
do niilismo enquanto procedimento analítico. Não há dúvida de que compreender o
mundo sempre foi a maior ambição filosófica. Porém, exceto pela curiosidade, no
processo de entendê-lo não há qualquer ponto de partida seguro, e isso sempre incomodou.
Foram propostas muitas soluções para o problema da incerteza no conhecimento,
mas todas elas se mostraram inconclusivas — ainda hoje não se tem qualquer
certeza.
O
que dificilmente ocorre, entretanto, é questionar o ponto de chegada: as
certezas. Se não há qualquer ponto de partida seguro, por que achamos seguro
dizer que a certeza é o ponto de chegada? Ora, certezas são o objetivo de quem
busca segurança, não conhecimento. O problema da incerteza nasce simplesmente
de nossa angústia — não se trata de algo a ser solucionado por meio da
investigação, mas por meio de calmantes. Perceba-se, então, que não faz sentido
procurar certezas no mundo, pois o próprio conceito de certeza foi inventado
por nós mesmos — e não com o fim de melhor conhecer o mundo, mas de nos
sentirmos mais seguros. Repudiamos certezas porque queremos entender o mundo,
não justificar nossos rodeios ansiolíticos. A crença na necessidade de certezas
desvirtua nossa compreensão porque, ao aceitarmos a noção de certeza, passamos
a investigar a realidade física em busca dessas mesmas certezas, num processo
obviamente circular.
Esse
objetivo de alcançar “verdades absolutas” nunca foi demonstrado como válido,
apenas suposto como desejável por filósofos medievais inspirados pela
matemática. Nessas circunstâncias, se não podemos partir do pressuposto de que
devemos buscar certezas, já não temos ponto de partida nem de chegada, o que é
ótimo. Livres desses preconceitos, podemos começar a construir uma visão
imparcial, que não está comprometida com a “paz na alma” como critério da
verdade. Apenas agora, saindo desse círculo, abandonando todas as expectativas,
nosso ponto de partida passa a ser observar o que temos diante de nós. Abrimos
os olhos, vemos que há um mundo, e que estamos nele — mais nada. Essa é a
postura mais básica e neutra que podemos adotar. Partir de posturas complicadas
e confusas torna tudo complexo e confuso, então partimos de nossa existência no
mundo, que é a coisa mais elementar e imediata à qual temos acesso. Claro, não
temos “fé” nisso, não pensamos que se trate de uma verdade incontestável.
Talvez estejamos errados ao pensar que existimos. Talvez existir seja uma
ilusão. Há infinitos “talvezes” teóricos, mas queremos que também nossos
motivos para a dúvida sejam baseados em fatos, não em suposições metafísicas
inócuas. Sendo que não possuímos motivos razoáveis para duvidar de nossa
existência, não duvidamos. Pensamos que existimos porque estamos aqui, e só.
Essa
não é uma questão que possamos resolver por meio de meditações metafísicas —
não temos como investigá-la. O que nos leva a aceitar a existência do mundo
como um fato é o fato de o termos diante de nós. Isso é tudo o que podemos
dizer. Sabemos que existir é um absurdo, mas é um fato absurdo, não apenas uma
especulação. Desse modo, existir não se trata de uma crença metafísica:
trata-se simplesmente de abrirmos os olhos e nos vermos acontecer neste algo
que chamamos mundo. Nossa postura seria metafísica apenas se abríssemos os
olhos acreditando que devemos buscar certezas ou razões últimas. Em vez disso, abrimo-los
tão somente, e é isso o que vemos. Se existir é uma ilusão, é diante da ilusão
que estamos, e queremos conhecê-la, seja ela o que for. Essa incerteza básica
sobre o existir é algo que simplesmente temos de aceitar, do contrário
viciaremos nossa investigação logo de início, passando a andar em círculos à
moda dos teólogos.
Esclarecido
esse ponto, voltemos agora à distinção entre objetivo e subjetivo. Para nossos
fins, definiremos a realidade objetiva como aquilo que existe por si mesmo
incondicionalmente. A atividade dessa realidade, no caso, seria aquilo que
denominamos fenômenos, ou seja, aquilo que acontece. Se a existência, por
exemplo, fosse um relógio, a realidade objetiva seriam suas engrenagens, seus
ponteiros, sua estrutura como um todo. O movimento dessas engrenagens seriam os
fenômenos. Mas, na ótica niilista, isso tudo careceria de significado, ou seja,
as horas não existiriam — esses ponteiros girariam sem razão e apontariam para
coisa nenhuma. Para entendermos com mais clareza, utilizemos outro exemplo mais
próximo de nosso dia a dia: uma festa. Passamos por um local e percebemos que
nele está sendo realizado um evento festivo qualquer. No dia seguinte, passamos
pelo mesmo local, mas não encontramos sequer vestígios do evento. O lugar
existe. As pessoas existem. A festa não: ela estava apenas acontecendo. A ideia
é essa. Agora basta ampliar o tempo envolvido para percebermos que as pessoas
também não existem: todas elas têm uma duração, ou seja, também estão
acontecendo. Quanto mais avançamos nesse raciocínio, mais as implicações se
tornam extremas, até percebermos que eventualmente tudo se perderá nessa eterna
reciclagem — e a única coisa que permanece é a forma como isso tudo acontece,
ou seja, a física, a matéria da qual isso tudo é feito. Até aqui, tudo está
bastante claro: o mundo existe, e nós acontecemos por meio dele.
Porém,
agora, para demonstrar por que a humanização da realidade é um erro, e também
para explicar como esse erro ocorre, precisamos distinguir entre a realidade
objetiva e a subjetiva, entre o mundo em si mesmo e a nossa consciência desse
mundo. Temos alguma dificuldade em perceber essa distinção através da intuição,
mas podemos explicá-la, ao menos preliminarmente, da seguinte forma: aquilo que
existe independentemente de nós, e que continuará existindo mesmo depois que
estivermos mortos, é a realidade objetiva, o ser propriamente dito. Por outro
lado, aquilo que existe apenas dentro de nossas mentes é a realidade subjetiva.
Esse mundo subjetivo é criado por nós próprios, algo que, depois de nossa
morte, cessará de existir sem deixar quaisquer vestígios. Prossigamos questão
adentro. Somos máquinas, e nossa consciência faz parte de um sistema de
reconhecimento da realidade que tem a função de guiar nossos corpos. A
realidade que temos diante de nossos olhos é uma construção mental subjetiva,
uma representação parcial da realidade objetiva. Sons, cheiros, cores: isso
tudo é construído por nossos cérebros a partir do que captam por meio de um
aparato sensorial. Não há um eu por detrás disso tudo. Somos o nosso cérebro! E
em volta desse cérebro há um corpo que o permite andar pelo mundo, e ligados a
ele há órgãos sensoriais que o permitem perceber o mundo.
Cada
espécie tem um tipo diferente de cérebro, e cada tipo interpreta a realidade de
uma maneira particular — havendo, claro, espécies que não têm cérebro algum.
Sendo humanos, temos um cérebro com cinco sentidos, e ainda a capacidade de
reflexão abstrata. É por meio disso, e apenas disso, que podemos saber o que é
a realidade. Note-se também que a nossa razão, apesar de magnificamente
versátil, não tem acesso à realidade exterior — sendo esse o motivo pelo qual a
razão pura é tão inútil para investigar a realidade quanto olhos fechados para
vê-la. Nossa consciência do mundo é, então, uma representação do mundo, um
ponto de vista particular de um cérebro de um organismo particular. Nossa
percepção do mundo não é o próprio mundo: é apenas o modo como nosso cérebro
nos apresenta esse mundo. Essa realidade, portanto, em vez de imediata, é
mediata: está para o mundo assim como um mapa rodoviário está para as estradas.
Trata-se de uma reprodução aproximada, de uma tradução mais ou menos
equivalente, não de uma transposição direta. Claro que nossos corpos, nossos
cérebros, nossos processos mentais existem e acontecem objetivamente.
Entretanto, o mundo que se apresenta diante de nós através da consciência,
através dos sentidos, é uma realidade apenas subjetiva, que depende de nós para
existir.
Por
isso ela varia de sujeito para sujeito. Aquilo que vemos como uma cor azul,
outro indivíduo pode ver como uma cor verde. Aquilo que para nós tem cheiro
podre, para abutres presumivelmente tem cheiro maravilhoso. Há infinitos modos
de interpretar as mesmas informações sensoriais, e isso depende de como nosso
cérebro funciona, de como ele está programado para traduzir as informações que
recebe por meio dos sentidos. Assim, a realidade em si mesma não nos é
acessível: só podemos apreendê-la de modo indireto, na forma de representação.
