quinta-feira, 3 de julho de 2025

HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR

 

HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR

by Heitor Jorge Lau

            É uma verdade quase inquestionável que, em algum momento da vida, todos nós nos deparamos com a imensa dificuldade de abandonar um hábito indesejado. Seja a compulsão por checar o celular a cada cinco minutos, o hábito de procrastinar tarefas importantes ou a dependência de substâncias, a luta para quebrar esses padrões comportamentais pode parecer uma batalha perdida. A ciência moderna, no entanto, tem mergulhado fundo nos recônditos do cérebro humano para desvendar os complexos mecanismos neurais e psicológicos que tornam essa tarefa tão desafiadora, revelando que a tenacidade dos hábitos não é um sinal de fraqueza individual, mas sim uma manifestação da engenhosa arquitetura do nosso sistema nervoso, projetado para aprender, automatizar e conservar energia.

            No cerne da formação e persistência de hábitos está a plasticidade neural, a notável capacidade do cérebro de se adaptar e reorganizar as conexões em resposta a novas experiências e aprendizados. Imagine o cérebro como uma vasta rede de trilhas. Cada vez que se repete uma ação, as trilhas neurais envolvidas nessa atividade se tornam mais nítidas, mais eficientes e mais rápidas de percorrer. Essa pavimentação de estradas neurais fortalece as sinapses – as junções onde os neurônios se comunicam – tornando o comportamento cada vez mais automático e menos dependente de um esforço cognitivo consciente. Um dos principais orquestradores desse processo é o sistema de recompensa do cérebro, um circuito neural primitivo e poderoso que impulsiona a buscar e repetir comportamentos percebidos como prazerosos ou benéficos. O protagonista aqui é a dopamina, um neurotransmissor frequentemente associado ao prazer, mas que na verdade desempenha um papel mais crucial na motivação e no aprendizado preditivo. Quando um comportamento resulta em uma recompensa – seja a sensação de saciedade após uma refeição, o alívio do estresse ao fumar um cigarro ou a alegria de um elogio – ocorre uma liberação de dopamina. Essa liberação não apenas sinaliza a recompensa, mas também reforça a conexão entre o comportamento e o gatilho que o precedeu, criando uma expectativa de prazer que impulsiona a repetição. Com o tempo, essa repetição incessante cria uma associação tão forte que o simples sinal ou gatilho para o hábito pode desencadear uma poderosa antecipação da recompensa, levando à execução quase irrefletida do comportamento.

            Essa automação é, em sua essência, um mecanismo de sobrevivência incrivelmente eficiente. Seria muito exaustivo ter que pensar conscientemente em cada passo ao caminhar ou em cada movimento para dirigir um carro, por exemplo. Hábitos liberam a capacidade de processamento consciente do cérebro, permitindo que ele se dedique a tarefas mais complexas, novas aprendizagens e tomadas de decisão. No entanto, essa mesma eficiência se torna uma armadilha quando o hábito é prejudicial. O comportamento torna-se tão profundamente enraizado que é executado sem a necessidade de deliberação, tornando a intervenção consciente um desafio monumental. O cérebro, de certa forma economiza energia ao delegar o hábito ao piloto automático, liberando a mente para outras funções.

            Além do sistema de recompensa, a memória procedural desempenha um papel fundamental na tenacidade dos hábitos. Ao contrário da memória explícita (que permite recordar conscientemente fatos e eventos), a memória procedural opera em um nível em grande parte inconsciente. Ela é responsável por habilidades motoras e rotinas aprendidas – como andar de bicicleta, digitar ou amarrar os sapatos. Uma vez que um hábito é codificado na memória procedural, ele se transforma em uma resposta quase reflexiva a determinados gatilhos. Isso significa que, mesmo que se decida conscientemente não realizar o hábito, o corpo e a mente podem seguir o roteiro pré-programado sem que sequer se perceba a decisão consciente. A luta para abandonar um hábito é, em muitos aspectos, uma batalha contra essa camada profunda de memória, que opera silenciosamente e com uma eficiência surpreendente.

