terça-feira, 17 de dezembro de 2024

PSICANÁLISE versus PSEUDOCIÊNCIA - ser ou não ser, eis a questão?

 


    A psicanálise, criada por Sigmund Freud no final do século XIX, é uma abordagem psicológica que visa explorar e tratar os processos mentais inconscientes. Freud propôs que o comportamento humano é influenciado por desejos e conflitos internos que frequentemente escapam à consciência. A psicanálise se baseia em métodos como a associação livre, interpretação dos sonhos e análise dos atos falhos para revelar esses processos inconscientes.

    Desde o seu surgimento, a psicanálise evoluiu e deu origem a várias escolas de pensamento, incluindo a psicologia analítica de Carl Jung, a psicologia individual de Alfred Adler e as teorias de desenvolvimento psicossexual de Erik Erikson. Apesar de suas contribuições para a compreensão do comportamento humano, a psicanálise tem sido alvo de críticas por sua falta de base científica sólida.

    O termo pseudociência refere-se a práticas ou crenças que se apresentam como científicas, mas que não seguem os métodos rigorosos e sistemáticos da ciência. Pseudociências muitas vezes carecem de evidências empíricas, não são passíveis de teste e refutação e não se beneficiam de revisões por pares ou escrutínio acadêmico. Alguns exemplos comuns de pseudociência incluem a astrologia, a homeopatia e algumas formas de medicina alternativa.

    A pseudociência pode ser prejudicial porque pode levar as pessoas a adotar práticas ineficazes ou até mesmo perigosas, acreditando que são baseadas em ciência. Além disso, a pseudociência pode minar a confiança pública na verdadeira ciência, causando confusão sobre o que é factual e comprovado versus o que é especulativo e não verificado.

    A classificação da psicanálise como pseudociência tem sido um ponto de debate entre cientistas e psicólogos. Alguns críticos argumentam que a psicanálise se enquadra na definição de pseudociência devido à sua falta de testes empíricos rigorosos e à dificuldade de verificar suas hipóteses. Por exemplo, muitos conceitos psicanalíticos, como o complexo de Édipo ou os mecanismos de defesa, são difíceis de medir ou observar diretamente.

    Além disso, a metodologia da psicanálise, que se baseia amplamente em estudos de caso e na interpretação subjetiva, é considerada por alguns como insuficientemente científica. A ausência de padrões claros para testar e refutar teorias psicanalíticas leva a questionamentos sobre sua validade e confiabilidade.

    Por outro lado, defensores da psicanálise argumentam que ela oferece insights valiosos sobre a mente humana e que sua abordagem qualitativa é complementada por métodos quantitativos em psicologia. Eles sugerem que, embora a psicanálise possa não se conformar às normas estritas das ciências naturais, ela ainda possui valor como uma ferramenta para a compreensão e tratamento dos processos mentais inconscientes.

    Apesar das críticas, a psicanálise fez contribuições importantes para a psicologia e outras disciplinas. Ela introduziu a noção de processos mentais inconscientes, que influenciam significativamente a teoria e a prática da psicologia moderna. A ideia de que muitos aspectos do comportamento humano são moldados por fatores inconscientes é amplamente aceita e estudada em várias áreas da psicologia.

    A psicanálise também influenciou a literatura, a arte, a filosofia e a cultura popular, oferecendo novas maneiras de interpretar a experiência humana. Além disso, conceitos psicanalíticos como transferência, contratransferência e resistência são usados em terapias modernas, contribuindo para a prática clínica contemporânea.

    Nos últimos anos, houve esforços para investigar empiricamente algumas das hipóteses psicanalíticas. Pesquisas neurocientíficas, por exemplo, têm explorado a base biológica de processos inconscientes e mecanismos de defesa, proporcionando um terreno comum entre a psicanálise e a neurociência. Estudos de imagem cerebral, como fMRI, têm mostrado que partes do cérebro associadas a memórias e emoções inconscientes são ativadas em situações que evocam conteúdo psicanalítico.

    Embora esses estudos não confirmem todas as teorias freudianas, eles ajudam a legitimar alguns aspectos da psicanálise ao fornecer evidências científicas que corroboram suas ideias. No entanto, a aplicação de métodos científicos rigorosos à psicanálise continua sendo um desafio significativo.

    Hoje, a psicanálise é uma das muitas abordagens terapêuticas disponíveis, coexistindo com terapias baseadas em evidências, como a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Embora a TCC seja amplamente aceita devido à sua forte base empírica, a psicanálise ainda é praticada e valorizada por muitos profissionais de saúde mental por sua profundidade e perspectiva única sobre o funcionamento mental.

    A relação entre a psicanálise e a pseudociência permanece complexa. Enquanto a psicanálise continua a ser criticada por sua falta de rigor científico, ela também é reconhecida por suas contribuições culturais e clínicas. O debate sobre o status da psicanálise como ciência ou pseudociência reflete uma tensão mais ampla entre abordagens qualitativas e quantitativas na pesquisa e prática psicológica.

    Enfim, a relação entre pseudociência e psicanálise é multifacetada e envolve uma consideração cuidadosa dos méritos e limitações de cada abordagem. A crítica à psicanálise como pseudociência destaca a importância de práticas baseadas em evidências e métodos científicos rigorosos. No entanto, a psicanálise continua a oferecer valiosas contribuições para a compreensão do comportamento humano e o tratamento dos processos mentais inconscientes.

A integração de abordagens qualitativas e quantitativas pode enriquecer a prática psicológica, combinando insights profundos da psicanálise com as evidências empíricas das terapias modernas. Dessa forma, a psicologia pode avançar como uma disciplina mais completa e multifacetada, atendendo melhor às necessidades complexas dos indivíduos.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

PSICOPATIA

 


Psicopatas não têm nenhum sinal físico que os identifiquem, nem internamente e muito menos externamente. O transtorno não é possível de ser diagnosticado por meio de um exame morfológico, por exemplo, nem com o indicativo de anormalidade estética. Mas muito pelo contrário: o psicopata ainda se faz passar por alguém comum. Defendendo esta ideia, o psiquiatra norte-americano Hervey Cleckley criou o termo “máscara da sanidade”, ao publicar um livro homônimo, em 1941, em que relata a descrição clínica mais influente da psicopatia do século 20. Pioneiro do estudo do transtorno, Cleckley acreditava que um psicopata pode parecer uma pessoa como qualquer outra e até mesmo interessante, mas usando uma máscara que esconde o transtorno mental. No entanto, até o mais articulado dos atores uma hora deixa a máscara cair.

 Diagnóstico difícil

Assim como qualquer transtorno, a psi­copatia somente pode ser diagnosticada por profissionais capacitados, isto é, especialistas no assunto – e mesmo assim, não é algo fácil. A capacidade de dissimulação do psicopata dificulta uma identificação rápida e precisa. Muitas vezes, é preciso diversas consultas e conversas para ter certeza do quadro. Além disso, os sinais podem ser confundidos com outros transtornos, o que pode levar à solicitação de exames para confirmar o distúrbio. O diagnóstico é dado por um profissional da saúde mental, que pode exigir testes psicológicos. Outras vezes, é recomendável um neurologista por alguns apresentarem sinais EEG (eletroencefa­lograma, exame que mede a atividade elétrica cerebral) anormais. A história do paciente é importante para o diagnóstico, mas, às vezes, o indivíduo mascara os fatos, o que leva o psiquiatra a pedir os testes e o EEG.