Isso nos dá uma ideia razoável do que queremos dizer ao afirmar que em nossas
cabeças há apenas uma representação da realidade, uma construção limitada feita
a partir de informações que não esgotam tudo aquilo que existe. Nossos sentidos
estão programados para captar apenas uma amplitude específica de informações.
Nossos olhos captam um espectro específico de ondas eletromagnéticas,
representando as como cores. Nossos ouvidos captam um espectro específico de
vibrações sonoras, representando-as como sons, e assim por diante.
Assim,
a princípio, nada impediria que sentíssemos gosto com os olhos ou que
cheirássemos com os ouvidos — bastaria que nossos cérebros estivessem
arquitetados para traduzir a realidade dessa maneira. Então, a partir de
processos físicos materiais, nosso cérebro cria uma espécie de “realidade
virtual” que só existe dentro de nossas mentes, assim como uma televisão cria
imagens a partir de componentes eletrônicos. A atividade de nossos circuitos
cerebrais cria nossa consciência e, dentro dela, um mundo subjetivo. Esse é o
nosso modo de existir. Nosso cérebro, através dos sentidos, recebe
continuamente informações do ambiente e, a partir dessas informações, ele
elabora uma representação subjetiva da realidade objetiva. Assim, em vez de
acessar a realidade diretamente, nosso cérebro lê os dados brutos que chegam
por meio dos sentidos e apresenta à nossa consciência um resumo de seus
aspectos mais relevantes. É isso o que cérebros fazem, essa é a sua função.
Através dos sentidos, eles se informam sobre a realidade para saber como guiar
os corpos nos quais estão instalados. Naturalmente, quanto melhor for nossa
capacidade de representar a realidade, melhores serão nossas chances de
sobreviver, de evitar inimigos, de encontrar alimento, parceiros sexuais e
coisas do gênero, sendo nossa capacidade de raciocinar apenas um refinamento
dentro disso tudo, permitindo-nos distinguir sutilezas.
Tais
coisas, por sua vez, estão arquitetadas em função da perpetuação genética. É
por isso que sentimos prazer ao fazer sexo, por isso sentimos dor ao ser
agredidos. Assim, nós somos reais, mas não vemos a realidade em si. A vida
consciente, entretanto, não é uma ilusão. Enquanto máquinas, somos seres tão
materiais e objetivos quanto o mundo que nos circunda. Nós existimos
objetivamente, nossa consciência é um fenômeno real. Porém, apesar de sermos
reais, nossa consciência não tem acesso imediato à realidade em si mesma. Esse
contato é mediado pelos sentidos. Com isso, vemo-nos limitados à representação
subjetiva criada por nossos cérebros, sendo nossos sentidos o único ponto de
contato com o mundo exterior. Disso resulta a impressão de que existir é estar
vivo, embora a vida seja apenas uma espécie rara de acaso. Como nosso contato
com a realidade acontece por meio dessa ótica parcial, criada por nós mesmos,
surgem dois problemas. Primeiro, nossa representação da realidade está
comprometida não com a ciência, mas com a sobrevivência. Segundo, como ter
consciência disso tudo não é biologicamente relevante, não distinguimos entre
uma coisa e outra, e o subjetivo nos parece algo objetivo, como se nossa
consciência, nossa representação mental do mundo, fosse o próprio mundo, algo
que nos leva a humanizar o que observamos, transpondo nossa representação da
realidade, que é interior, para o mundo exterior.
Parece-nos,
por exemplo, que as cores existem por si mesmas. Cores parecem-nos uma
propriedade intrínseca dos objetos que observamos, parecem algo exterior,
independente de nós. Ao observar um objeto vermelho, parece-nos indubitável que
aquela cor está no objeto, e não em nossas cabeças. Mas todas as cores são
criadas por nosso cérebro a partir da captação de ondas eletromagnéticas. Por
isso vemos cores num mundo no qual não há cor alguma. O fato é que não há
objetos verdes ou azuis em si mesmos. É nosso cérebro que cria as cores no
processo de transformar em imagens mentais a energia luminosa refletida por
tais objetos. Ver cores é apenas um modo como representamos a realidade, e elas
só existem porque há um cérebro que as cria. Se quisermos uma prova disso,
bastará fecharmos os olhos. As ondas eletromagnéticas, por outro lado, são
objetivas, pois sua existência é incondicional. Elas existem por si mesmas,
havendo ou não um cérebro para captá-las e traduzi-las em imagens mentais. O
mesmo vale para coisas como amor, alegria, prazer, dor, angústia ...: são algo
que só existe no contexto biológico de nossos corpos. Assim, tudo o que
acontece em nossas consciências tem seu começo e seu fim na própria
consciência.
Fora
da consciência, tudo é inconsciência. Fora da vida, tudo está morto.
Naturalmente, como somos seres vivos, temos a impressão de que a vida tem um
“valor intrínseco”, mas isso é tão ilusório quanto pensar que átomos têm
sentimentos. Como definimos, a realidade objetiva é aquilo que existe por si
mesmo incondicionalmente. Porém, como nossa existência subjetiva, o conteúdo de
nossas consciências, é puramente condicional, o niilismo, quando aplicado a nós
mesmos enquanto seres subjetivos, reduz-nos a nada. Não só as cores, mas todo o
nosso universo subjetivo passa a ser encarado como uma “ficção”, como uma
realidade virtual criada pelo sujeito. Nessa ótica, quando afirmamos que “tudo
é nada”, com isso queremos dizer que nossa ótica subjetiva da existência é
condicional. Queremos dizer que nossa consciência acontece dentro de nossos
cérebros como resultado de um processo material, de modo que a realidade
objetiva não está na própria consciência, mas na atividade neural, no cérebro
material que cria essa consciência.
Se
explodirmos nossos cérebros, apenas nossa consciência do mundo desaparecerá: o
mundo continuará existindo. Pelo fato de o mundo em si mesmo não possuir
nenhuma das características da subjetividade humana e, ao mesmo tempo, sermos
seres que existem encerrados num mundo virtual criado por eles próprios,
podemos dizer que nossa subjetividade se assemelha a uma espécie de surto
psicótico da matéria. Feita a distinção entre objetivo e subjetivo, o niilismo
começa a se situar com mais clareza em nossas mentes, permitindo-nos
relativizar nosso antropocentrismo. Desse modo, ao afirmar que tudo é nada, que
a existência é vazia, referimo-nos à ausência de significado que inere a essa
existência objetiva — pois significados, intenções e objetivos são algo que só
faz sentido no contexto de nossas máquinas biológicas. Não devemos, portanto,
entender o niilismo como uma “negação da realidade” ou como um “pessimismo
existencial”.
Devemos
entendê-lo como a ótica segundo a qual a realidade objetiva é algo que apenas
existe, estando isenta de quaisquer traços subjetivos. O subjetivo, por outro
lado, deve ser entendido como algo que existe apenas dentro de nossas cabeças.
Assim, objetivamente, o ser existe, e nada mais. Mas e quanto ao que acontece?
O que acontece, acontece, e nada mais. Se acontece dentro ou fora de nossas
cabeças, é indiferente. Isso justifica a afirmação de que, fora de nosso
universo subjetivo, nada tem sentido, tudo carece de significado, pois tais
coisas são criadas pelo próprio sujeito. É por isso que o problema do “sentido
da existência” não tem solução, pois não é sequer um problema, apenas um fato. De
início, não fica muito claro para que serve compreender isso tudo. O niilismo,
enquanto postura teórica, não tem sequer vestígio de utilidade prática. Porém,
intelectualmente, é uma ferramenta analítica bastante interessante, desde que
empregada em quantidades moderadas. Uma overdose de relativismo não fará mais
que nos deixar ansiosos por não termos certeza de nada e por havermos rejeitado
todos os pontos de referência a partir dos quais poderíamos deduzir alguma
coisa útil. Ficaríamos paralisados pelo simples fato de que “talvez possamos
estar errados”, de que “não podemos ter certeza de nada”. Mas, obviamente, por
tal postura consistir na certeza de que não temos certeza alguma, ela refuta a
si própria, sem nos oferecer qualquer perspectiva promissora sobre como chegar
a saber algo. O ceticismo radical é apenas um modo inteligente de afirmar, em
termos filosóficos, que somos limitados e estúpidos, no qual quem faz a
afirmação se coloca como um exemplo ilustrativo ao atirar no próprio pé.