            A complexidade é ainda mais acentuada pelo papel onipresente do contexto no reforço dos hábitos. Hábitos raramente existem em um vácuo. Eles estão intrinsecamente ligados a ambientes específicos, horários, pessoas, objetos ou estados emocionais. Por exemplo, alguém que fuma pode associar o cigarro ao primeiro café da manhã, a reuniões sociais, a pausas no trabalho ou a momentos de estresse intenso. Esses gatilhos contextuais agem como poderosos sinais que ativam a estrada neural do hábito. O simples fato de estar em um determinado local ou sentir uma emoção específica pode evocar a necessidade quase irresistível do hábito, mesmo quando há uma intenção genuína de evitá-lo. O cérebro faz uma ligação inconsciente entre o ambiente e a ação, tornando o ambiente um cúmplice silencioso na perpetuação do hábito.

            A resistência à mudança é outro obstáculo significativo. Nosso cérebro é um órgão que anseia por previsibilidade e homeostase. A saber, a homeostase é a capacidade dos organismos de manterem seu meio interno em certa estabilidade, essencial para o funcionamento adequado das funções vitais. Abandonar um hábito é, por definição, introduzir uma mudança disruptiva na rotina e no comportamento, o que pode gerar desconforto, ansiedade e até mesmo uma sensação de perda. O cérebro, em sua busca por manter o status quo, pode resistir vigorosamente a essa alteração, reforçando a atração pelo comportamento familiar e previsível, mesmo que suas consequências sejam prejudiciais a longo prazo. A recompensa imediata e conhecida do hábito, por menor que seja, frequentemente se sobrepõe à promessa futura e incerta de um comportamento alternativo. Essa aversão à incerteza é um mecanismo de defesa evolutivo que, no contexto dos hábitos, pode se tornar um impedimento.

            Adicionalmente, a noção de força de vontade, embora popularmente glorificada, é um recurso finito e facilmente esgotável. Ela é como um músculo que se cansa com o uso excessivo. O ato de resistir a um hábito exige um considerável esforço cognitivo e mental, especialmente nos estágios iniciais da mudança. Se estamos estressados, com privação de sono, emocionalmente exaustos ou com recursos cognitivos sobrecarregados, nossa capacidade de exercer controle inibitório sobre nossos impulsos diminui drasticamente. Isso nos torna mais vulneráveis a recair em padrões habituais, o que explica por que muitas tentativas de quebrar hábitos falham em momentos de vulnerabilidade ou exaustão. A força de vontade não é uma fonte ilimitada de energia, mas sim um reservatório que precisa ser reabastecido.

            No caso de vícios mais severos, a dificuldade em abandonar o hábito é dramaticamente amplificada por profundas adaptações neuroquímicas que ocorrem no cérebro. O uso crônico de certas substâncias, por exemplo, pode alterar a sensibilidade dos receptores de dopamina e de outros neurotransmissores, levando a uma dependência tanto física quanto psicológica. O cérebro se acostuma e passa a esperar a presença da substância para funcionar normalmente. Quando a substância é retirada, desencadeia-se uma cascata de sintomas de abstinência que são excruciantemente desagradáveis, que vão desde a irritabilidade e ansiedade até náuseas e dores físicas intensas. Nesses casos, a manutenção do hábito não é apenas uma busca por prazer, mas uma forma desesperada de evitar o sofrimento da abstinência, criando um ciclo vicioso extremamente difícil de romper.