 Teste especial

Uma das ferramentas usadas pelos especialistas é o PCL-R (psychopathy checklist-revised) ou Escala Hare, um questionário elaborado pelo psicólogo canadense Robert D. Hare, na década de 1970, a fim de diagnosticar tendências comportamentais antissociais e a psicopatia. Com 20 questões, o método foi desenvolvido, a princípio, para avaliar pessoas acusadas de crimes, sendo até hoje usado em processos criminais. A pontuação, dada pelo especialista, vai do número 0, para quem não apresenta característica alguma, até o 24, con­siderado o grau máximo de psicopatia. O teste se dá em duas partes: uma entrevista com o indivíduo sob suspeita e uma revisão de seus registros – por mentirem muito, é preciso checar as informações no histórico familiar, profissional, escolar e criminal. O profissional que aplica o PCL-R deve analisar as características do paciente perante os itens do questionário que abrangem as relações interpessoais do sujeito, seu envolvimento afetivo ou emocional, respostas a outras pessoas ou situações, provas de desvio social e estilo de vida. Portanto, o material inclui aspectos fundamentais que ajudam a definir o psicopata, como vitimização, egoísmo e comportamento antissocial. Reconhecer previamente um sociopata é complicado, pois normalmente são muito estratégicos, inteligentes e ardilosos. Costuma-se dizer que, infelizmente, são reconhecidos apenas depois de terem co­metido algum ato lesivo.

 Apesar de somente especialistas serem aptos a identificarem um psicopata, é possível ficar atento em alguns hábitos no dia a dia daquela pessoa que deixa você com a pulga atrás da ore­lha. Quanto a sinais indicativos, pode haver aqueles em que se observa comportamentos lesivos e frequentes, manifestados por crianças, adolescentes e adultos, sem a consequência de qualquer comoção desse indivíduo diante dessas ações.

É importante observar como ele lida com seus impulsos. Acredita-se, na linguagem psicanalítica, que o psicopata é uma pessoa que congenita­mente nasceu sem o ‘superego’, ou seja, a parte da personalidade que serve como limitador e controlador dos impulsos que, livremente e sem qualquer controle, brotam do seu inconsciente.

Se você convive com o suspeito há bastante tempo, é ainda mais fácil notar que há algo de errado. Não raro, na infância, costumavam encantar facilmente adultos pela sua aparente docilidade e espontaneidade. Entretanto, já apresentavam traços de frieza, insensibilidade, intolerância à frustração e agressividade – que podem ser evidentes em condutas tais como mentir e maltratar outras crianças e animais

Identificar um psicopata é algo muito importante não só para que se possa procurar ajuda e tratamento, mas também para preservar a integridade de quem convive no mesmo ambiente da pessoa com o dis­túrbio. É preciso compreender que o transtorno de personalidade antissocial é um problema grave de saúde mental e que apresenta consequências importantes não só para quem sofre da psicopatia, mas para quem convive em seu entorno. Reconhecer os sinais é um dos passos para lidar melhor com quem tem esse transtorno, já que, muitas vezes, não é possível se afastar totalmente.

Sinais de psicopatia

Há diversos comportamentos e características que enquadram um indivíduo como portador do distúrbio. Porém, isso não significa que uma pessoa que apresenta alguns dos sinais seja, necessariamente, um psicopata. E vice-versa: uma pessoa pode ter o transtorno de personalidade antissocial e não apresentar alguns dos sinais. De qualquer forma, é indicado prestar atenção nas seguintes características listadas pelo psiquiatra Hervey Cleckley:

        Atração superficial;

        Boa inteligência;

        Inexistência de delírios ou outros sinais de pensamento irracional;

        Ausência de nervosismo;

        Ausência de confiabilidade;

        Falta de veracidade;

        Inexistência de remorso ou vergonha;

        Comportamento antissocial;

        Julgamento precário;

        Incapacidade de aprender com a experiência;

        Inexistência de correspondência nas relações interpessoais;

        Egocentrismo patológico;

        Incapacidade de amar;

        Vida sexual impessoal, corriqueira e pouco integrada;

        Incapacidade de seguir um plano de vida.


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

AUTO CONHECIMENTO - O MAIOR DESAFIO DA MENTE HUMANA

 


Qual é o nosso verdadeiro tamanho em relação ao desenvolvimento humano? Será que somos potencialmente maiores e bem pouco se enxerga a respeito? Não ver o prêmio futuro pode causar desânimo e até oposição frente ao exigido e essencial exercício do crescimento que se tem no presente? Nada é de graça!

O que pode nos levar a perceber tal possibilidade de avanço para que o estímulo resultante nos impulsione em direção a um nível evolutivo sem precedentes, superando as lentas passadas com as quais temos caminhado através da estrada da vida? Para tratar sobre o processo evolutivo, é prudente lançar mão da teoria darwinista encontrada no livro “A origem das espécies”, a qual atribui ao tempo, o acaso e a seleção natural o resultado daquilo que hoje somos.

A valiosa aptidão que se adquire faculta ao ser humano (e às outras espécies) a possibilidade de manter-se vivo e ainda transmitir tais informações à sua descendência. No entanto, esbarra-se em uma delicada e complexa questão: como foi possível ter-se dado a gênese de tudo que conhecemos sem se levar em conta um criador com a necessária capacidade de planejar e concretizar? Alguns pontos permanecem obscuros sem a devida análise, tais como as capacidades de desenvolvimento preexistentes (semelhantes aos típicos softwares da informática): desenvolvimento do apego para o convívio; aquisição da linguagem; aprendizagem do saber e formação da inteligência; constituição do jeito ético de ser; eclosão das muitas consciências; noção e sentimento espiritual, por exemplo.

As discussões são travadas, infelizmente, em planos distintos e isolados, com rara chance de conciliação. Vê-se orgulho, teimosia, fanatismo e cegueira obstruírem o acesso ao merecido conhecimento. Tal sapiência é capaz, a propósito desta reflexão, de promover maior consciência e melhor desempenho na escalada rumo à maturidade pessoal que hoje é pobremente encontrada no convívio social. Não obstante, é possível detectar algumas movimentações em prol de novas e interessantes perspectivas. Em 1993, Phillip Johnson, um professor da Universidade da Califórnia, reuniu alguns estudiosos de diferentes áreas para que se debatesse o tão polêmico assunto. Dentre alguns aspectos lá refletidos, destacou-se que havia uma lacuna não preenchida por Charles Darwin. O fato é que, acerca da primeira vida primitiva, segundo o que se concluiu, não seria possível à seleção natural atuar antes da existência da primeira célula viva.

A seleção natural só atua sobre organismos capazes de se reproduzirem. Então, o que causou, inteligentemente, o início da vida? A tal indagação, respondeu-se com o que se denominou de “Teoria do Design Inteligente”, condição anterior à existência. Assim, é possível atribuir, de modo mais equilibrado, à maneira de cada lado na ferrenha contenda, uma nova e mais justa explicação (ainda que temporária, pois sabemos muito pouco ainda a respeito de muita coisa) para a origem das espécies e sua evolução.

Vale a pena, ainda, lembrar da afirmação de Darwin na qual não lhe parecia existir qualquer incompatibilidade entre a aceitação da teoria evolucionista e a crença em Deus. Será que há um esboço, ao menos, de harmonização entre as partes concorrentes? Cabe, pois, ponderar exaustivamente acerca de tal proposta, repensando, portanto, o que somos verdadeiramente no aqui e agora, enquanto seres carecedores de considerável consciência e desenvolvimento. Mas cumpre-se salientar o gigantesco potencial a ser extraído através do necessário e pertinente exercício. Há muito mais dentro de nós do que se pode perceber, mas cabe a cada um se autoconhecer por meio da auto avaliação e tirar as próprias conclusões com o passar do tempo.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE A MENTE AUTOENGANADORA

Em meio a tantos conflitos mundo afora, o homem, aquele bicho tartamudeante que se conhece emergindo da Idade da Pedra, procura o seu caminho, procura a si mesmo. Nas várias definições conhecidas, ele é o animal que ri, o bicho econômico, o “retrato de Deus”, o fabricante de instrumentos. Já há mesmo quem tenha dito, estabelecendo o quão é absurdo o homem, que de todos os animais é o único que se suicida, que atenta contra a própria sobrevivência, o instinto mais arraigado na natureza animal.