Ao
que tudo indica, essa espécie de ceticismo é apenas ansiedade disfarçada de
filosofia. Claro, podemos estar errados. Porém, se estivermos, corrigiremos o
erro assim que o descobrirmos: não nos interessa devanear terríveis erros
hipotéticos, pois isso é apenas paranoia. Sendo um agente destrutivo, o
niilismo não nos permitirá descobertas grandiosas, apenas limpará o terreno
para que consigamos construir uma visão mais coerente da realidade. Assim, ao
aplicá-lo num assunto qualquer, não devemos esperar mais que a aniquilação do
objeto que analisamos, ou seja, sua redução a nada. O niilismo opera uma
espécie de “esterilização do ser”, eliminando todos os seus elementos
subjetivos: tira do ser toda a vida, todo o movimento, todo o significado, todo
o sentido, ou seja, desumaniza-o, descaracteriza-o a tal ponto que se torna
indistinguível de qualquer outra coisa. Isso permite que tenhamos uma visão
crua daquilo que analisamos, vendo-o despido de antropomorfismos, reduzido à
sua crua existência objetiva, o que equivale a dizer reduzido a nada, isto é, a
nada além dele próprio.
O
niilismo, como se percebe, procura nos remover da equação para que consigamos
conceber algo próximo do que seria a realidade objetivamente — sendo a
finalidade disso evitar que nosso conhecimento se torne uma humanização da
existência. Assim, ao adotar uma ótica niilista em relação a um assunto
qualquer, é como se estivéssemos desumanizando esse assunto, dissecando-o. Uma
vez tenhamos apagado suas qualidades subjetivas, deixará de existir qualquer
distinção entre uma coisa e outra coisa, seja qual for o nível em que tivermos
estabelecido tais distinções — como valor, sentido, significado, identidade —,
e teremos de reconstruir nossa compreensão do assunto sob essa ótica bastante
severa. No processo, morrem as ilusões, ficam os fatos. Como essa ideia é um
pouco abstrata, pensemos numa forma mais palpável de colocá-la.
Por
exemplo, o que é um homem? Podemos defini-lo, grosso modo, como um mamífero com
cérebro volumoso que anda em posição ereta. Essa definição distingue o homem de
todo o resto, especialmente o resto dos animais. Dá ao ser humano um caráter
distintivo frente à existência. Logo, nessa perspectiva subjetiva, temos uma
definição a partir da qual podemos afirmar que o homem é alguma coisa, que o
homem existe. Todavia, o que aconteceria se agora adotássemos uma postura
niilista em relação ao homem? Haveria uma série de questionamentos que acabaria
por desconstruir toda essa noção, negando a distinção entre o homem e as demais
coisas. Vejamos algo simples que ilustra essa ideia. O homem é composto por
aproximadamente 70% de água. Enquanto essa água estiver, digamos, em seu cérebro
como componente das reações químicas que o mantêm vivo, ou em qualquer outra
parte de seu corpo, será também um homem. Então a água é homem na medida em que
compuser o sistema biológico que desempenha esse papel previamente definido.
O
mesmo vale para os 30% restantes, que são proteínas, gorduras, açúcares, ácidos
nucleicos ... Sabemos que o homem só permanece vivo na condição em que a
matéria que constitui seu corpo seja trocada permanentemente. Então em algum momento
a água que estava em seu cérebro, e que o permitiu pensar que precisava cortar
as unhas, será expelida de seu corpo. A água deixará de ser um homem para ser
precisamente o quê? Exatamente o que era antes de ser ingerida: nada, só um
conjunto de moléculas de oxigênio e hidrogênio, como sempre foi, como nunca
deixou de ser. A não ser que pensemos que os átomos adquirem alguma aura mágica
após a absorção e a perdem após a excreção, temos de admitir que o conceito
subjetivo de homem, que nós próprios inventamos, é algo que cria uma distinção
subjetiva e qualitativa entre esse homem, que é um arranjo específico de
matéria, e as demais coisas, que são arranjos de matéria dispostos de modo
diverso. Ambas as coisas, no fundo, são exatamente a mesma coisa: matéria. Tudo
o que fizemos foi classificar, dar nomes aos bocados de átomos que nos parecem
importantes, e as distinções que criamos com isso são apenas convenções. Essa
distinção que vemos entre homem e não-homem nunca poderia ser objetiva porque,
por exemplo, as moléculas de água no rio, na chuva ou no cérebro têm,
objetivamente, a mesma natureza. Sejam quais forem as situações em que se
encontrem, não exibem qualquer diferença discernível em seu comportamento
físico. Se isso se aplica não somente à água, mas também a tudo o que compõe o
homem, e se o homem é composto pela mesma matéria que constitui todo o resto do
universo, onde exatamente poderíamos encontrar uma fundamentação objetiva para
a distinção entre o homem e o mundo? Entre a água em seu sangue e a na
torneira? Entre o oxigênio em seu sangue e o na atmosfera?
Não
podemos — ou os rios já estariam humanizados pela nossa urina cheia de
essências e realidades maiores. Tudo o que fazemos é criar definições
subjetivas de caráter convencional, nas quais o que levamos em consideração é a
utilidade prática de se designar esse arranjo específico de matéria pelo termo
homem. Portanto, analisar o homem com uma ótica niilista equivale a negar sua
existência objetiva — mas apenas enquanto um ser dotado de uma suposta
“subjetividade objetiva”. Isso não significa que não existimos, que não estamos
aqui, mas que não se pode dizer que o homem existe objetivamente, no mesmo
sentido em que a água existe. Isso porque, diferentemente das cores, dos sons,
dos sentimentos, a água não é criada por nossa representação da realidade. Claro
que a água surge devido a reações químicas. Sabemos que seus elementos podem
ser decompostos, mas isso tudo independe da ótica de um sujeito. Se
decompuséssemos a água utilizando eletricidade, a eletrólise não ocorreria em
nossos cérebros. Assim, ao aceitarmos que o homem é composto pela mesma matéria
que compõe todo o resto do universo, e que esta matéria se comporta da mesma
forma, estando ou não em seu corpo, isso implica rejeitar a distinção entre
homem e não-homem.
Nessa
ótica, se houvesse um homem sentado em uma cadeira, seu corpo e a cadeira não
poderiam ser encarados como coisas distintas, objetivamente diferentes. Tudo
passa a ser visto como uma sopa indistinta de átomos. A distinção entre homem e
cadeira só surge após delinearmos critérios subjetivos de classificação, que
são completamente arbitrários. Não que tais critérios sejam inúteis, pois não
são. O fato de algo ser subjetivo não é uma objeção à sua significância, só uma
condição de existência: a condição de existir como um fenômeno subjetivo, como
uma ótica de um sujeito, não como uma “essência do ser”. Em nenhum sentido isso
poderia ser usado como justificativa para remover o valor da cadeira ou do
homem, visto que coisas como valor, significado, sentido só existem dentro da
esfera subjetiva, nunca no mundo objetivo. Diante disso, alguém poderia dizer:
como se pode afirmar que, ao olhar este objeto, não exista uma pessoa vendo
este objeto! Naturalmente que, para todos os efeitos, existe uma pessoa vendo
esse objeto. Só que a pessoa, enquanto um sistema biológico maquinal, assim
como sua notável capacidade de converter energia luminosa em imagens mentais, é
um fenômeno, e como tal deixará de existir — ou, melhor dizendo, de acontecer —
assim que o encadeamento material que deu origem ao fenômeno cessar, resultando
num velório.
Com
a morte do indivíduo, deixa de existir esse universo subjetivo no qual havia
uma pessoa que via objetos — e, quando um universo subjetivo desaparece, não
sobram disso quaisquer vestígios, assim como não sobram vestígios de filmes
quando uma televisão é desligada. Pode-se dizer que, no exemplo acima, nós
“niilificamos” o homem, isto é, o desconstruímos, esvaziando-o de quaisquer
qualidades subjetivas. Quando suprimimos o aspecto subjetivo do homem, passamos
a ver nós próprios como um fato, como algo indistinto, que não se separa do
restante da realidade. Vemo-nos, então, reduzidos a um bocado de átomos — e
vemos que nosso próprio pensamento não passa da atividade desses átomos. Por
meio desse processo intelectual, pudemos vislumbrar o que é um homem em si
mesmo, num sentido objetivo. Se fizéssemos a mesma pergunta — o que é o homem?