            A narrativa que construímos sobre nós mesmos desempenha um papel sutil, mas poderoso, na perpetuação dos hábitos. Se internalizamos uma identidade como alguém que não consegue parar de checar o celular ou alguém que sempre procrastina, essa autopercepção pode inconscientemente reforçar o comportamento. Mudar um hábito, em muitos casos, não é apenas alterar uma ação isolada, é desafiar e reescrever uma parte da nossa identidade. Isso pode ser psicologicamente desconfortável e exige um esforço considerável para redefinir quem somos e como agimos, o que muitas vezes é um processo de autodescoberta e revalidação. Portanto, a dificuldade quase hercúlea de abandonar um hábito não é um defeito de caráter, mas uma intrincada dança de mecanismos neurais e psicológicos que estão profundamente enraizados em nossa biologia. Desde a plasticidade neural e o poderoso sistema de recompensa impulsionado pela dopamina, passando pela automação da memória procedural, a influência dos gatilhos contextuais, a aversão inata do cérebro à mudança, a finitude da força de vontade, e as profundas alterações neuroquímicas nos casos de vício, o cérebro é uma máquina otimizada para formar e manter padrões de comportamento. Compreender essa complexidade multifacetada é o primeiro e mais crucial passo para desenvolver estratégias eficazes que abordem as raízes científicas da persistência dos hábitos. Somente ao decifrar esses mecanismos podemos esperar reescrever as estradas neurais que, embora nos ofereçam eficiência, por vezes nos aprisionam em padrões indesejáveis, abrindo caminho para uma verdadeira e duradoura mudança.


quarta-feira, 2 de julho de 2025

Uma análise sobre a Síndrome de Burnout e a Tirania do Mérito

 

           Uma análise sobre a Síndrome de Burnout e a Tirania do Mérito.

            Nuances da obra de Michael Sandel.

By Heitor Jorge Lau

            A intrincada relação entre a Síndrome de Burnout e a ideologia da Tirania do Mérito, conforme brilhantemente dissecada por Michael Sandel em sua obra homônima, revela-se um dos pilares mais problemáticos da sociedade contemporânea. Michael J. Sandel é filósofo, escritor, professor universitário, ensaísta, conferencista e palestrante estadunidense, reconhecido internacionalmente por seus livros Justiça: O que é fazer a coisa certa (2009) e Liberalismo e os limites da Justiça (1982). Seu mais recente livro chama-se a Tirania do Mérito: O que aconteceu com o bem comum? Essas duas dimensões, uma manifestação individual de esgotamento e a outra uma estrutura social e moral, não são meramente correlacionadas, mas sim profundamente interdependentes. A meritocracia, em sua busca incansável por um ideal de justiça baseado unicamente no esforço e no talento, paradoxalmente, semeia as sementes da exaustão e do desencanto, conduzindo um número crescente de indivíduos à beira do colapso psíquico e físico.

            Sandel, em "A Tirania do Mérito", argumenta com veemência que a crença onipresente de que o sucesso é puramente o resultado do mérito individual é uma falácia perigosa. Embora a ideia de que o esforço deve ser recompensado soe justa e até inspiradora, a realidade é muito mais complexa e multifacetada. A meritocracia, em sua aplicação prática, tende a obscurecer e até mesmo a negar os inúmeros fatores externos que influenciam a trajetória de vida de uma pessoa. Nascemos em circunstâncias distintas, com acesso desigual a recursos, redes de apoio, educação de qualidade e oportunidades que, muitas vezes, determinam mais o nosso percurso do que qualquer esforço individual isolado. A "sorte de berço", o capital social dos pais, a existência de oportunidades em um determinado setor econômico – todos esses elementos são cruciais e fogem ao controle direto do indivíduo. Ao desconsiderar esses fatores, a ideologia meritocrática cria uma narrativa de autossuficiência que, para Sandel, é não apenas enganosa, mas profundamente corrosiva para a solidariedade social e para a saúde mental dos indivíduos. Aqueles que prosperam são celebrados como arautos de sua própria virtude e esforço, imbuídos de um certo orgulho meritocrático que pode beirar a arrogância, enquanto aqueles que enfrentam dificuldades ou não atingem o mesmo nível de sucesso são silenciosamente responsabilizados por sua suposta falta de talento ou empenho. Isso gera um ciclo vicioso de culpa e vergonha que mina a dignidade e a autoestima.

            É precisamente neste terreno fértil de autoexigência e externalização da culpa que a Síndrome de Burnout encontra seu caminho. Classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um fenômeno ocupacional resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso, o burnout transcende o mero cansaço. Ele se manifesta através de uma tríade de sintomas devastadores: a exaustão emocional, um esgotamento profundo das energias físicas e mentais; a despersonalização (ou cinismo), que se traduz em uma atitude distante e insensível em relação ao trabalho, aos colegas e aos clientes, muitas vezes acompanhada de irritabilidade; e a baixa realização pessoal, uma sensação avassaladora de ineficácia, de que os esforços são em vão e de que não se consegue mais realizar as tarefas de forma satisfatória. A pessoa que sofre de burnout sente-se "queimada", sem energia para continuar, e perde a capacidade de engajamento e de sentir prazer no que antes era significativo.