Decerto nenhuma dessas definições é totalmente verdadeira...ou, talvez, cada uma diga um pouco da sua verdade. Chafurdando na mais bruta animalidade, erguendo-se às maiores alturas, humilde e orgulhoso, rindo e chorando, possessivo e desprendido ao mesmo tempo, o homem é uma organização demasiadamente complexa para caber, todo inteiro, numa só formula definidora.

Como não há fórmula que o defina, não há solução à vista para a sua felicidade. Os horizontes atuais não nos garantem que se possa equaciona-lo com precisão e, em consequência, não podemos supor qual o estado ideal em que ele se realizaria plenamente, desenvolvendo todas as suas potencialidades e sendo feliz como até agora não o foi.

Não é segredo que vivemos numa sociedade competitiva que nos obriga a fazer o que não gostamos, a fazer trabalhos que impedem qualquer realização humana. É uma corrida desumana para resultados aparentes, para nos afirmarmos, para nos rodearmos de coisas e, muitas vezes, sem transcendência espiritual. Muitas vezes, conseguimos perceber que nossa vida interior é dirigida pelo que há a nossa volta e não tem, na realidade, uma meta.

Helvécio, um enciclopedista, considerado um radical materialista, principal pensador do utilitarismo, na linha de John Locke, entendia que todos os atos são ditados pelo egoísmo e pelo amor próprio. A virtude é o egoísmo munido de óculos de alcance. A consciência não é a voz de Deus, mas o medo da polícia, o sedimento deixado em nós pelas inibições com que pais, mestres e livros inundaram a nossa alma em formação.

Desde que os nossos ancestrais pré-históricos iniciaram o desenvolvimento do neocórtex, ou camada de massa cinzenta cerebral mais recente, cuja função diz respeito ao uso da razão, muita coisa mudou – já existiam outras estruturas primitivas relacionadas ao instinto e às emoções. Saltos tecnológicos conduziram o homem até ao quase inimaginável. Da pedra lascada à modificação genética, o mundo foi testemunha de cada avanço obtido através do pensamento e da ousadia. Mas tal avanço revela dois aspectos dignos de nota: a evolução, por um lado, gerou o convívio regrado entre as pessoas pelas determinações do que se convencionou chamar de sociedade, e, por outra parte, as razões que levaram o ser humano a empreender (e aceitar), obstinadamente, tamanha empreitada.

Indaga-se, pois: que motivos impulsionaram o homem a inventar tanto? É possível estabelecer facilmente duas justificativas. Uma delas é o conforto, pois nós somos atraídos pelo prazer e inversamente repelimos o desprazer, reforçando, portanto, o apego ao bem-estar que deriva de cada invento, além da economia de energia e acomodação pessoais que se estabelecem inevitavelmente. Outra prova versa sobre o desenvolvimento humano, considerando-se tanto a aprendizagem quanto a mudança - elementos fundamentais à sobrevivência e ao progresso evolutivo -, sem as quais seria impossível a convivência humana. Inicialmente, o ser humano teve que lidar do modo mais grosseiro com os reveses impostos pela vida. Para melhorar a condição em que se encontrava precisou pensar e aprimorar o intelecto. Eis o preço cuja moeda foi a reflexão.

Todavia, quanto mais penetrava no novo universo da sapiência, tanto mais se abriam os seus olhos diante de novos problemas mais sutis e menos motivadores: a natureza mostrava-se nua e crua para aquele que conseguira superar alguns graus de inconsciência a esse respeito. Do ser tosco e sombrio que ficava para trás, em razão do homem que desabrochava na direção da luz do saber, rompeu-se a cegueira que camuflava a causticante realidade. Nasceu daí uma dor, profunda e agonizante, levando o seu autor a ter de se defender. Eis a maçã bíblica do paraíso.

Porquanto após trágico diagnóstico, restava ao enfermo o automedicamento cuja cura lhe asseguraria a retomada do prazer roubado pela olhadela que dera na inoportuna realidade. Foi então que, sem se dar conta, passou a fazer uso do autoengano, tornando as coisas mais suaves, pelo menos na sua aparência. Pelo menos enquanto lhe fosse permitido ludibriar a si próprio.

E o engodo deu certo. O entorpecimento resultante foi bom. O pesar febril cedeu. Mas a infecção da ignorância não arredou o pé. O aconchego morno das vantagens relacionadas ao bem-estar e a acomodação que se sucederam ajudou a sustentar tamanha arapuca. As estratégias se sofisticaram, e de invenções como o agrupamento social das pessoas, legalizando o poder, o controle, e a submissão (e a aspiração para tal), o suplício original revestiu-se de roupagem aceitável. Com o tempo, cada invento, o casamento, por exemplo, incorporou-se tão enraizadamente que o artificial se transformou em natural. É infantil, mas até hoje é percebido assim.

Entretanto, a inconsciência ainda domina o homem. Para sair dela é preciso enfrentar, mesmo sob forte dor, a realidade que o psiquismo teima em negar. O próprio fato de o ser humano ser bem pouco consciente sobre o seu próprio estado já é uma evidência da escuridão em que se encontra mergulhado. Pior: se auto iludir, convencido de que se situa em um alto grau de consciência, pouco lhe criará incômodo, e, assim, dificilmente sairá do lugar, restando atrasado e bastante inconsciente dos deveres e direitos que têm para consigo mesmo. Não sem antes retirar, reflexiva e gradativamente, o manto do entorpecimento que lhe atrasa consideravelmente a própria evolução rumo à maturidade real e não auto enganada.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE A MORTE

 


Através da história do homem, a ideia da morte propõe o mistério eterno que é o centro de alguns dos mais importantes sistemas de pensamentos filosóficos e religiosos DA humanidade. Por exemplo, a Cristandade, onde o significado da vida é consumado em seu termo e o existencialismo e sua preocupação impressionante com o temor e a morte. Este modo de ver tem enormes consequências práticas em todas as esferas da vida, econômica e política, bem como moral e religiosa.

Uma das mais distintas características do homem, em contraste com as outras espécies, é a sua capacidade de compreender o conceito de uma futura e inevitável morte. Em Química e Física, um fato é quase sempre determinado pelos eventos que o precederam. No ser humano, o comportamento presente depende não somente do passado, mas, da orientação para com acontecimentos futuros. De fato, o que uma pessoa procura vir a ser pode, algumas vezes, decidir ao que ela dá atenção em seu passado. O passado é uma imagem que muda com a imagem que temos de nós mesmos no presente.

A morte é algo que acontece a cada um, óbvio. Mesmo antes de sua chegada, ela é uma presença ausente. Muitos afirmam que o temor da morte é uma reação universal e que ninguém está livre dela. Quando paramos para considerar o assunto, a noção da singularidade e da individualidade de cada indivíduo adquire significado completo somente ao conceber que a morte é certa. E, é neste mesmo encontro com a morte que cada um descobre sua ânsia pela imortalidade.