—, responderíamos, agora, o homem não é nada. Como a redução a nada é um
processo intelectual, não algo prático, não foi necessária uma bala para
realizar essa ação — embora ela sirva para ilustrar que depois de morte nada
restará de nosso subjetivo.
A
utilidade fundamental de analisarmos algo sob a ótica niilista, como se vê,
consiste em verificar sua consistência, ou seja, sua relação com a realidade,
sua vida — e, para testar a vitalidade de uma ideia, nada mais confiável que
destruí-la e, depois, verificar se tem forças para renascer de suas próprias
cinzas. Mesmo que tenhamos desconstruído o homem no exemplo acima, essa ideia
não deixou de ter vida, pois podemos reconstruí-la por completo a partir da
realidade subjetiva, e não nos incomoda em nada que tenhamos de fazê-lo nós
próprios, sem qualquer autoridade externa. Como somos homens, esse é um conceito
que simplesmente fazemos questão de cultivar, e está completamente contido na
esfera humana da realidade. É importante também lembrar que essa desconstrução
não nos causou angústia somente porque, desde o início, não tínhamos quaisquer
fantasias metafísicas sobre o homem ser “especial” ou “algo além” de matéria.
Assim, mesmo descontruída em nível conceitual, nossa existência não deixou de
ser um fato. E o mesmo poderia ser dito das cores: mesmo sabendo que cores são
apenas uma ficção subjetiva, continuamos a cultivar esse conceito, pois ele é
útil para a decoração das paredes de nossas casas. Se cores não perdem seu
valor por não possuírem uma “essência transcendental”, por que o homem perderia?
Julgamos
tais observações óbvias porque sabemos que somos apenas um modelo específico de
máquina biológica ao qual damos o nome homem. Se a espécie humana não
existisse, o conceito de homem também não existiria — nossa essência não
continuaria existindo num cantinho oculto do cosmos. Assim, os niilistas podem
desconstruir o conceito de homem o quanto quiserem. Isso apenas apaga uma
definição, mas não muda o fato de que somos máquinas que gostam de dar nomes às
coisas. O niilismo apenas nos impede de perder de vista que, em última
instância, é apenas gramática o que nos distingue do resto da existência. O
homem, como vemos, sobreviveu à crítica. Porém, se reduzirmos a nada um
conceito que não tenha realidade por detrás, não haverá como reconstruí-lo.
Quando, depois de sofrer tal processo de crítica, o conceito não é capaz de
levantar-se novamente, isso indica que já estava se tornando um fantasma, que
já havia deixado de corresponder a uma realidade explicitamente humana para
refugiar-se no nada na forma de um dogma metafísico impessoal, sustentado
somente pela tradição ou pela fé.
Então,
por exemplo, se reduzirmos a moral a nada, o que restará de realidade nesse
conceito? Ou seja, a partir de que poderemos reconstituí-la, devolver-lhe a
vida? Apenas de nós próprios, pois não haveria qualquer outro referencial.
Então, se não pudermos explicar de onde tiramos nossos valores, eles não
poderão continuar a ser sustentados. Não poderemos alegar que existem “por si
mesmos” se não pudermos demonstrá-los como um fato natural — e, não havendo um
além, só nos restará defendê-los como um valor subjetivo, inventado por nós.
Suponhamos que houvesse existido uma tribo que acreditava em duas leis morais:
que é errado comer fezes e que é errado comer alface. Numa escavação
arqueológica, encontramos essas duas leis inscritas em algum artefato. Nessa situação,
apenas a primeira lei nos seria algo inteligível, um valor moral ainda passível
de ser reconstruído como algo relacionado ao mundo. A outra lei seria vista
como uma superstição sem sentido, baseada em alguma suposição fantasiosa desse
povo a respeito do caráter funesto das folhas de alface. Nenhuma pessoa em sã
consciência pensaria que devemos parar de comer alface, tampouco acharia
sensato comer fezes para zombar dos valores dessa tribo.
Entretanto,
se descobríssemos que a alface que essa tribo cultivava era uma variante que,
por alguma mutação genética, tornou-se venenosa, então julgaríamos
perfeitamente razoável a proibição que defendia. Noutro exemplo, reduzindo a
nada as leis criminais e os dez mandamentos, só as primeiras poderiam ser
reconstruídas com nossas próprias mãos. Poderíamos reinventar as leis criminais
a partir do zero, pois sabemos de onde vieram e para que servem. São valores
morais humanos, e sabemos como justificá-los: interesses comuns e polícia.
Isso, obviamente, não se aplicaria aos dez mandamentos, já que ninguém poderia
demonstrar a realidade do legislador metafísico que os criou. Nessa situação,
todos os valores morais que tenham deixado de possuir raízes na realidade, que
tenham se convertido em abstrações puras e idealismos caducos, morrem ao serem
demolidos pelo niilismo, e isso pelo simples fato de que não havia nenhuma
realidade ainda viva que os sustentasse. Esses valores, agora sem contexto, já
não nos defendem, não nos representam.
Não
se sustentam porque não há ninguém para sustentá-los, sendo que sua morte só
poderá ser adiada por apelos à autoridade. Com se percebe, o processo de
crítica niilista seria equivalente a reunir todo o papel-moeda que possuímos e
todo o ouro que lastreia seu valor. Destruir todas as notas de papel-moeda e,
então, verificando a quantidade de ouro que possuímos, emitir novamente as
notas, sabendo que, agora, há uma realidade sustentando seu valor. Dogmas, ou
seja, ideias sem valor nem conteúdo, fazem mal à nossa compreensão da realidade
assim como cheques sem fundo fazem mal à economia. Essa analogia deixa claro
que o niilismo, longe de representar uma medida drástica, não passa de um
procedimento de fiscalização da realidade, enfatizando não a destruição, mas a
transparência de nosso conhecimento. Assim, quem possui confiança de que suas
ideias têm fundamentação sólida, não terá nada a temer. Entretanto, quem emite
juízos ocos, fraudulentos, não terá como protegê-los.
A
moral é um assunto bastante controverso, mas é evidente que somos nós próprios
que inventamos todas as noções morais. Recheamo-las com ideias, depois as
esvaziamos com críticas, e assim caminhamos. Um conjunto de noções morais
cumpre o papel de orientar nosso comportamento na vida em sociedade. Como somos
seres em constante mudança, as criações que originalmente surgiram como nosso
reflexo deveriam nos acompanhar nessas mudanças, mas é bastante comum acabarem
cristalizadas em noções aparentemente suficientes em si mesmas. Ou seja, perdem
seu sentido, sua origem, sua função, e agora não dizem nada, não passam do eco
de uma voz esquecida. Porém, em vez de morrerem, é comum permanecerem vivas
anonimamente em função da tradição e da autoridade. É como se um elemento
subjetivo houvesse “pegado a tangente” e transposto a própria subjetividade,
situando-se agora na esfera objetiva que nós, meros mortais, não podemos
alcançar. Tornam-se valores de anjos. Isso, logicamente, é impossível, mas é
assim que se estabelece a autoridade absoluta de certos valores, ao menos em
nossas cabeças. Um ótimo exemplo disso é o culto aos antepassados — porque,
obviamente, se tais valores fossem justificáveis, não seria preciso defendê-los
recorrendo ao histórico de defuntos. O que temos aqui? Valores
incompreensíveis, que apontam para lugar nenhum, e cujos fundamentos, em vez de
serem alguma coisa, não são nada.
No
além, são tudo. No aqui, não são nada. São razões cuja razão ninguém entende,
mas mesmo assim segui-las é “absolutamente necessário” — por motivos que
ninguém sabe explicar. Se admitíssemos que isso tudo não passa de uma inércia
cega e irracional, tudo bem. Porém, quando tentamos justificar racionalmente a
preservação desses defuntos teóricos, temos novamente a metafísica tentando
enxertar razão no que não tem razão alguma. São coisas desse gênero que o
niilismo destrói, e não vemos como isso poderia ser algo ruim. Apesar de
estabelecer referenciais aparentemente seguros que nos livram do relativismo e
da incerteza, a moral metafísica apenas utiliza um artifício circular para
calar o assunto e permitir que sigamos com nossas vidas como se a questão estivesse
resolvida. Essa moral metafísica, em grande parte, se ocupa da solução de
problemas imaginários, como o sexo dos anjos ou o umbigo de Adão.
