quarta-feira, 2 de julho de 2025

Uma análise sobre a Síndrome de Burnout e a Tirania do Mérito

 

           Uma análise sobre a Síndrome de Burnout e a Tirania do Mérito.

            Nuances da obra de Michael Sandel.

By Heitor Jorge Lau

            A intrincada relação entre a Síndrome de Burnout e a ideologia da Tirania do Mérito, conforme brilhantemente dissecada por Michael Sandel em sua obra homônima, revela-se um dos pilares mais problemáticos da sociedade contemporânea. Michael J. Sandel é filósofo, escritor, professor universitário, ensaísta, conferencista e palestrante estadunidense, reconhecido internacionalmente por seus livros Justiça: O que é fazer a coisa certa (2009) e Liberalismo e os limites da Justiça (1982). Seu mais recente livro chama-se a Tirania do Mérito: O que aconteceu com o bem comum? Essas duas dimensões, uma manifestação individual de esgotamento e a outra uma estrutura social e moral, não são meramente correlacionadas, mas sim profundamente interdependentes. A meritocracia, em sua busca incansável por um ideal de justiça baseado unicamente no esforço e no talento, paradoxalmente, semeia as sementes da exaustão e do desencanto, conduzindo um número crescente de indivíduos à beira do colapso psíquico e físico.

            Sandel, em "A Tirania do Mérito", argumenta com veemência que a crença onipresente de que o sucesso é puramente o resultado do mérito individual é uma falácia perigosa. Embora a ideia de que o esforço deve ser recompensado soe justa e até inspiradora, a realidade é muito mais complexa e multifacetada. A meritocracia, em sua aplicação prática, tende a obscurecer e até mesmo a negar os inúmeros fatores externos que influenciam a trajetória de vida de uma pessoa. Nascemos em circunstâncias distintas, com acesso desigual a recursos, redes de apoio, educação de qualidade e oportunidades que, muitas vezes, determinam mais o nosso percurso do que qualquer esforço individual isolado. A "sorte de berço", o capital social dos pais, a existência de oportunidades em um determinado setor econômico – todos esses elementos são cruciais e fogem ao controle direto do indivíduo. Ao desconsiderar esses fatores, a ideologia meritocrática cria uma narrativa de autossuficiência que, para Sandel, é não apenas enganosa, mas profundamente corrosiva para a solidariedade social e para a saúde mental dos indivíduos. Aqueles que prosperam são celebrados como arautos de sua própria virtude e esforço, imbuídos de um certo orgulho meritocrático que pode beirar a arrogância, enquanto aqueles que enfrentam dificuldades ou não atingem o mesmo nível de sucesso são silenciosamente responsabilizados por sua suposta falta de talento ou empenho. Isso gera um ciclo vicioso de culpa e vergonha que mina a dignidade e a autoestima.

            É precisamente neste terreno fértil de autoexigência e externalização da culpa que a Síndrome de Burnout encontra seu caminho. Classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um fenômeno ocupacional resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso, o burnout transcende o mero cansaço. Ele se manifesta através de uma tríade de sintomas devastadores: a exaustão emocional, um esgotamento profundo das energias físicas e mentais; a despersonalização (ou cinismo), que se traduz em uma atitude distante e insensível em relação ao trabalho, aos colegas e aos clientes, muitas vezes acompanhada de irritabilidade; e a baixa realização pessoal, uma sensação avassaladora de ineficácia, de que os esforços são em vão e de que não se consegue mais realizar as tarefas de forma satisfatória. A pessoa que sofre de burnout sente-se "queimada", sem energia para continuar, e perde a capacidade de engajamento e de sentir prazer no que antes era significativo.

            A tirania do mérito alimenta o burnout de múltiplas e complexas maneiras. Primeiramente, ela estabelece uma cultura de produtividade e desempenho incessante. Na sociedade meritocrática, o valor de um indivíduo é intrinsecamente ligado à sua capacidade de produzir, se destacar e ascender profissionalmente. Isso cria uma pressão insustentável para estar sempre ligado, sempre disponível, sempre melhorando. As horas de trabalho se estendem indefinidamente, o tempo livre é sacrificado em nome de qualificações adicionais ou projetos extras, e o descanso é visto como um luxo ou, pior ainda, como um sinal de fraqueza. A distinção entre vida pessoal e profissional se dissolve, com o trabalho invadindo todos os espaços e tempos da existência. O smartphone se torna uma extensão da mão, e as notificações de e-mail e mensagens de trabalho se tornam onipresentes, impedindo qualquer momento de real desconexão e recuperação. Essa cultura do "sempre mais", onde o suficiente nunca é suficiente, é uma receita para a exaustão crônica.

            Em segundo lugar, a meritocracia infunde uma ansiedade paralisante de não ser bom o suficiente. Se o sucesso é um reflexo direto do mérito individual, então a falha, por extensão, é percebida como uma falha pessoal, uma deficiência de caráter, inteligência ou esforço. Essa narrativa interna, frequentemente reforçada por comparações sociais incessantes – potencializadas pelas redes sociais e a exibição de vidas perfeitas –, leva a um medo constante de não atingir as expectativas. O medo de ser ultrapassado, demitido, não conseguir o próximo desafio, gera um estado de alerta constante, um hiperfoco em performance que impede a criatividade, experimentação e capacidade de aprender com os erros. A busca pela perfeição se torna um imperativo, e qualquer falha é vivenciada como uma catástrofe. Esse nível de pressão autoimposta, somado às pressões externas, sobrecarrega o sistema nervoso e o aparato psíquico, tornando o indivíduo extremamente vulnerável ao esgotamento.