Freud postulou a presença de um inconsciente desejo da morte nas pessoas, que ele ligou com certas tendências para a autodestruição. Melanie Klein acreditava que o medo da morte está na raiz de todas as ideias persecutórias e, por isso indiretamente, de toda a ansiedade. Paul Tillich, o teólogo, cuja influência se fizeram sentir na psiquiatria americana, fundamentou a sua teoria da ansiedade no postulado ontológico de que o homem é finito, sujeito ao não-ser. A insegurança bem pode ser um símbolo da morte. Qualquer perda pode representar uma perda total. Jung percebeu a segunda metade da vida como estando dominada pelas atitudes do indivíduo para com a morte. Em síntese, é possível observar um crescente reconhecimento da relação entre a doença mental de alguém e sua filosofia de vida e de morte.

Temas e fantasias sobre a morte são proeminentes em psicopatologia. Exemplos existem de que ideias sobre a morte são periódicas em alguns pacientes neuróticos e nas alucinações de muitos indivíduos psicóticos. Há o estupor do paciente catatônico, algumas vezes comparado a um estado de morte, e as ilusões de imortalidade em certos esquizofrênicos. A negação esquizofrênica da realidade pode funcionar, em certos casos, como um obstáculo mágico se não como anulação da possibilidade a morte. Se viver leva inevitavelmente a morte então a morte pode ser desviada pelo não viver. Também, um grupo de psicanalistas acreditava que uma das principais razões pela qual as medidas de choque produziam efeitos positivos nos pacientes era que estes tratamentos forneciam um tipo de experiência fantasista de morte-e-renascimento. É relevante notar, contudo, que mesmo quando a ansiedade sobre a morte é discutida na literatura, é ela com frequência interpretada essencialmente como um fenômeno derivado ou secundário, frequentemente como um aspecto mais facilmente suportável do temor à castração, ou como a ansiedade de separação ou perda do objeto amado.

Outras investigações de atitudes para com a morte podem enriquecer e aprofundar a compreensão das reações de boa ou má adaptação ao estresse e da teoria da personalidade. A adaptação das pessoas mais velhas à ideia da morte, por exemplo, pode ser um aspecto crucial do processo de envelhecimento. O estudo das atitudes para com a morte na pessoa seriamente doente e moribunda, uma experiência in natura, pode prover novos insights das maneiras com que diferentes indivíduos enfrentam a ameaça. Numa perspectiva mais ampla, não apenas a psicologia, mas a cultura ocidental, na presença da morte, tende a correr, esconder-se, e buscar refúgio em uma linguagem eufemística, no desenvolvimento de uma indústria que tem, como interesse maior, a criação de maiores qualidades naturais na morte. A preocupação com a morte tem sido relegada ao território proibido até aqui ocupado por moléstias terminais.

Com o enfraquecimento das crenças relativas à pecaminosidade do corpo e a certeza de uma vida após a morte, parece haver um concomitante decréscimo na capacidade das pessoas de contemplar ou discutir a morte natural. Não obstante, as investidas de duas guerras mundiais, junto com a herança de um holocausto nuclear potencial, têm ajudado  a empurrar a temporalidade da vida cada vez mais para o primeiro plano. O movimento existencialista tem sido particularmente conspícuo em redescobrir a morte como um tema filosófico e um problema no século XXI. Num certo sentido, a história da filosofia existencial, em suas maiores fases, é uma exegese da experiência humana da morte. A imagem do homem que surge é de uma criatura limitada pelo tempo.

O existencialismo de nosso século, expresso nas filosofias de Simmel, Sheler, Jaspers e Heidegger colocou a experiência da morte perto do centro de suas análises da condição humana. Tem acentuado a morte como uma parte constitutiva, antes que o mero fim da vida, e salientou a ideia que somente pela integração do conceito de morte dentro do eu torna-se possível uma autêntica e genuína existência. O preço de negar a morte é a ansiedade indefinida, a autoalienação. Para compreender-se completamente, o homem tem de enfrentar a morte, tornar-se cônscio da morte pessoal. O existencialismo não é, certamente uma técnica psicoterapêutica e não tem pretensões nesta direção.

Na resposta à pergunta "O que a morte significa para você?" dois pontos de vista emergem. Um vê a morte numa veia filosófica, como o fim natural do processo vital. O outro é de natureza religiosa, percebendo a morte como a dissolução da vida corporal e, na realidade, o começo de uma nova vida. Estas óticas, num certo sentido, amplamente espelha a interpretação da morte na história do pensamento ocidental. Destes dois polos opostos, podem se derivar duas éticas contrastantes. De um lado, a atitude para com a morte é a aceitação estoica ou cética do inevitável, ou mesmo a repressão do pensamento de morte pela vida; do outro, a glorificação idealista da morte é a que proporciona significado a vida, ou é a pré-condição para a verdadeira vida do homem. Esta descoberta põe em destaque a profunda contradição que existe no pensamento sobre o problema da morte. A tradição pressupõe que o homem termina com a morte e que, ao mesmo tempo, é capaz de continuar, de algum outro sentido, além da morte. A morte é vista, de um lado, como uma parede, o desastre pessoal extremo, e o suicídio como o ato de uma mente doentia; de outro lado, a morte é considerada como uma porta de entrada, um ponto no tempo no caminho da eternidade.

O grau de perturbação mental per se nos pacientes, aparentemente, possui pequeno efeito sobre suas atitudes globais para com a morte. Nem a neurose, nem a psicose produzem atitudes para com a morte que não possam ser encontradas em sujeitos normais. O distúrbio emocional aparentemente serve para trazer atitudes específicas mais claramente para o primeiro plano. Estes resultados reforçam as descobertas de Bromberg e Schilder. Incidentalmente, poucas pessoas normais visualizam sua própria morte em decorrência de um acidente. Isto se opõe às descobertas de que uma boa proporção dos pacientes mentalmente enfermos visualiza sua morte por efeito da "pane num avião", "por atropelamento”, "de assassinato" ...

Quando solicitada a expressar uma preferência quanto à "maneira, lugar e tempo da morte, uma maioria esmagadora gostaria de morrer rapidamente e com pouco sofrimento - pacificamente, dormindo. Muitos queriam ter tempo suficiente para que pudessem fazer as despedidas da família e amigos. "Em casa" e na "cama" são especificamente mencionados como locais favoritos para morrer. Há, naturalmente, idiossincrasias pessoais - "num jardim", "contemplando o oceano", "numa rede em dia de primavera".

Com referência ao tempo da morte, as pessoas desejam morrer à noite, porque "significa menos problemas para todos os interessados", "pouco rebuliço". A escolha da noite, afora o pacífico final da vida considerado, que ela sugere, tem muita riqueza de sugestão simbólica. Homero, na Ilíada, alude ao sono (hypnos) e à morte (thanatos) como irmãos gêmeos, e muitas das preces religiosas entrelaçam as ideias de sono e morte. Os judeus ortodoxos, por exemplo, ao despertar pela manhã agradecem a Deus por tê-los restaurado para a vida novamente.

A pessoa religiosa, quando comparada com o indivíduo não religioso, é pessoalmente mais temerosa da morte. O indivíduo não religioso teme a morte porque a família pode não estar prevenida para tal ou porque deseja completar certas coisas ainda não vividas. A ênfase está no temor da descontinuidade da vida na Terra - o que está sendo deixado para trás - em vez de naquilo que poderá vir a acontecer depois da morte. A ênfase para a pessoa religiosa é dupla. Preocupa-se com assuntos post-mortem - ''posso ir para o inferno", "tenho pecados para expiar ainda” - bem como com a cessação das presentes experiências terrestres. Os dados indicam que mesmo a crença de ir para o paraíso não é um antídoto suficiente para pôr fim ao medo pessoal da morte de algumas pessoas religiosas. Esta constatação, juntamente com o forte temor da morte expresso em anos passados por um número substancial de indivíduos inclinados à religiosidade, pode refletir um uso defensivo da religião por parte de algumas pessoas. De modo correspondente, a pessoa religiosa sustenta uma orientação mais significativamente negativa para com os anos mais avançados da vida do que o faz a correspondente pessoa não religiosa.