Porém,
quando ela se ocupa da solução de problemas reais, o resultado pode ser — e
muitas vezes é —prejudicial, pois ela tranca nossa compreensão da realidade
dentro de dogmas e joga a chave fora. Tudo permanece explicado por uma razão
intocável e incompreensível, que temos de obedecer sem hesitar. A mesma
sensatez que, noutros assuntos, é normal, passa a ser um crime quando
direcionada a essas questões. É assim que um assunto se torna “profundo”, e tão
mais profundo quanto mais palpável for sua incoerência. O que poderia ser mais
ridículo que subordinar toda a nossa compreensão da realidade à crença em valores
e conceitos absolutos que todos respeitam, mas ninguém sabe explicar, e que
habitam uma realidade na qual não estamos? E o que poderia ser mais
inconsequente que considerar tal postura submissa como algo razoável?
Simplesmente tiramos da cartola, num passe de mágica, uma explicação fantástica
para algo que muitas vezes sequer existe. Depois tentamos justificar esse salto
de fé chamando-o de “mistério”, de “sentido íntimo das coisas”, de “ordem moral
do mundo”, e coisas do gênero. Guiamo-nos em função disso como se fosse uma
realidade última, coisa que, no fim, equivale a andar a esmo, desprezando o
próprio chão.
Permitir
que a metafísica se infiltre na moral pode parecer uma infantilidade
inofensiva, deixando-a proclamar seus imperativos morais irrelevantes com uma
solenidade palerma, mas é perceptível o quanto ela atrapalha uma compreensão
clara dos valores que efetivamente nos guiam enquanto seres humanos. Essa
atmosfera metafísica faz com que passemos a ver tudo sob uma ótica
constantemente falsa, e como somos proibidos de questionar essa ótica, perdemos
cada vez mais o contato com a realidade. Em pouco tempo, perdemos a capacidade
de emitir juízos morais em primeira pessoa, pois demos à metafísica o papel de
sonhá-los por nós, recebendo em troca uma moralidade que se perdeu dos fatos. É
certo que o niilismo é uma presença fria e incômoda, mas nunca chegamos a nada
tentando superá-lo com baboseiras metafísicas — se isso não resultar num dogma
transcendental delirante, será no melhor dos casos uma tábua de mandamentos que
nos obrigam a ser ainda mais incoerentes. A metafísica não se justifica sequer
como uma medida preventiva contra as implicações supostamente “perniciosas” do
niilismo, pois o nada não pode ser posto em prática. O niilismo destrói só
ilusões, e isso apenas intelectualmente. Não há quaisquer implicações práticas
diretas. Para esclarecer esse ponto, pensemos da seguinte forma: alguém já
ouviu a respeito de algum holocausto cometido em nome da incerteza? De mártires
que deram suas vidas pela descrença? Ora, ninguém mata em nome da dúvida,
ninguém se sacrifica pela realidade. Todas as guerras que travamos repousam em
alguma certeza, e todas as certezas são crenças metafísicas para justificar
nossos absurdos. Apenas convicções são perigosas. Por isso mesmo, o niilismo
não representa perigo algum. Aqueles que dizem o contrário são os que estão
tentando proteger suas ilusões dos fatos mais elementares. Tais indivíduos
nunca receariam o niilismo se suas crenças fossem fatos justificáveis — afinal,
ninguém tenta proteger a gravidade do niilismo, receando a desintegração do
universo; ninguém invoca imperativos universais para defender que é errado
fazer transfusões de sangue entre tipos incompatíveis; ninguém precisa ter fé
para afirmar que é errado gritar em bibliotecas.
Nenhuma
moral saudável precisa ser defendida pela anemia metafísica. Muitos também
alegam que o niilismo busca destruir a “ordem social”, mas isso é outro
equívoco. O que o niilismo busca destruir são nossas mentiras. Porém, se nossa
ordem social repousa em mentiras, é claro que ela será refutada pelo niilismo,
mas isso é apenas uma consequência indireta de sermos honestos. Mesmo assim, o
objetivo nunca foi explicitamente esse. Tudo o que fizemos foi refutar — e não
alvejar — aquilo que não se sustenta. No mais, como o niilismo não tem a
pretensão de apontar qualquer caminho, ele também nunca poderá servir como
pretexto para a militância social, pois niilistas não têm qualquer certeza,
ideal ou verdade a defender. Sendo o niilismo uma postura negativa, ao
adotarmos uma postura positiva, abraçando uma causa qualquer, deixamos de ser
niilistas e nos tornamos defensores dessa causa. O caráter inofensivo da
postura niilista ficará ainda mais claro se tivermos o cuidado de observar que
um niilista prático não seria uma pessoa ensandecida, envolvida na promoção de
algum apocalipse social, mas uma pessoa em coma, em estado vegetativo.
A
ideia de tentarmos “viver” o vazio da existência se assemelha a um distúrbio
mental, pois esse vazio só pode ser pensado. O niilismo, no máximo, pode fazer
com que nos sintamos angustiados pela morte de nossas ilusões, mas não
significa nada, exceto que não gostamos de estar errados. As observações feitas
até aqui serviram para se ter uma ideia mais clara do que exatamente está se
falando quando se afirma que algo é “nada”, pois, de início, parece
contraditória a ideia de que o nada possa efetivamente existir e,
conscientemente, negar a sua própria existência. Quando falamos de coisas como
“nada”, “vazio”, na verdade não é no mesmo sentido de “aquilo que não existe”,
de “não-ser”. Tampouco isso tem a ver com pessimismo, ou seja, com distorcer a
realidade negativamente somente porque não gostamos dela. Os termos “nada” e
“vazio” são usados somente para designar aquilo que desaparece quando o ser é
despido daquilo que não lhe é objetivamente próprio. As confusões iniciais
desaparecem quando entendemos em que acepção esses termos são empregados. Logo,
dizer que a existência é “vazia em si mesma” não significa que nada nela
exista, que seja o mais puro vácuo, mas apenas que, removendo-se dela todas as
qualidades que somente dizem respeito ao nosso mundo subjetivo, não sobramos
nem nós próprios. Tudo o que sobra é aquela situação na qual tudo é indistinto,
e assim perde o sentido alegar que este ou aquele bocado de matéria é
“especial” porque constitui um homem cheio de vida, pois, nessa ótica, a
matéria constituir um homem vivo, um morto ou a terra que já teve a forma de
homem e que agora alimenta flores no jardim é completamente irrelevante para
nossos propósitos. Então, quando falamos de niilismo, isso nos remete a essa
realidade uniformemente estéril, ao contraste da existência objetiva em relação
à existência subjetiva.
Naturalmente,
deve estar claro por que motivo o niilismo só pode ser teórico, nunca prático.
O mais próximo que se pode chegar da compreensão do niilismo existencial é a
apreensão desse vazio enquanto condição de existência, ou seja, compreender que
o mesmo ser que constitui tudo o que somos e tudo o que pensamos é o mesmo que
constitui as pedras, as estrelas, os cigarros, as paredes ..., e que o fato de
estarmos pensando nisso, de isso talvez nos angustiar, não muda coisa alguma,
pois essa angústia está acontecendo em nossos cérebros com a mesma necessidade
com que elétrons acendem uma lâmpada. Sempre que ultrapassamos o círculo em que
fica circunscrita a subjetividade humana, caímos nesse vazio da realidade
objetiva, no qual não conseguimos sequer nos reconhecer. Pois conceber o homem objetivamente
é, em essência, imaginá-lo como uma porção de matéria delimitada por linhas
pontilhadas. Aqui não há cores, não há sons, não há sensações, não há
pensamento, não há vida, não há nada: temos só mais um fenômeno indistinto no
emaranhado da falta de sentido da existência.