            Sandel também ilumina a forma como a meritocracia não apenas celebra os vencedores, mas também estigmatiza e humilha os perdedores. Aqueles que não conseguem ascender na pirâmide social ou profissional são frequentemente vistos como menos capazes, menos esforçados ou, de alguma forma, menos valiosos. Essa desvalorização não se restringe apenas aos trabalhos menos prestigiados, mas se estende a qualquer um que, porventura, não se encaixe nos padrões de sucesso definidos pela meritocracia. Para o indivíduo que vivencia o burnout, essa estigmatização é duplamente cruel. Além do sofrimento intrínseco da síndrome, ele pode ser levado a internalizar a culpa, acreditando que seu esgotamento é um sinal de fraqueza pessoal ou de incapacidade de lidar com a pressão, em vez de uma consequência de um sistema exaustivo. A vergonha de estar "queimado" pode levar ao isolamento, à negação dos sintomas e dificuldade em buscar ajuda, perpetuando o ciclo de sofrimento. A própria sociedade, ao valorizar a resiliência a ponto de romantizar a exaustão, muitas vezes não oferece o amparo necessário, e sim uma cobrança velada para que o indivíduo se recupere logo e volte ao ritmo.

            A globalização e a intensificação da competição global, características marcantes do século XXI, agravaram ainda mais as pressões da meritocracia. Empresas buscam eficiência máxima e lucro a todo e qualquer custo, muitas vezes à custa da saúde mental de seus colaboradores. A lógica neoliberal, que permeia as relações de trabalho, transformou o indivíduo em um empreendedor de si mesmo, responsável único por seu sucesso ou fracasso. Isso significa que a linha entre o emprego e a carreira se apagou, e o investimento pessoal na carreira tornou-se ilimitado. A pandemia de COVID-19, por sua vez, funcionou como um catalisador para a crise de burnout. O trabalho remoto, que prometia maior flexibilidade, na prática, muitas vezes resultou em uma fusão completa entre o espaço doméstico e o espaço de trabalho. As jornadas se estenderam, as reuniões virtuais se tornaram intermináveis, e a necessidade de estar sempre online e disponível intensificou a sensação de vigilância e a pressão por produtividade. A incerteza econômica e a precarização do trabalho adicionaram uma camada extra de ansiedade, tornando o medo de perder o emprego uma poderosa força motriz para a sobrecarga.

            Para transcender essa realidade e construir uma sociedade menos propensa ao burnout, é fundamental, como Sandel propõe, desconstruir a ideologia da meritocracia. Isso implica em um questionamento profundo dos valores que norteiam nossa sociedade e da forma como atribuímos valor às pessoas e ao trabalho. Não se trata de desvalorizar o esforço ou o talento, mas sim de reconhecer que eles operam dentro de um contexto social e econômico muito maior. Precisamos valorizar não apenas a alta performance e o sucesso espetacular, mas também a dignidade de todos os tipos de trabalho, desde os mais intelectuais até os mais manuais, reconhecendo sua contribuição intrínseca para o funcionamento da sociedade. Ações nesse sentido envolvem a promoção de políticas públicas que busquem reduzir as desigualdades de oportunidade, garantindo acesso equitativo à educação, à saúde e a outras condições básicas que permitam a todos desenvolver seu potencial. No âmbito corporativo, é crucial que as organizações adotem práticas que promovam o bem-estar dos funcionários, como o incentivo ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional, o estabelecimento de limites claros de jornada, a promoção de um ambiente de trabalho saudável e o reconhecimento do valor intrínseco de cada colaborador, independentemente de sua posição hierárquica.

            No nível individual, o caminho para mitigar os efeitos da tirania do mérito e evitar o burnout passa por um processo de autoconsciência e estabelecimento de limites. Aprender a dizer "não", a delegar, a priorizar o autocuidado – incluindo sono adequado, alimentação saudável, exercícios físicos e momentos de lazer genuíno – são estratégias essenciais. É fundamental desvincular o valor pessoal da produtividade e do sucesso profissional, reconhecendo que somos seres humanos complexos e multifacetados, cujo valor transcende as métricas do mercado de trabalho. Buscar apoio psicológico quando os primeiros sinais de esgotamento surgem é um ato de coragem e sabedoria, e não de fraqueza. Ao invés de buscar a perfeição inatingível, é preciso abraçar a imperfeição humana, a capacidade de aprender com os erros e de se recuperar. Em última análise, a Síndrome de Burnout e a Tirania do Mérito nos convocam a uma reflexão mais profunda sobre o tipo de sociedade que estamos construindo. Uma sociedade que exalta o esforço individual ao ponto de exaurir seus membros é insustentável. O caminho para uma vida mais plena e significativa passa por redefinir o que significa ter sucesso, valorizando a saúde mental, as relações humanas, o propósito e a dignidade de cada indivíduo, muito além de sua capacidade de produção ou de acumulação de capital. A obra de Sandel nos oferece não apenas um diagnóstico agudo, mas também um convite urgente para repensar nossos valores coletivos e reconstruir as bases de uma sociedade mais justa, solidária e, consequentemente, mais saudável para todos.

 

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