A maturidade humana traz consigo um reconhecimento de limite, que é um notável avanço no autoconhecimento. De certa maneira, a disposição para morrer aparece como uma necessária condição de vida. Ninguém está totalmente livre em qualquer ação enquanto for comandado por uma inescapável vontade de viver. Neste contexto, os riscos diários da vida, por exemplo dirigir na cidade, fazer uma viagem aérea, perder a vigilância ao dormir, tornam-se formas de quase extravagante insensatez. A vida não nos pertence genuinamente até que possamos renunciar a ela. Montaigne penetrantemente observou que "somente o homem que não mais teme a morte deixou de ser um e cravo”.

Para concluir: o nascimento de um homem é um evento incontrolável na sua vida, mas a maneira de sua partida da vida guarda uma definida relação com sua filosofia de vida e morte. Está enganado aquele que considerar a morte como um acontecimento puramente biológico. A vida não é verdadeiramente compreendida nem completamente vivida a não ser que a ideia de morte seja encarada com honestidade. Há uma premente necessidade de informação mais fidedigna e sistemática de estudo controlado na área. Esta é uma área em que as formulações teóricas não têm deixado atrás de si um corpo acumulativo de dados descritivos e empíricos. A pesquisa sobre o significado da morte e o ato de morrer podem realçar a compreensão do comportamento do indivíduo e fornecer uma porta de entrada complementar para uma análise das culturas.

Alegria, amor e felicidade provêm indícios igualmente válidos para a realidade e o ser. Como Gardner Murphy perspicazmente salientou, está longe de estar estabelecido que todo enfrentamento da morte represente necessariamente proveito para a saúde mental.


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

CARL JUNG E A SUA VISÃO SOBRE ARQUÉTIPOS

 


A psicanálise e os arquétipos estão profundamente interligados, especialmente quando analisamos o papel que ambos desempenham na compreensão do inconsciente e na formação da identidade humana. A psicanálise, originada com Freud, concentra-se no estudo do inconsciente individual e nas forças psíquicas que moldam o comportamento, enquanto o conceito de arquétipos, desenvolvido por Jung, aponta para padrões universais e atemporais da psique humana, que transcendem a experiência individual. Esta relação entre a psicanálise freudiana e a psicologia analítica junguiana oferece uma rica perspectiva sobre a profundidade da mente humana, os símbolos que ela produz e como essas estruturas inconscientes afetam a realidade cotidiana.

 

O inconsciente freudiano: estrutura psíquica e simbolismo

Freud, ao formular a psicanálise, introduziu o conceito de inconsciente, uma camada profunda da mente onde desejos, traumas, memórias e impulsos reprimidos residem. Para ele, muitos desses conteúdos inconscientes, especialmente relacionados à sexualidade e à agressividade, não são diretamente acessíveis à consciência, mas exercem uma influência significativa sobre os pensamentos, comportamentos e emoções. Freud dividiu a psique humana em três componentes principais:

Id: a parte mais primitiva e instintiva da mente, regida pelo princípio do prazer e composta por impulsos inconscientes.

Ego: o mediador entre o id e o superego, operando de forma consciente e inconsciente para lidar com a realidade.

Superego: a parte da mente responsável pela moralidade e normas sociais internalizadas, reprimindo os impulsos do id.

Na visão de Freud, o inconsciente manifesta seus conteúdos reprimidos através de sonhos, atos falhos e sintomas neuróticos. Os sonhos, em particular, eram vistos como "a via régia para o inconsciente", onde símbolos surgiam como representações disfarçadas de desejos inconscientes. Freud, no entanto, considerava que esses símbolos estavam enraizados nas experiências e desejos pessoais do indivíduo, principalmente relacionados à infância e às dinâmicas familiares.

 

Jung e a psicologia analítica: o inconsciente coletivo e os arquétipos

Embora Jung tenha iniciado sua carreira como seguidor de Freud, ele divergiu em vários postos-chaves, especialmente no que tange à natureza do inconsciente. Enquanto Freud focava no inconsciente individual, Jung propôs a existência de um inconsciente coletivo, uma camada da psique que não se limitava às experiências pessoais, mas continha imagens e símbolos que eram universais a todos os seres humanos.

Dentro desse inconsciente coletivo, Jung identificou os arquétipos, que são padrões de comportamento, ideias e símbolos presentes em todas as culturas e sociedades ao longo da história. Esses arquétipos são figuras primordiais que se repetem em mitos, religiões, contos de fadas, e também em sonhos e fantasias individuais. Entre os principais arquétipos descritos por Jung, temos:

Herói: representa o indivíduo que enfrenta desafios e ultrapassa obstáculos em busca de um propósito ou realização maior.

Sombra: simboliza os aspectos reprimidos ou desconhecidos do eu, que muitas vezes incluem traços negativos ou inaceitáveis, mas que são essenciais para a totalidade da psique.

Grande Mãe: um arquétipo que simboliza o cuidado, a nutrição e a fertilidade, mas também pode ter aspectos sombrios, como possessividade e destruição.

Sábio: representa a figura do mentor ou guia, uma fonte de sabedoria e conselhos, tanto internamente quanto externamente.

Trickster: um arquétipo que encarna o caos, a transformação e o imprevisível, desafiando normas e regras estabelecidas.

Jung acreditava que esses arquétipos não eram meras criações culturais, mas emergiam de forma espontânea da psique humana, refletindo necessidades, dilemas e potencialidades universais. Ele também via os arquétipos como aspectos fundamentais da jornada de individuação, o processo pelo qual o indivíduo se torna plenamente quem é, integrando todas as facetas da personalidade, incluindo as partes inconscientes.

 

Comparação entre Freud e Jung: diferenças e similaridades

Tanto Freud quanto Jung estavam profundamente interessados no funcionamento do inconsciente, mas suas abordagens apresentavam diferenças marcantes.

Freud:

- O inconsciente freudiano é mais individualizado, com foco nas experiências pessoais, traumas e desejos reprimidos.

- Os símbolos psíquicos, segundo Freud, estão relacionados principalmente à dinâmica sexual, agressiva e aos conflitos do desenvolvimento infantil.

- A psicanálise freudiana se concentra na resolução dos conflitos internos através da interpretação de sonhos e da análise da resistência e transferência durante a terapia.

 

Jung:

- O inconsciente de Jung vai além do pessoal, incluindo o inconsciente coletivo, onde residem os arquétipos, comuns a todos os seres humanos.

- Os símbolos junguianos têm uma natureza mais arquetípica e universal, conectando o indivíduo a mitos e narrativas ancestrais.

- A terapia junguiana foca na exploração desses símbolos para promover o processo de individuação e a integração da totalidade psíquica.

 

Apesar dessas diferenças, ambos reconheciam o poder dos símbolos e imagens inconscientes na formação do comportamento humano. Freud via esses símbolos principalmente como expressão de desejos reprimidos, enquanto Jung os entendia como manifestações de padrões arquetípicos mais profundos.

 

Arquétipos e psicanálise: a aplicação clínica

No contexto clínico, a compreensão dos arquétipos pode enriquecer a prática psicanalítica. Embora a psicanálise freudiana tenha suas próprias ferramentas interpretativas, como a análise dos sonhos e dos mecanismos de defesa, a introdução dos arquétipos junguianos oferece uma nova lente para a análise dos símbolos e comportamentos recorrentes nos pacientes.