Podemos
tentar conceber uma imagem da existência a partir de uma perspectiva fora da
própria vida, mas em geral não chegamos a algo muito além de uma versão do
mundo em que tudo é composto por nuvens semitransparentes de átomos de
diferentes densidades. Uma perspectiva mais fidedigna talvez seja aquela que
tínhamos quando ainda não havíamos nascido, apesar de ser difícil conceber esse
tipo de coisa. Talvez apenas imaginar o universo sem que nele houvesse surgido
qualquer forma de vida seja o modo mais fácil de conceber a ótica do niilismo
inicialmente. Depois precisaremos apenas acrescentar a vida como algo que
apareceu nesse universo e que provavelmente desaparecerá em algum momento
futuro sem deixar quaisquer vestígios. Como o ser não comporta os adjetivos que
adoramos dar a ele, a função do niilismo é, digamos, apenas antiaderente:
evitar que nossa compreensão da realidade seja poluída por nosso
antropocentrismo. Ao reduzir algo a nada, a destruição ocorre apenas na esfera
subjetiva da existência, reduzindo-a a uma “realidade virtual” dentro do mundo
material. A partir dessa ótica, passamos a entender nossas consciências como se
fossem “filmes passando dentro de nossos cérebros”, não como a existência em si
mesma.
Fica
claro que tal compreensão não muda nada na prática, apenas nos ajuda a
discernir os fatos com maior clareza. Como não podemos mudar o comportamento
básico da realidade em que estamos, nossa única opção é compreendê-la — e,
sendo esse o caso, refugiar-se do niilismo nada mais é que entrincheirar-se em convicções
risíveis. Se nos perguntarmos honestamente por que o niilismo nos incomoda
tanto, veremos que os motivos nunca são mais que mesquinharias pessoais e
preconceitos aprendidos na infância. Já é grande coisa que possamos entender
como o mundo funciona: negá-lo porque seu funcionamento não corresponde às
nossas expectativas pessoais é simplesmente condenar-se à ignorância. Assim,
depois de desmantelar nossos numerosos pretextos para a “dúvida”, geralmente
percebemos que temos uma ideia bastante boa de como as coisas são, e que de
fato não há mais nenhum mistério grandioso na existência — já respondemos a
grande questão. Sabemos o que é a vida, e como ela funciona. Sabemos o que é
nosso planeta, e como ele se formou. Sabemos o que é o sol, e por que ele
nasce. Hoje sabemos tudo o que os filósofos sempre quiseram saber, ou quase
tudo. O mundo em si mesmo é algo físico e impessoal. Em termos humanos, a
realidade é o mais completo vazio, e é ótimo que saibamos disso. Como é de se
supor, o niilismo existencial adota esse “vazio” como ponto de partida e, como
não há nada a se fazer quanto a isso, também como ponto de chegada. É o tipo de
coisa da qual sabemos que não há como escapar, embora também não consigamos
conviver muito bem com a consciência disso.
Seja
como for, temos ao menos de aprender a lidar com os fatos, agradáveis ou não,
pois a outra opção é delirar. O niilismo, obviamente, não tem grande
importância prática. Porém, enquanto insistirmos em pensar que há algo muito
espetacular a ser encontrado “por detrás” do mundo, o niilismo continuará sendo
necessário para nos mostrar que isso é apenas uma fantasia. Mesmo sendo o
niilismo perfeitamente defensável em termos intelectuais, não faz muito sentido
tentar “viver” em função disso, pois esse é um tipo de perspectiva que
simplesmente nos sufoca. A consciência da nulidade da vida nos chega como uma
vertigem paralisante — e a própria constituição biológica do homem não favorece
esse tipo de abordagem da realidade. Como ignorância não é impedimento,
mexilhões passam pela existência sem compreender filosoficamente sua condição,
e seria difícil imaginar razões pelas quais essa compreensão lhes traria algum
benefício. E o mesmo se aplica à maioria dos homens: sequer lhes passa pela
cabeça que seus umbigos não são o centro do universo. Se querem permanecer
ignorantes, tudo bem. Sabemos reconhecer que não nos diz respeito o modo como
cada qual governa sua vida.
Mas
nós escolhemos pautá-la numa ótica esclarecida, que leva em consideração o modo
como a realidade funciona. Então se nos perguntam como niilistas vivem, o que
poderíamos responder? Ora, vivem como bem entenderem, porém de olhos abertos.
Niilistas enfatizam a objetividade, mas isso não significa que desprezem a
subjetividade. Apenas têm a prudência de relativizá-la o suficiente para
perceber que ela não é tudo o que existe. De qualquer modo, somos seres
subjetivos, e só podemos viver enquanto tais. Só devemos ter em mente que
nossos pés pisam numa realidade objetiva, sendo ela o que realmente determina
nossas vidas. Nessa ótica, se a vida é um sonho, o niilismo seria apenas a
tentativa de torná-lo um sonho lúcido. Pelo que foi dito, apesar de não haver
esperança quanto à possibilidade de vislumbrarmos uma esfera prática e
construtiva no niilismo — além de sua utilidade teórica como chave de fenda da
realidade —, isso não nos conduz à conclusão de que ser um niilista paralise a
vida prática, já que ambas as coisas se situam em esferas completamente
distintas. É bastante superficial a acusação de hipocrisia comumente lançada
contra o niilista, na qual se supõe que a verdadeira honra consistiria em
estourar os miolos em nome da coerência — e a própria verdade dessa afirmação
pode ser encontrada no fato de que o tiro não produziria honra, mas apenas uma
lambança que algum infeliz teria de limpar.
Não
se pode colocar como objeção teórica o fato prático de que niilistas continuam
vivos apesar de considerarem que a vida, como todo o resto, equivale a nada,
pois o suicídio não é um argumento, assim como o sangue não é honra. Diante de
uma objeção dessa natureza, só podemos supor que indivíduos desse gênero, por
algum motivo tortuoso, pensam em si mesmos como uma “empresa”, um
“investimento” do ser: como se os átomos que compõem seus corpos fossem ações
cujo valor oscila na bolsa de valores da existência em função do quanto
acreditam valer. Ao que tudo indica, recusar essa ideia é apenas indício de bom
senso. Crenças não mudam os fatos. Em si mesmo, o niilismo não vale nada. Seu
único valor possível é relativo, e consiste no fato de que essa ótica nos permite
identificar ilusões previsivelmente desastrosas. A utilidade dessa lucidez pode
ser ilustrada pela diferença entre um homem bêbado e um homem sóbrio. Nesse
sentido, sua natureza é semelhante à do ateísmo, que também possui um caráter
negativo frente a uma ilusão claramente prejudicial à nossa compreensão da
realidade. A descrença ateísta explícita poderia, nesse sentido, ser entendida
como um caso particular do niilismo.
Assim,
não há por que nos “orgulharmos” de ser niilistas, senão por isso ser indício
de sensatez. Um niilista esclarecido, com a garantia de estar pisando no chão
sólido do fundo do poço, tem consciência de que seus valores, objetivos e ele
próprio são coisas que não existem efetivamente, mas apenas de modo
condicional, e não encontra problema algum em suspender qualquer esforço no
sentido de situar-se na “essência” do mundo objetivo. Mesmo porque, ao
tentarmos fazer isso, não estaríamos fazendo mais que criar um mundo imaginário
no qual os átomos sorriem ao nos ver — ou coisa pior.
Há
outro modo de entrarmos em contato com o niilismo, apesar de não ser o mais
agradável. Trata-se não de tentarmos entender o vazio da existência
racionalmente, através da reflexão, mas de sentirmos esse vazio afetivamente. O
próprio fato de haver um ponto de contato tão inesperado entre uma visão
puramente teórica e uma faceta da subjetividade humana de abrangência universal
torna o assunto, se não mais interessante, ao menos mais digno de consideração.
Trata-se da situação em que a visão cotidiana da vida, imersa em fantasias e
fechada em si mesma, se esfacela pelo confronto com uma situação
desconcertante, fazendo com que o mundo se reduza a algo pobre e vazio. Estamos
falando do luto, ou seja, a reação natural de todo ser humano ante a perda de
algo afetivamente importante, como um ente querido, uma relação amorosa, amigos
próximos, inclusive ideais ou qualquer outra coisa com a qual se tinha um
vínculo afetivo estreito. Não nos referimos, obviamente, ao ritual de usar
roupas pretas nem a minutos de silêncio, tampouco a gemidos histéricos ou a
rios de lágrimas, mas ao que ocorre subjetivamente na visão de mundo do
indivíduo, ao estado de espírito acarretado pela perda.