            A tirania do mérito alimenta o burnout de múltiplas e complexas maneiras. Primeiramente, ela estabelece uma cultura de produtividade e desempenho incessante. Na sociedade meritocrática, o valor de um indivíduo é intrinsecamente ligado à sua capacidade de produzir, se destacar e ascender profissionalmente. Isso cria uma pressão insustentável para estar sempre ligado, sempre disponível, sempre melhorando. As horas de trabalho se estendem indefinidamente, o tempo livre é sacrificado em nome de qualificações adicionais ou projetos extras, e o descanso é visto como um luxo ou, pior ainda, como um sinal de fraqueza. A distinção entre vida pessoal e profissional se dissolve, com o trabalho invadindo todos os espaços e tempos da existência. O smartphone se torna uma extensão da mão, e as notificações de e-mail e mensagens de trabalho se tornam onipresentes, impedindo qualquer momento de real desconexão e recuperação. Essa cultura do "sempre mais", onde o suficiente nunca é suficiente, é uma receita para a exaustão crônica.

            Em segundo lugar, a meritocracia infunde uma ansiedade paralisante de não ser bom o suficiente. Se o sucesso é um reflexo direto do mérito individual, então a falha, por extensão, é percebida como uma falha pessoal, uma deficiência de caráter, inteligência ou esforço. Essa narrativa interna, frequentemente reforçada por comparações sociais incessantes – potencializadas pelas redes sociais e a exibição de vidas perfeitas –, leva a um medo constante de não atingir as expectativas. O medo de ser ultrapassado, demitido, não conseguir o próximo desafio, gera um estado de alerta constante, um hiperfoco em performance que impede a criatividade, experimentação e capacidade de aprender com os erros. A busca pela perfeição se torna um imperativo, e qualquer falha é vivenciada como uma catástrofe. Esse nível de pressão autoimposta, somado às pressões externas, sobrecarrega o sistema nervoso e o aparato psíquico, tornando o indivíduo extremamente vulnerável ao esgotamento.

            Sandel também ilumina a forma como a meritocracia não apenas celebra os vencedores, mas também estigmatiza e humilha os perdedores. Aqueles que não conseguem ascender na pirâmide social ou profissional são frequentemente vistos como menos capazes, menos esforçados ou, de alguma forma, menos valiosos. Essa desvalorização não se restringe apenas aos trabalhos menos prestigiados, mas se estende a qualquer um que, porventura, não se encaixe nos padrões de sucesso definidos pela meritocracia. Para o indivíduo que vivencia o burnout, essa estigmatização é duplamente cruel. Além do sofrimento intrínseco da síndrome, ele pode ser levado a internalizar a culpa, acreditando que seu esgotamento é um sinal de fraqueza pessoal ou de incapacidade de lidar com a pressão, em vez de uma consequência de um sistema exaustivo. A vergonha de estar "queimado" pode levar ao isolamento, à negação dos sintomas e dificuldade em buscar ajuda, perpetuando o ciclo de sofrimento. A própria sociedade, ao valorizar a resiliência a ponto de romantizar a exaustão, muitas vezes não oferece o amparo necessário, e sim uma cobrança velada para que o indivíduo se recupere logo e volte ao ritmo.