Por exemplo, em uma análise freudiana, um paciente que frequentemente sonha com batalhas ou desafios pode ter esses sonhos interpretados como expressões de conflitos internos reprimidos, possivelmente relacionados a dinâmicas familiares ou desejos inconscientes. Já na abordagem junguiana, esse mesmo paciente pode estar acessando o arquétipo do Herói, uma figura que surge para representar o processo de superação e transformação, conectando o paciente a narrativas mitológicas mais amplas.

Essa combinação de abordagens psicanalíticas e arquetípicas permite uma análise mais rica e multifacetada da psique humana, oferecendo ao paciente a oportunidade de explorar não apenas suas experiências individuais, mas também sua conexão com padrões universais e mitológicos que permeiam a história humana.

 

Arquétipos na cultura contemporânea: mitos modernos

Os arquétipos descritos por Jung não estão confinados ao passado distante ou às mitologias antigas. Eles continuam a se manifestar na cultura contemporânea, especialmente em filmes, literatura, e histórias em quadrinhos. Personagens de super-heróis, por exemplo, frequentemente encarnam o Herói arquetípico, enquanto vilões podem representar a Sombra, desafiando o herói e obrigando-o a confrontar seus próprios medos e fraquezas.

Além disso, a cultura moderna é repleta de figuras que personificam arquétipos como o Trickster (comediantes, personagens subversivos e transformadores sociais) ou a Grande Mãe (em figuras que representam cuidado e nutrição). Essas narrativas contemporâneas refletem a contínua relevância dos arquétipos no inconsciente coletivo e sua capacidade de fornecer sentido e estrutura para as experiências humanas.

A relação entre a psicanálise e os arquétipos revela a complexidade e profundidade da psique humana. Enquanto a psicanálise freudiana se concentra na exploração dos desejos inconscientes individuais, a psicologia analítica de Jung amplia essa visão ao incluir os arquétipos universais que moldam nossas experiências coletivas. Juntas, essas abordagens oferecem uma compreensão rica e integrada do inconsciente, permitindo que tanto terapeutas quanto pacientes acessem as camadas mais profundas da mente humana, promovendo cura, autocompreensão e crescimento pessoal.

Assim, a conexão entre a psicanálise e os arquétipos transcende a mera análise de sonhos ou comportamentos, envolvendo uma jornada simbólica e arquetípica que busca não só resolver conflitos, mas também integrar o ser humano em sua totalidade, dentro de um contexto maior de significado e propósito.


sexta-feira, 20 de setembro de 2024

NEUROTICISMO NÃO É NEUROSE

 


Neuroticismo

um olhar profundo sobre o traço de personalidade e suas implicações

O neuroticismo, um dos cinco principais traços de personalidade definidos pelo modelo dos "Cinco Grandes Fatores" (ou Big Five), desempenha um papel crucial na forma como os indivíduos experimentam e respondem ao mundo ao seu redor. Caracterizado por uma maior predisposição a vivenciar emoções negativas, o neuroticismo influencia significativamente a maneira como as pessoas lidam com o estresse, suas relações interpessoais, e até mesmo sua saúde mental e física. Neste texto, vamos explorar detalhadamente o que é o neuroticismo, suas manifestações, como ele afeta a vida cotidiana, e as implicações de níveis elevados desse traço na saúde e no bem-estar. O neuroticismo é definido como uma propensão psicológica a experimentar emoções negativas com maior frequência e intensidade. Pessoas com altos níveis de neuroticismo tendem a ser mais sensíveis ao estresse e a reagir de forma mais intensa a eventos negativos, muitas vezes percebendo situações cotidianas como ameaçadoras ou desafiadoras. Essas pessoas costumam experimentar estados emocionais como ansiedade, depressão, frustração e raiva com mais regularidade do que aquelas com baixos níveis de neuroticismo. No outro extremo do espectro, indivíduos com baixos níveis de neuroticismo são mais emocionalmente estáveis, lidando de maneira mais tranquila com desafios e estresses diários. Eles são menos propensos a experimentarem grandes oscilações de humor ou a desenvolverem quadros de ansiedade e depressão, o que não significa que não enfrentem dificuldades, mas sim que suas respostas emocionais tendem a ser menos intensas e duradouras. O neuroticismo pode se manifestar de várias formas, muitas vezes permeando diferentes áreas da vida de uma pessoa. Entre as principais características associadas a esse traço, podemos destacar:

- Ansiedade crônica: Indivíduos com alto nível de neuroticismo são propensos a preocupações constantes. A ansiedade pode ser tanto uma resposta a situações específicas quanto um estado persistente e indefinido.

- Irritabilidade e frustração: Pequenas contrariedades podem gerar reações exageradas, resultando em sentimento de frustração e raiva.

- Tendência à depressão: A experiência constante de emoções negativas pode levar à depressão, já que os altos níveis de neuroticismo estão associados a uma maior vulnerabilidade para transtornos de humor.

- Autocrítica excessiva: Pessoas com esse traço tendem a ser extremamente autocríticas, frequentemente duvidando de suas próprias capacidades e se preocupando com falhas ou erros do passado.

- Baixa autoestima: O neuroticismo pode gerar um ciclo vicioso, onde as emoções negativas influenciam negativamente a forma como a pessoa se vê, resultando em uma autoestima fragilizada.

As pessoas com altos níveis de neuroticismo podem enfrentar desafios significativos em suas relações interpessoais. A sensibilidade emocional exacerbada pode fazer com que elas interpretem interações neutras ou levemente negativas como ameaçadoras ou hostis. Essa interpretação exagerada dos comportamentos dos outros pode criar conflitos, mal-entendidos e tensão, dificultando a construção de relacionamentos saudáveis e duradouros. Além disso, o neuroticismo pode levar a uma dependência emocional nas relações, onde a pessoa busca constante validação e apoio para lidar com suas próprias inseguranças. Em um contexto de relacionamentos românticos, essa necessidade de reafirmação contínua pode desgastar o parceiro, gerando frustrações mútuas. Por outro lado, nem todos os aspectos do neuroticismo são necessariamente negativos para as relações. Algumas pesquisas sugerem que pessoas com esse traço podem ser mais sensíveis às necessidades emocionais dos outros, demonstrando empatia e cuidado. Contudo, isso depende muito da forma como o neuroticismo se manifesta em cada indivíduo. Não é surpreendente que o neuroticismo tenha uma forte correlação com a saúde mental, uma vez que esse traço está diretamente ligado à experiência de emoções negativas. Altos níveis de neuroticismo são frequentemente associados a transtornos como:

- Ansiedade generalizada

- Depressão maior

- Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)

- Transtornos obsessivo-compulsivos

A relação entre neuroticismo e esses transtornos é bidirecional. Pessoas com altos níveis desse traço estão mais propensas a desenvolver esses problemas de saúde mental, e, por outro lado, a presença de um transtorno pode exacerbar as características neuroticistas. Estudos sugerem que pessoas com altos índices de neuroticismo têm uma resposta biológica ao estresse mais intensa, o que pode aumentar a produção de hormônios como o cortisol, agravando o impacto de fatores estressores. Além dos efeitos na saúde mental, o neuroticismo também pode impactar a saúde física. Indivíduos com níveis elevados desse traço tendem a ter maiores índices de inflamação crônica, o que pode contribuir para uma série de condições de saúde, incluindo doenças cardiovasculares. O estresse crônico, comum entre pessoas altamente neuróticas, está associado a uma imunidade comprometida, maior propensão a desenvolver diabetes, hipertensão, e até a uma menor expectativa de vida. Uma das explicações para esse efeito prejudicial na saúde física está no comportamento das pessoas com altos níveis de neuroticismo. Elas são mais propensas a recorrer a estratégias de enfrentamento prejudiciais, como comer em excesso, fumar, consumir álcool em excesso ou evitar exercícios físicos. Esse estilo de vida contribui diretamente para o desenvolvimento de problemas de saúde. No ambiente de trabalho, o neuroticismo pode ser tanto uma desvantagem quanto uma vantagem, dependendo do contexto e da maneira como o indivíduo lida com esse traço. Em posições que exigem controle emocional e tomada de decisões sob pressão, pessoas com altos níveis de neuroticismo podem ter dificuldades em manter a calma e agir de forma racional. Esse traço também pode levar à procrastinação, uma vez que a ansiedade pode ser tão paralisante que a pessoa evita tarefas desafiadoras por medo de falhar.