Os
sintomas comuns do luto são tristeza, depressão, abatimento, falta de interesse
pelo mundo exterior e, o que é especialmente interessante em nosso caso, uma
lucidez penetrante. Esse estado pode ser descrito como a sensação de que tudo
“perde o sentido” ou de que “nada tem valor”. Em nenhuma outra situação
compreende-se melhor o significado do termo “em vão”. Quando buscamos algo que,
em termos práticos, corresponda ao niilismo, vemos que o luto é um forte
candidato. Isso porque a impressão que se tem é que o indivíduo enlutado se
torna provisoriamente niilista por uma espécie de “emergência emocional”. Em
emergências nas quais nossa integridade física está em jogo, a reação
automática do corpo é disparar o comando de luta-ou-fuga. Igualmente, quando a
integridade de nosso mundo psicológico está em jogo, temos o luto como uma
reação de parar-e-pensar, como se o cérebro, ao “reduzir a nada” nossa
subjetividade, estivesse nos preparando fisiologicamente para uma revisão fria
e calculada da realidade. Como, nesse caso, o indivíduo não está apenas
devaneando sobre o vazio da existência, mas sentindo intimamente, a vivência
prática é seriamente prejudicada pela angústia e pela depressão, fazendo com que
a vida pareça algo completamente sem sentido — e não é, no fim das contas,
justamente esse o caso? Não é estranho que a maioria dos indivíduos precise
chegar a tal extremo para apreender esse tipo de verdade? Pois todas as vezes
em que tentamos encontrar “razões” que justifiquem ou deem sentido à vida,
sempre chegamos à conclusão de que não há nenhuma. Como não há saída, ninguém
insiste muito nesse ponto. Cedo ou tarde, reconhecemos o caráter nulo desse
tipo de empreitada e, sem protestos, limitamo-nos a nos deixar guiar pela
vontade, empregando a razão como um acessório que fica a seu serviço.
O
problema é que, quando transposto à prática, o niilismo tem o aspecto de uma
enfermidade mental, de algo que nos paralisa, sendo que até já foi
caracterizado pela psiquiatria, psicologia ou psicanálise como uma forma de
delírio em que o sujeito nega a existência da realidade, no todo ou em parte. A
ideia de que a realidade cotidiana que nos rodeia não tem valor algum, de que
ela sequer exista objetivamente, é perfeitamente lógica e justificável.
Contudo, quando o niilismo contamina nosso mundo afetivo, ele nos força a
admitir que nós próprios somos nada, faz com que nos sintamos esse nada — e,
quando ambas as coisas coincidem, convergem em uma lógica incrivelmente sólida.
A única saída parece ser o suicídio prático que resolverá um problema teórico.
Claro que a maioria das pessoas não é tão dominada pela racionalidade a ponto
de cometer suicídio motivada por silogismos. Contudo, temos de admitir que
sentir-se vazio é algo bastante perturbador, ainda mais quando temos o completo
entendimento de que isso não é um delírio, mas um estado mental em que
conseguimos apreender com clareza uma das verdades mais elementares às quais
temos acesso.
Apenas
caso não nos contentássemos somente com apreender esse nada intelectualmente,
mas também quiséssemos orquestrar toda a nossa vida prática em função dele,
vivendo como múmias paralíticas, então teríamos nos tornado seres perfeitamente
delirantes. Isso é fisicamente impossível, e com razão constitui um transtorno
mental. Assim, não podendo agir de acordo com tal verdade, a saída escapatória
mais razoável seria admitir que compreender a realidade e viver nela são coisas
regidas por regras distintas. Apesar de que, em essência, aquilo que se faz em
ambos os casos não difere muito: num caso estaremos fantasiando em um mundo
particular e, no outro, em um mundo público. As duas soluções surgem em
legítima defesa, mas só uma delas não faz com que percamos o contato com a
realidade que nos cerca, isto é, com a sociedade.
Todos
fantasiam o mundo para poder suportá-lo, inclusive niilistas. Fugimos do vazio
para conseguirmos viver, mas devemos ter em mente que o abismo não deixa de
existir apenas porque desviamos o olhar e a vertigem passa. De qualquer modo,
intelectualmente, tal fato não nos incomoda, pois há uma grande diferença entre
saber que há um abismo e estar nesse abismo, assim como é diferente apenas
sabermos que leões são perigosos e estarmos cara a cara com um. Portanto,
precisamos apenas procurar meios de desviar o olhar afetivo da perspectiva
niilista, pois nosso olhar lógico, enquanto permanecer são, nunca será capaz de
fazê-lo — já que isso equivaleria a negar a realidade. Não que isso não seja
feito, mas é realmente lamentável dar com a porta na cara da verdade no único
lugar no qual podemos recebê-la. Nessa ótica, o luto poderia ser entendido como
uma espécie de niilismo psicológico, no qual apreendemos o vazio da existência
não diretamente, por meio da reflexão, mas indiretamente, por meio da
afetividade. O estado depressivo nos proporciona uma intuição seca e direta a
respeito da realidade objetiva, reduzindo o subjetivo a nada — e podemos
perceber que isso equivale a um procedimento de fiscalização da realidade de
nosso mundo psicológico feito involuntariamente, pelo próprio cérebro. Nessas
situações convulsivas, somos forçados a encarar a realidade nua e crua, e até
os indivíduos mais otimistas veem-se sequestrados pela lucidez. Enquanto o
indivíduo estiver enlutado, perde a capacidade de enganar-se.
Por
isso nada do que dissermos será capaz de consolá-lo; por isso também os
religiosos choram em velórios, coisa que a princípio não faz muito sentido. O
fato é que, ao ver seu ente querido ser abraçado pelo ataúde, todo religioso
percebe que sua crença em espíritos e reencarnações é, no fundo, uma crença que
tenta negar o óbvio. Suas crenças só voltarão a consolá-lo depois que tiver
superado a perda. Há apenas duas situações nas quais conseguimos ser
imparciais: quando nossos interesses não estão envolvidos, e quando nosso
interesse é a própria verdade — ou seja, quando nossa parcialidade, por motivos
pessoais, coincide com a imparcialidade. Dentro disso, a depressão, em si
mesma, não tem nada de relevante. O interessante é apenas o fato de que, em
fases depressivas, nós como que “damos as costas” à vida, passando a ver a
realidade com desinteresse. Assim, a perspectiva da depressão, por ser desapaixonada,
nos permite ser imparciais, representando uma rara oportunidade de vermos as
coisas como realmente são.
Isso
explica por que, durante fases depressivas, o niilismo nos parece uma visão
visceralmente coerente, com a qual conseguimos nos identificar tanto em termos
intelectuais quanto afetivos. Por outro lado, quando estamos numa fase normal,
perseguindo nossos sonhos do dia a dia, essa mesma ótica nos parece um tanto
distante de nosso modo de sentir a realidade, de nossa vivência — ainda que,
intelectualmente, o niilismo continue possuindo a mesma vitalidade.
Considerando que afazeres cotidianos nos tornam superficiais e que a depressão,
em regra, nos torna realistas, parece bastante lógico que assim seja. Sabemos
que a existência sempre foi, sempre será vazia. O fato de isso nos angustiar
depende não da filosofia, mas de nossa disposição afetiva, de nossa química
cerebral — em última instância, de estarmos ou não aptos a lidar com a
realidade. Tendo tais detalhes em mente, podemos compreender mais claramente
por que se costuma pensar que niilistas são suicidas. Isso acontece porque
nossa própria visão de mundo é tão carregada de valores afetivos que, se
destruída, ainda que parcialmente, isso nos conduziria ao luto, que é dor. E
praticamente nenhuma visão de mundo continuaria intacta depois de sofrer uma
bela revisão que levasse em conta um critério tão fundamental quanto a
distinção entre as esferas subjetiva e objetiva da realidade.
Mas,
logicamente, todo indivíduo que se denomina niilista já superou essa fase de
reorganização mental e, portanto, não se sente mais ameaçado pelo fato de tudo
ser vazio. Entretanto, se nos colocarmos na posição daquele que afirma que
niilistas são suicidas, não teremos dificuldade em perceber a razão pela qual
pensa desse modo. A ideia de perdermos intencionalmente algo pelo qual temos
profundo afeto soa tão absurda, tão autodestrutiva, que seria semelhante à
ideia de matarmos nossos próprios amigos apenas para aprendermos a lidar com a
perda de entes queridos. Ou seja, um grande sacrifício na esfera afetiva que
não é de modo algum compensado pelo ganho na esfera intelectual. Mais que
natural, é inevitável que qualquer indivíduo se proteja de uma ideia capaz de
causar um prejuízo dessa magnitude à sua vida afetiva. Diante de uma ameaça
dessa natureza, sua profunda consideração pela verdade reduz-se a esta máxima:
a verdade que se dane! Então, para que alguém com uma visão florida da
realidade veja seu notável jardim murchar, basta um confronto com o niilismo
filosófico que, nessa perspectiva, já não pode ser considerado algo tão
inofensivo. Pois é possível que, por meio do pensamento, ao compreendermos
nossa condição, venhamos a entrar num estado de luto pela “morte da realidade”,
por assim dizer, já que para nós a realidade é nossa compreensão da realidade,
e a destruição dos alicerces de nossa cosmovisão pode ser algo bastante difícil
de administrar, sendo comum que haja episódios de ansiedade e angústia nesse
processo indigesto.