            A globalização e a intensificação da competição global, características marcantes do século XXI, agravaram ainda mais as pressões da meritocracia. Empresas buscam eficiência máxima e lucro a todo e qualquer custo, muitas vezes à custa da saúde mental de seus colaboradores. A lógica neoliberal, que permeia as relações de trabalho, transformou o indivíduo em um empreendedor de si mesmo, responsável único por seu sucesso ou fracasso. Isso significa que a linha entre o emprego e a carreira se apagou, e o investimento pessoal na carreira tornou-se ilimitado. A pandemia de COVID-19, por sua vez, funcionou como um catalisador para a crise de burnout. O trabalho remoto, que prometia maior flexibilidade, na prática, muitas vezes resultou em uma fusão completa entre o espaço doméstico e o espaço de trabalho. As jornadas se estenderam, as reuniões virtuais se tornaram intermináveis, e a necessidade de estar sempre online e disponível intensificou a sensação de vigilância e a pressão por produtividade. A incerteza econômica e a precarização do trabalho adicionaram uma camada extra de ansiedade, tornando o medo de perder o emprego uma poderosa força motriz para a sobrecarga.

            Para transcender essa realidade e construir uma sociedade menos propensa ao burnout, é fundamental, como Sandel propõe, desconstruir a ideologia da meritocracia. Isso implica em um questionamento profundo dos valores que norteiam nossa sociedade e da forma como atribuímos valor às pessoas e ao trabalho. Não se trata de desvalorizar o esforço ou o talento, mas sim de reconhecer que eles operam dentro de um contexto social e econômico muito maior. Precisamos valorizar não apenas a alta performance e o sucesso espetacular, mas também a dignidade de todos os tipos de trabalho, desde os mais intelectuais até os mais manuais, reconhecendo sua contribuição intrínseca para o funcionamento da sociedade. Ações nesse sentido envolvem a promoção de políticas públicas que busquem reduzir as desigualdades de oportunidade, garantindo acesso equitativo à educação, à saúde e a outras condições básicas que permitam a todos desenvolver seu potencial. No âmbito corporativo, é crucial que as organizações adotem práticas que promovam o bem-estar dos funcionários, como o incentivo ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional, o estabelecimento de limites claros de jornada, a promoção de um ambiente de trabalho saudável e o reconhecimento do valor intrínseco de cada colaborador, independentemente de sua posição hierárquica.

            No nível individual, o caminho para mitigar os efeitos da tirania do mérito e evitar o burnout passa por um processo de autoconsciência e estabelecimento de limites. Aprender a dizer "não", a delegar, a priorizar o autocuidado – incluindo sono adequado, alimentação saudável, exercícios físicos e momentos de lazer genuíno – são estratégias essenciais. É fundamental desvincular o valor pessoal da produtividade e do sucesso profissional, reconhecendo que somos seres humanos complexos e multifacetados, cujo valor transcende as métricas do mercado de trabalho. Buscar apoio psicológico quando os primeiros sinais de esgotamento surgem é um ato de coragem e sabedoria, e não de fraqueza. Ao invés de buscar a perfeição inatingível, é preciso abraçar a imperfeição humana, a capacidade de aprender com os erros e de se recuperar. Em última análise, a Síndrome de Burnout e a Tirania do Mérito nos convocam a uma reflexão mais profunda sobre o tipo de sociedade que estamos construindo. Uma sociedade que exalta o esforço individual ao ponto de exaurir seus membros é insustentável. O caminho para uma vida mais plena e significativa passa por redefinir o que significa ter sucesso, valorizando a saúde mental, as relações humanas, o propósito e a dignidade de cada indivíduo, muito além de sua capacidade de produção ou de acumulação de capital. A obra de Sandel nos oferece não apenas um diagnóstico agudo, mas também um convite urgente para repensar nossos valores coletivos e reconstruir as bases de uma sociedade mais justa, solidária e, consequentemente, mais saudável para todos.

 

terça-feira, 1 de julho de 2025

A CELEBRAÇÃO DO ANIVERSÁRIO – UMA NECESSIDADE MENTAL

 

            A CELEBRAÇÃO DO ANIVERSÁRIO – UMA NECESSIDADE MENTAL

            A celebração do aniversário, tão ubíqua em nossas vidas modernas, transcende a mera contagem de mais um ano vivido. Ela é um espelho da própria existência humana, uma analogia à nossa inata necessidade de marcar o tempo, de atribuir significado aos ciclos e de reconhecer a jornada individual. Assim como um navegador experiente que, ao cruzar o equador, faz uma pausa para celebrar a transposição de uma linha imaginária, mas fundamental em sua cartografia, nós também paramos em nossos aniversários para homenagear a travessia de mais um ano em nosso próprio mapa da vida. Essa importância intrínseca que damos a cada 365 dias passados não é um fenômeno recente. As suas raízes se entrelaçam com a aurora da civilização, tecendo uma tapeçaria rica e complexa que revela muito sobre nossa psicologia e história cultural.