Por outro lado, indivíduos com altos níveis de neuroticismo também podem ser trabalhadores diligentes e meticulosos, já que sua tendência a se preocupar com resultados negativos os torna mais cautelosos e cuidadosos em suas funções. Em alguns casos, isso pode se traduzir em uma performance superior, principalmente em tarefas que exigem atenção ao detalhe e prevenção de erros. Embora o neuroticismo seja em grande parte um traço de personalidade estável ao longo da vida, há maneiras de gerenciá-lo para minimizar seus efeitos negativos. Algumas abordagens incluem:

- Terapia cognitivo-comportamental (TCC): A TCC pode ajudar indivíduos a reconhecer e modificar padrões de pensamento que alimentam a ansiedade e outros sentimentos negativos associados ao neuroticismo.

- Meditação e mindfulness: Essas práticas podem auxiliar na redução da reatividade emocional e no desenvolvimento de uma maior consciência sobre as emoções.

- Exercício físico regular: A prática de exercícios é uma excelente maneira de reduzir o estresse e melhorar o humor, ajudando a controlar a intensidade das emoções negativas.

- Apoio social: Manter relacionamentos saudáveis e buscar apoio emocional pode ser uma forma eficaz de lidar com as dificuldades emocionais associadas ao neuroticismo.

O neuroticismo é um traço de personalidade complexo que pode ter impactos profundos na vida de uma pessoa, afetando sua saúde mental, física, suas relações e até mesmo o sucesso profissional. Embora altos níveis desse traço estejam associados a experiências emocionais negativas, a compreensão e o gerenciamento eficaz do neuroticismo podem ajudar a mitigar muitos de seus efeitos prejudiciais. É fundamental que indivíduos com altos níveis de neuroticismo desenvolvam estratégias de enfrentamento saudáveis para melhorar sua qualidade de vida e bem-estar geral.


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

ARQUÉTIPO E SUA RELAÇÃO COM A PSICANÁLISE


 

    Os arquétipos são conceitos essenciais no estudo da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, sendo uma de suas contribuições mais significativas à psicanálise. Arquétipos podem ser definidos como padrões ou modelos universais de comportamento, que estão enraizados no inconsciente coletivo da humanidade. Esses modelos simbólicos aparecem repetidamente em mitos, lendas, sonhos e obras de arte, revelando temas profundos e atemporais da experiência humana. O termo arquétipo vem do grego archetypos, que significa "modelo original". Na perspectiva junguiana, os arquétipos são formas estruturais do inconsciente coletivo que influenciam diretamente a psique humana. Embora invisíveis e inconscientes, eles são forças poderosas que moldam pensamentos, comportamentos e emoções de maneira universal. De acordo com Jung, os arquétipos não são adquiridos individualmente, mas são herdados como parte de uma memória coletiva comum a toda humanidade, muito semelhante a instintos.

    Alguns dos arquétipos mais conhecidos incluem:

    Herói: representa a jornada do indivíduo em busca de superação, enfrentando desafios e adversidades para atingir um objetivo ou realizar um propósito maior.

    Sombra: refere-se aos aspectos sombrios da personalidade que são reprimidos ou negados, mas que continuam a influenciar o comportamento inconsciente.

    Sábio: simboliza o conhecimento, a sabedoria e o guia espiritual.

    Grande Mãe: representa o princípio da nutrição, proteção e criação, mas também pode ter uma face destrutiva e assustadora.

    Arquétipos e Inconsciente Coletivo

  O conceito de arquétipos está intimamente ligado à ideia de inconsciente coletivo, outro conceito junguiano fundamental. Enquanto o inconsciente pessoal abriga memórias, experiências e traumas específicos de um indivíduo, o inconsciente coletivo refere-se a uma camada mais profunda da mente, que compartilha símbolos e padrões comuns a todos os seres humanos. Esses padrões não são fruto de experiências individuais, mas são herdados e transmitidos através das gerações. Jung acreditava que os arquétipos eram expressões desse inconsciente coletivo, surgindo de formas variadas ao longo da história, através de mitos, contos de fadas e religiões.

     Relação entre Arquétipo e Psicanálise

  Na psicanálise junguiana, o estudo dos arquétipos desempenha um papel crucial na compreensão do inconsciente e no processo de individuação. A individuação é o processo de desenvolvimento psicológico no qual o indivíduo se torna consciente dos diferentes aspectos da sua personalidade, inclusive os que estão escondidos ou reprimidos no inconsciente. Os arquétipos, neste contexto, atuam como guias para que a pessoa compreenda a sua própria psique, ajudando-a a integrar as diversas partes de si mesma. Na prática clínica, a interpretação de símbolos e sonhos frequentemente revela arquétipos. Por exemplo, uma pessoa que sonha constantemente com batalhas ou desafios pode estar simbolizando a jornada do Herói, representando um desejo inconsciente de superar dificuldades na vida desperta. Já a presença constante da figura de uma sombra em sonhos pode indicar aspectos reprimidos da psique que precisam ser reconhecidos e trabalhados. Jung também destaca a importância do equilíbrio entre os arquétipos. A Sombra, por exemplo, é uma parte essencial da psique, e ignorá-la pode levar a neuroses. No entanto, a integração consciente da Sombra, por meio da análise e compreensão, permite que o indivíduo atinja um estado mais equilibrado e completo.

                Arquétipos e a Cultura

    Os arquétipos também têm uma presença marcante nas narrativas culturais e coletivas. Em filmes, livros e histórias, os arquétipos são utilizados para comunicar ideias universais de forma acessível. Por exemplo, em narrativas de super-heróis, o Herói é uma figura central, enfrentando uma jornada de autodescoberta, sacrifício e superação. Essas histórias ressoam com o público justamente porque elas evocam arquétipos que fazem parte do inconsciente coletivo, tocando em emoções e dilemas profundos e universais.

    O conceito de arquétipo é uma das contribuições mais profundas de Jung para a psicologia e a psicanálise. Ao entender os arquétipos e sua relação com o inconsciente coletivo, a psicanálise pode acessar camadas profundas da psique humana, oferecendo insights sobre os padrões de comportamento e emoções universais. Através da análise de sonhos, mitos e símbolos, os arquétipos ajudam a guiar o processo de individuação, permitindo que o indivíduo se conecte com os aspectos mais profundos de sua personalidade e alcance um maior nível de autocompreensão e equilíbrio psicológico.