Em
nível emocional, quando passamos a entender o mundo como um sistema físico,
como algo impessoal, é como se com isso “matássemos” a realidade. Para
exemplificar, imaginemos a seguinte situação: estávamos pesquisando em uma
biblioteca e, por acaso, encontramos um documento com nosso nome. Ao lê-lo,
descobrimos que todos os nossos familiares na verdade não são seres humanos:
são máquinas pré-programadas para conviver conosco. Elas gostam de nós
automaticamente, desde o princípio. Até mesmo seus sentimentos são cálculos de
seus processadores centrais. Foi isso o que lemos no documento. Pois bem, mesmo
que tal compreensão não mudasse nada na prática, sabê-lo não seria
emocionalmente devastador? O sentimento de que tudo nunca passou de uma
fantasia nos esmaga. Agora basta perceber que não se trata de ficção alguma:
eles realmente são máquinas, e nós também. Todos são. A vida é um sonho dentro
de uma máquina. Diante disso, ficamos atônitos, perplexos, e “luto” é a melhor
palavra que nos ocorre para descrever esse sentimento de que algo morreu,
embora não saibamos dizer muito bem o quê.
Seja
a razão desse estado afetivo a perda de um ente querido ou a desestruturação de
nossa visão de mundo, a dificuldade central consiste em nos adaptarmos a uma
perda profundamente dolorosa, em percorrer uma fase de transição carente de
referenciais, em que precisamos realizar uma mudança radical em nós próprios.
Nesse estado transitório, o modo como pensamos e encaramos o mundo corresponde
exatamente ao niilismo, no qual tudo perde o sentido e a vida fica, por assim
dizer, “suspensa no nada”, perfeitamente consciente de si mesma e de sua
condição precária. Repudia-se a realidade subjetiva por diferentes motivos, mas
chega-se à mesma perspectiva: o abismo niilista, o óbvio. Claro que encarar a
realidade objetiva exige muita coragem, e a maioria dos indivíduos só se torna
capaz disso em situações extremas, em que a lucidez é imprescindível. Nas
demais situações, vivemos numa espécie de estado de torpor. Isso não é algo
necessariamente ruim. A realidade subjetiva pode nos causar sofrimento, mas
fugir dela não nos trará consolo algum. Apenas nos fará perceber a verdade com ainda
mais dureza. Como não há nada por detrás de nossas ilusões, a lucidez se torna
rapidamente insuportável.
A
consciência da indiferença da realidade nos chega como algo corrosivo, como um silêncio
que escarnece todos os nossos sonhos. Não há, portanto, para onde fugir: temos
de encarar nossa condição de existência em nosso elemento, a subjetividade.
Seria tolo pensar que fugir do planeta Terra e lançarmo-nos no vazio do espaço
seria um grande alívio aos problemas terrenos que nos afligem. Ficaríamos
apenas flutuando no nada. Esse distanciamento talvez nos permita ver as coisas
com alguma imparcialidade, mas não conseguimos permanecer nessa situação por
muito tempo. Asfixiados pelo tédio, oprimidos pela consciência da nulidade da
vida, logo retornamos à nossa bolha subjetiva, certos de que não há nada muito
interessante fora dela. Também seria útil entendermos por que há tanto
sofrimento envolvido em tais mudanças em nossa visão de mundo. Para nossa
infelicidade, nada há de especial nessa adaptação, apesar de ser comum ouvirmos
o contrário. O fato de tal processo ser penoso, por vezes esmagador, é uma
infelicidade natural à qual todos estamos sujeitos, tanto na esfera mental como
na física. Um dano grave causado a um membro, por exemplo, além de ser
extremamente doloroso, também requer um grande tempo de recuperação, pois os
tecidos lesionados precisarão ser literalmente reconstruídos pelo organismo,
célula por célula. Do mesmo modo, uma mudança drástica em nossa visão de mundo
ou nas circunstâncias em que estamos acostumados a viver acarreta uma mudança
física em nossos cérebros. Muitas ligações importantes entre neurônios terão de
ser feitas e outras desfeitas para que nosso sistema nervoso se adapte e seja
capaz de lidar com a nova situação, e o sofrimento não é mais que um indício do
quanto isso é fisiologicamente inconveniente, isto é, da quantidade de recursos
necessária para que seja feita tal “atualização”.
Sendo
que durante esse processo de adaptação encontramo-nos algo perdidos e
desorientados, a depressão e a lucidez decorrentes podem ser vistas como
medidas preventivas para que não partamos à ação antes que nosso cérebro esteja
familiarizado com a nova situação, evitando assim ações inadequadas e
possivelmente perigosas ao nosso bem-estar imediato. Seria como se
estivéssemos, desde sempre, acostumados a dirigir apenas carros, mas, numa
guinada do destino, fôssemos colocados diante de um veículo que não temos
nenhuma preparação para pilotar, como um ônibus espacial, por exemplo. Nessa
situação, nossa reação primária não seria pisar no acelerador e esperar que
tudo fosse como antes, pois sabemos que isso seria suicídio. Lúcidos,
debruçamo-nos demoradamente sobre o manual de instruções, remoemos sobre todas
as questões relevantes e, assim que nos sentimos preparados para tomar o
controle do veículo, partimos à ação, voltando a viver normalmente. Sem dúvida,
trata-se de algo que requer tempo, e nisso também há grande semelhança com os
danos aos tecidos.
Como,
em longo prazo, o niilismo é incompatível com a manutenção da vida, é bastante
comum ouvirmos que ele é apenas um “estado provisório”, algo a ser “superado”.
E isso está correto. Porém, não devemos confundir superar o niilismo prático
com refutar o niilismo teórico — flertando com aquele relativismo otimista que
parece um elogio à demência. A questão é somente o que se pode fazer apesar de
a existência ser oca, apesar de todo o nada, sem fugir da questão como
covardes. E superar o niilismo nada mais é que pensar em nós próprios como a
fonte última de valor e sentido de todas as coisas. Acostumarmo-nos a lidar com
tais assuntos sem extrapolar a esfera de nossa própria subjetividade. Na
prática, temos de superar o niilismo porque a realidade não se importa conosco
— ela nunca se compadecerá de nossa miséria. Quer estejamos certos ou errados,
ainda será preciso mantermos nossas barrigas cheias e nossos corpos aquecidos,
e isso significa que superá-lo é uma questão biológica, não um problema
filosófico. Se o niilismo a princípio nos paralisa, é apenas porque, em grande
parte, são ilusões que nos movem, e é inevitável que fiquemos temporariamente
atordoados ao nos darmos conta disso.
Contudo,
voltar a caminhar não equivale a superar o niilismo, e sim à aquisição da
capacidade de separar melhor nosso conhecimento de nossas necessidades
práticas, até que ambas as coisas voltem a funcionar normalmente, porém de
forma mais independente. Desse modo, a superação do niilismo diz respeito ao
seu efeito paralisante prático que torna a vida mórbida, não à sua incoerência
lógica; diz respeito ao fato de que é impossível justificar uma vida subjetiva
por meio do nada objetivo. E isso é realizado através da loucura, o único modo
por meio do qual podemos viver racionalmente num mundo absurdo. Contudo, não
devemos esperar nada muito extraordinário disso, já que a vida, em si mesma, é
um sistema completamente maluco. Essa “loucura” não é o mesmo que direito
irrestrito à estupidez, não é o mesmo que perder a razão. A loucura à qual nos
referimos é algo que atravessa a vida de ponta a ponta: nossa natureza. Ou
seja, trata-se de algo que conhecemos muito bem. São nossas pequenas fantasias humanas
que, apesar de todo o nada, nos permitem levar a vida adiante, ainda que isso
não faça sentido algum.