            A busca pelas origens do aniversário nos leva a um passado distante, onde a distinção entre a celebração de nascimentos individuais e a observância de datas importantes para a comunidade era tênue. É provável que os primeiros registros de aniversários estivessem ligados a figuras de poder – reis, faraós e divindades. No antigo Egito, por exemplo, festas eram realizadas para marcar o aniversário de coroações de faraós, vistas como o nascimento de sua divindade. A data de seu nascimento físico era, talvez, menos relevante do que o momento em que se tornavam deuses na Terra. Esses eventos não eram apenas celebrações, mas rituais que reafirmavam a ordem cósmica e a autoridade divina do governante. A grandiosidade dessas comemorações refletia a crença de que esses líderes eram pivôs em suas sociedades, e sua existência, seu nascimento como governantes, merecia uma pompa digna de deuses.

            Os gregos e romanos, por sua vez, começaram a desenvolver a ideia de celebrar o nascimento de indivíduos, embora ainda com foco em figuras proeminentes. Deuses e deusas do panteão grego e romano tinham suas datas de nascimento celebradas com festivais e oferendas. A deusa Ártemis, associada à lua, tinha bolos redondos de mel e velas acesas oferecidos em seu templo – um precursor intrigante dos bolos de aniversário com velas que conhecemos hoje. Essa prática, que visava trazer a luz e o brilho da lua, era uma forma de homenagem e busca por proteção divina. Para os romanos, o dies natalis (dia do nascimento) de imperadores e membros da elite era um evento significativo, com banquetes e jogos públicos. A importância dada a essas datas demonstrava a estrutura hierárquica da sociedade e a veneração pelos poderosos. O cidadão comum, no entanto, raramente tinha seu nascimento marcado por celebrações públicas. A sua vida individual era menos central para a narrativa social.

            Foi a partir do cristianismo que a comemoração do aniversário individual começou a adquirir uma conotação mais complexa. Inicialmente, os primeiros cristãos resistiram à ideia de celebrar o nascimento, considerando-o uma prática pagã. A ênfase estava na vida após a morte e na celebração dos martírios, que eram vistos como o verdadeiro nascimento para a vida eterna. A exceção notável era o Natal, a celebração do nascimento de Jesus Cristo, que, por volta do século IV, começou a ser amplamente comemorado. No entanto, o aniversário de indivíduos comuns permaneceu em segundo plano por um longo tempo. Essa relutância inicial serve como um lembrete de que a importância que atribuímos ao aniversário é, em parte, uma construção puramente cultural, sujeita a mudanças e influências religiosas e sociais. A Idade Média, com sua forte influência da Igreja, continuou a ver poucas celebrações de aniversários individuais. O foco estava na celebração dos santos e das festas religiosas. No entanto, um desenvolvimento crucial que lançou as bases para a prática moderna foi o registro de nascimentos. Com o tempo, as paróquias começaram a manter registros de batismos, o que indiretamente ajudou a solidificar a ideia de uma data específica de nascimento para cada pessoa.

            A verdadeira virada para a celebração generalizada do aniversário começou a tomar forma na Alemanha, com o desenvolvimento do Kinderfest (festa infantil) no século XVIII. Embora as origens exatas sejam um tanto obscuras, essa tradição é frequentemente citada como um marco. Crianças eram presenteadas com bolos com velas, e o número de velas correspondia à idade da criança, com uma vela extra simbolizando a luz da vida ou a esperança de mais um ano. Essa prática se espalhou gradualmente pela Europa e, eventualmente para o resto do mundo, levando consigo a doçura do bolo, o brilho das velas e a emoção dos presentes. A Revolução Industrial e a crescente alfabetização também desempenharam um papel fundamental na popularização do aniversário. Com a ascensão da classe média e a maior disponibilidade de produtos manufaturados, como cartões de aniversário e pequenos presentes, a celebração tornou-se mais acessível e difundida. A individualidade ganhou mais destaque na sociedade, e, consequentemente, a celebração da vida de cada pessoa passou a ser valorizada. O aniversário deixou de ser um privilégio de reis e deuses para se tornar um direito de todos.