 


Cultura Woke – um tema certo discutido da forma errada

 

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A Cultura Woke ou Wokismo se refere à prática de "estar acordado" (do inglês "woke") em relação a injustiças sociais, como racismo, machismo, homofobia e outras formas de opressão. Embora o conceito de "woke" tenha surgido nos Estados Unidos como um movimento legítimo de conscientização e ativismo contra as desigualdades, sua expansão global, incluindo no Brasil, trouxe desafios complexos e críticas. Ao se estabelecer no Brasil, o Wokismo encontrou um terreno fértil para discutir questões de desigualdade, mas também gerou polarizações, conflitos de interpretação e consequências que vão além do seu escopo original. Para entender os problemas associados ao Wokismo no Brasil, é importante observar sua origem e como ele foi adaptado ao contexto local. O termo "woke" tem raízes na conscientização sobre o racismo sistêmico nos Estados Unidos, especialmente no contexto da população afro-americana. Com o tempo, a ideia se expandiu para abranger outras questões de injustiça social, como os direitos LGBTQIA+, feminismo, mudanças climáticas e desigualdade de classes.

Quando o Wokismo surgiu ao Brasil, ele foi adotado principalmente por grupos ditos progressistas que veem nele uma forma de promover a justiça social em um país profundamente marcado pela desigualdade racial, de gênero e econômica. No entanto, o movimento enfrentou desafios de adaptação cultural. O Brasil tem uma história e uma estrutura social diferente dos estados norte-americanos e o uso direto de conceitos estrangeiros nem sempre se ajusta à complexidade brasileira, gerando distorções e controvérsias. Um dos maiores problemas do Wokismo no Brasil é o aprofundamento da polarização social. O país já vivia um ambiente de tensão política desde meados da década de 2010, com a polarização entre esquerda e direita, mas o Wokismo contribuiu para tornar o debate público ainda mais radicalizado. Discussões sobre justiça social, que são de extrema importância, muitas vezes se transformam em batalhas de opiniões onde o diálogo perde espaço para discursos inflamados e acusações.

Em vez de facilitar o entendimento mútuo, o Wokismo frequentemente assume uma postura de intolerância para com opiniões divergentes. Quem não concorda com as premissas ou propostas defendidas pelos ativistas wokistas é muitas vezes taxado de "opressor", "retrógrado" ou "preconceituoso", o que impede um debate construtivo. Não que inexista tais personagens, é claro. Isso resulta na criação de um ambiente hostil, onde a discordância é vista como moralmente condenável, em vez de ser uma oportunidade para reflexão e aprendizado mútuo. Essa polarização não só afasta as pessoas dos diálogos, mas também reforça a resistência de muitos grupos, criando uma reação defensiva e até agressiva contra o Wokismo, o que agrava ainda mais as divisões sociais.

A chamada "cultura do cancelamento" é um dos efeitos mais visíveis do Wokismo no Brasil. Cancelar alguém envolve boicotar, marginalizar ou descreditar uma pessoa por ter expressado opiniões que vão contra os valores progressistas defendidos pelos ativistas. Isso se tornou particularmente comum nas redes sociais, onde figuras públicas, artistas, acadêmicos e até cidadãos comuns têm suas reputações destruídas por comentários ou posicionamentos que são considerados inaceitáveis. Talvez esta prática já existisse, porém, com outra roupagem e denominação. Apenas “passava” batida ou era ignorada. Embora o cancelamento possa ser visto como uma forma de responsabilização por ações ou palavras ofensivas, ele frequentemente vai além, criando um ambiente de medo e autocensura. As pessoas evitam expressar opiniões que possam ser mal interpretadas ou consideradas politicamente incorretas, temendo as consequências sociais e profissionais. No Brasil, onde a liberdade de expressão é constitucionalmente protegida, essa cultura de silenciamento cria um dilema: até que ponto é aceitável censurar opiniões, mesmo que impopulares, em nome da justiça social?

A intolerância à divergência dentro do Wokismo é vista como um dos principais problemas, pois a falta de espaço para o debate livre enfraquece a possibilidade de encontrar soluções para as questões sociais. Em vez de promover um diálogo inclusivo, o Wokismo, por vezes, impõe uma narrativa única, que rotula automaticamente os críticos como "inimigos" da causa. O Wokismo também tem influenciado o cenário político brasileiro, tanto nas pautas quanto no comportamento dos eleitores e políticos. Sua abordagem identitária, focada em questões de raça, gênero e sexualidade, trouxe importantes discussões à tona, mas também gerou reações intensas de setores conservadores da sociedade. A agenda Wokista muitas vezes encontra resistência entre políticos de direita e parte da população que vê no movimento uma tentativa de impor uma "ditadura do politicamente correto". Essa reação provoca uma resposta igualmente intensa dos defensores do Wokismo, criando um ciclo de antagonismo. O debate político, que já era fragmentado, se torna ainda mais sectário, com pouca disposição para compromissos ou diálogos produtivos. Além disso, o Wokismo, ao focar muito em questões identitárias, é criticado por algumas correntes de esquerda por deixar em segundo plano problemas econômicos e estruturais que afetam a maioria da população brasileira, como pobreza, desemprego e desigualdade social. Esses críticos, aparentemente, argumentam que o foco excessivo em pautas identitárias pode alienar os eleitores da classe trabalhadora, que não se sentem representados por um discurso que parece distante de suas necessidades mais imediatas.

Outro aspecto controverso do Wokismo no Brasil é sua influência no campo educacional. Muitos ativistas defendem que as escolas e universidades incluam temas relacionados à igualdade de gênero, raça e direitos das minorias em seus currículos. A ideia é formar cidadãos mais conscientes e engajados na luta contra a opressão. No entanto, críticos apontam que essa inclusão pode, em alguns casos, resultar em uma doutrinação ideológica. Em vez de promover o pensamento crítico e o debate plural, algumas instituições têm adotado um discurso único, alinhado com as premissas do Wokismo. Isso levanta preocupações sobre a liberdade acadêmica e a capacidade dos estudantes de questionarem e formarem suas próprias opiniões. Além disso, a aplicação de determinadas políticas wokistas na educação pode gerar resistência por parte de pais, professores e até estudantes que não concordam com as ideias apresentadas. Isso não apenas dificulta a implementação dessas políticas, mas também contribui para a polarização do debate em torno da educação no Brasil, que já é marcada por tensões ideológicas entre diferentes grupos.

O impacto do Wokismo na liberdade de expressão é um dos pontos mais discutidos pelos críticos do movimento no Brasil. A censura e o silenciamento de vozes dissonantes são frequentemente mencionados como um dos maiores problemas. O receio de ser cancelado ou taxado de preconceituoso cria um ambiente onde a pluralidade de opiniões é sufocada. Para que uma sociedade democrática funcione plenamente, é essencial que haja espaço para o debate e para a troca de ideias, inclusive as que são impopulares ou desafiadoras. No entanto, o Wokismo, ao defender uma postura rígida sobre certos temas, acaba limitando a liberdade de expressão, especialmente nas redes sociais e em espaços acadêmicos. Isso pode ter um efeito negativo a longo prazo, pois impede o desenvolvimento de soluções coletivas para os problemas sociais e políticos do país.

Muito embora o Wokismo tenha surgido com a intenção de combater injustiças e promover uma sociedade mais igualitária, sua implementação no Brasil trouxe uma série de desafios. A polarização, a cultura do cancelamento, a intolerância ao debate e os impactos na política e na educação revelam que o movimento, embora bem-intencionado, nem sempre consegue atingir seus objetivos de maneira eficaz. É crucial que o Brasil encontre um equilíbrio entre a defesa dos direitos das minorias e a manutenção de um ambiente onde a liberdade de expressão e o debate público sejam respeitados. Somente por meio de um diálogo aberto, que permita a convivência de diferentes opiniões e perspectivas, será possível construir uma sociedade mais justa e inclusiva.


HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR

  HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR by Heitor Jorge Lau             É uma verdade quase inquestionável que, em algum mome...