            A analogia do aniversário com o navegador que marca sua jornada continua a ser poderosa. Cada vela em um bolo é como uma marca em um mapa, um ponto de referência que indica o progresso. Os presentes são como os suprimentos e as ferramentas que nos ajudam a continuar a viagem, enquanto os votos de felicidades são o apoio da tripulação, o encorajamento para enfrentar as próximas ondas. A festa em si é o momento de recarregar as energias, refletir sobre a rota percorrida e sonhar com os horizontes que ainda estão por vir. A importância dada ao aniversário é multifacetada. Em primeiro lugar, é uma celebração da vida. Em um mundo onde a existência é transitória, cada ano de vida é um presente a ser valorizado. É um momento para agradecer a jornada, as experiências e as pessoas que nos acompanham. Em segundo lugar, é uma celebração da individualidade. O aniversário é o dia em que somos o centro das atenções, o que reforça nossa identidade e nosso valor como seres únicos. Receber parabéns e presentes é uma validação de nossa existência e da importância que temos para aqueles ao nosso redor. É um momento para nos sentirmos especiais e amados.

            Em terceiro lugar, é um momento de reflexão e transição. O aniversário nos convida a olhar para trás, para os desafios superados e as conquistas alcançadas. É também uma oportunidade para olhar para frente, para definir novas metas e aspirações. É uma ponte entre o passado e o futuro, um marco que nos impulsiona para o próximo capítulo. Além disso, o aniversário é um evento social. É uma oportunidade para reunir amigos e familiares, fortalecer laços e criar memórias. As festas de aniversário são rituais de conexão, onde compartilhamos alegria e celebramos a união. Elas reforçam a teia de relacionamentos que nos sustenta e nos dá um senso de pertencimento. Finalmente, a comemoração do aniversário é um ato de esperança. A cada vela apagada, a cada desejo feito, expressamos a crença em um futuro promissor, em mais um ano de felicidade, saúde e realizações. É um otimismo intrínseco à condição humana, a capacidade de sonhar e de projetar um amanhã melhor. Desde os rituais pagãos que homenageavam deuses e governantes até as celebrações íntimas e grandiosas dos dias atuais, o aniversário evoluiu de uma observância de poder para uma celebração universal da vida individual. A importância que o ser humano dá a essa data não é meramente uma convenção social, mas um reflexo profundo de nossa psique: nossa necessidade de marcar o tempo, reconhecer nossa existência, celebrar nossos laços e nutrir a esperança por um futuro. É a pausa do navegador, não apenas para um brinde, mas para um olhar sincero ao vasto oceano da vida, reafirmando que cada jornada, por mais comum que seja, é digna de celebração.

            E você, observa todos os detalhes dessa celebração ou não passa de apenas mais 365 dias, 12 meses e um ano que se foi? Por vezes e circunstâncias nós consideramos esta passagem como apenas mais um ritual diante de uma lista de outras datas comemorativas. Eu, particularmente, conheço algumas pessoas (não muitas) que afirmam categoricamente que não dedicam a mínima importância para uma mensagem de carinho e afeto, um cartão amoroso, um presente escolhido “a dedo” ou qualquer outra forma de manifestação da lembrança ou consideração. Contudo, fico a refletir: será mesmo que não se importam? Talvez, no íntimo pensamento eles se importam, sim! Não podemos negligenciar o fato de que o nosso inconsciente tem (dentre muitas funções) a função de nos proteger da tristeza e do sofrimento. E....o modo mais eficiente é manter a mente saudosa e necessitada de atenção anestesiada e, aparentemente, sem interesse por qualquer que seja um motivo para celebrar. Enfim, feliz aniversário para você (caso não for o seu dia, o meu , É!).


HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR

  HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR by Heitor Jorge Lau             É uma verdade quase inquestionável que, em algum mome...