TODO
SER HUMANO É CONSCIENTE?
O
ALVORECER DA CONSCIÊNCIA
COM
A DESTRUIÇÃO DA MENTALIDADE BICAMERAL
O
autor e psicólogo Julian Jaynes descreveu em seu livro "A Origem da
Consciência e o Colapso da Mente Bicameral", que a mente humana era
dividida em duas câmaras: uma com os instintos, onde o homem sabe que
precisa realizar funções básicas para a sua sobrevivência, além de sua função
na sociedade. Noutra, com uma "voz da consciência", que era
interpretada como uma voz divina e não como um próprio "eu". Essa Mentalidade
Bicameral sofreu um colapso quando o ser humano passou a se tornar consciente
de si mesmo. A Mentalidade Bicameral é uma hipótese introduzida por Jaynes, que
argumentou que os ancestrais humanos, até os antigos gregos, não consideravam
as emoções e os desejos como decorrentes de suas próprias mentes, mas como
consequências de ações de deuses externos a eles. Mas será que nós realmente
somos conscientes? Será que a mente bicameral não existe mais?
Em O
Oráculo da Noite, o neurocientista Sidarta Ribeiro faz uma alegação
curiosa: ele diz que a importância cultural dos sonhos diminuiu com a
popularização da escrita. Afinal, qual o significado disso? As religiões, por
exemplo, sempre estiveram conectadas aos sonhos. A tradição budista e cristã diz
que os nascimentos de Buda e de Jesus, respectivamente, foram anunciados em
sonho. Anjos apareciam a Maomé em seus sonhos. No xamanismo, a conexão com o
transcendental, a comunicação com ancestrais e divindades depende de estados
alterados de consciência dos quais os sonhos são um exemplo.
A
perspectiva de Sidarta nesse livro é que a escrita diminuiu a necessidade das
experiências oníricas na espiritualidade. Isso porque a escrita permite o
registro das experiências subjetivas. Quer dizer, se alguém sonho com uma
divindade dizendo alguma coisa, é possível escrever o conteúdo da mensagem para
que outras pessoas leiam, sem que elas mesmas tenham que ter de novo as mesmas
experiências. O acesso à religião passa a ser pela leitura, então as mensagens
dos sonhos ficam menos subjetivas e se tornam mais coletivas. Isso pavimentou o
caminho para que a mensagem das religiões passasse a ser cada vez mais
universalista e preocupada com a salvação pessoal. Ou seja, um elemento de
pessoalidade continua a existir, mas ao mesmo tempo serve como projeto para a
humanidade, algo como a lei de ouro “não faça aos outros o que não gostaria que
fizessem a você mesmo”.
Isso
começa a ocorrer quando a escrita deixa de ser usada como mero registro
contábil nas primeiras civilizações agrícolas e passa a ser uma reprodução mais
fiel do cotidiano (a Era Axial, de 800 a.C. até 200 a.C). Não à toa, nesse
período nascem várias das tradições filosóficas e religiosas mais conhecidas
hoje. Por exemplo, “religiões do livro”, como Judaísmo, Hinduísmo e Budismo,
tomam forma nesse período. O conhece a ti mesmo da filosofia socrática, que
traz o ser humano para o centro das indagações filosóficas, também surge aí. Isso
significa que, de algum modo, a utilização da escrita como um reflexo da
oralidade modificou fundamentalmente a psicologia humana. Riscar materiais como
argila, papiro ou papel para registrar e observar seus próprios pensamentos
trouxe uma nova forma de consciência para a humanidade. É como se a escrita
fosse um aplicativo instalado no cérebro humano, criando novas funções e
aprimorando as existentes.
Essa
influência da escrita sobre a consciência foi proposta no livro “A Origem
da Consciência com o Colapso da Mente Bicameral”, escrito pelo psicólogo Julian
Jaynes. Ele argumenta que, antes desse uso oral da escrita, as pessoas tinham a
mente dividida em duas câmaras. Uma câmara dá ordens e a outra câmara obedece.
Isso é basicamente o que acontece quando as pessoas estão distraídas olhando
pela janela do ônibus e um pensamento surge, algo como “Puxa, esqueci que hoje
tenho um compromisso tal hora. que horas são agora?”, aí você pergunta a hora
para a pessoa mais próxima sem pensar muito no que está fazendo. Isso acontece
também na direção, quando o motorista experiente entra num estado de fluxo e só
age, sem refletir muito, sem questionar pensamentos que por ventura brotem. Você não sabe o porquê
nem como surgiu esse pensamento, só sabe que do nada ele apareceu como se
tivesse sido soprado por alguém. Pois é exatamente isso que as pessoas há
milênios achavam. Essas vozes alucinatórias eram os deuses falando com os
humanos. Esses humanos eram inconscientes no mesmo sentido do motorista em
fluxo. Você não é um robô, mas é como se a capacidade de questionar esse fluxo
fosse menor e menos voluntária.
Vislumbres
de consciência apareciam em momentos de estresse. Hoje ainda passamos por isso.
Já reparou que no dia da prova da autoescola erramos procedimentos que nunca
erramos nos treinos? Isso acontece porque sob estresse tendemos a não entrar em
estado de flow nas tarefas. Ficamos hipervigilantes em relação
a qualquer comportamento e isso dificulta a realização de certas tarefas. Uma
voz alucinatória começa a narrar o que estamos fazendo, a dizer o que foi
feito, o que será feito. Você está nervoso e pensa em cada movimento do
volante, da marcha.
A
diferença entre nós e pessoas pré-Era Axial é o gap entre as vozes
alucinatórias e a tomada de decisão. Não havia muita reflexão antes de realizar
um comportamento. Não havia introspecção. As pessoas só questionavam essas
vozes e suas próprias ações nos momentos de estresse, quando esse fluxo
automático das coisas se rompia. A capacidade de ouvir essas vozes internas e
debater com elas racionalmente não nasce pronta nos humanos. Não é nata. Pesar
prós e contras cuidadosamente e tomar decisões racionalmente é algo que se
aprende. Pode-se dizer que o ser humano não nasce racional, mas torna-se.
Julian
Jaynes argumenta que em obras como Ilíada as pessoas pareciam ter Mentalidade Bicameral.
Por exemplo, Aquiles nunca pensava sobre si mesmo, nunca se engajava num
processo de introspecção. Eram sempre os deuses instruindo sobre suas ações. Do
mesmo jeito, no Antigo Testamento bíblico a voz de Javé ordenando coisas se
parecia muito com um processo de tomada de decisão rudimentar. Por exemplo,
Javé fala para Abraão sacrificar seu filho para provar sua fé. No meio do
procedimento Javé diz que o fato de Abraão ter concordado com o sacrifício já
era suficiente prova. Isso poderia muito bem ter sido o patriarca deliberando e
tirando conclusões diferentes sobre o que significariam suas próprias atitudes.
Mas essas vozes alucinatórias em sua cabeça não eram entendidas como
pensamentos como as entendemos hoje. Era a voz divina.
A
escrita possibilita essa habilidade de introspecção porque permite colocar as
ideias num meio físico manipulável. O argumento é que assim como não é possível
escrever um artigo de cabeça, sem escrever e estar o tempo todo alterando o que
foi escrito, não é possível organizar seus próprios estados internos e
questioná-los muito eficientemente. Não é que toda pessoa precise de um diário
para ser capaz de pensar sobre o que ela mesma pensa. A ideia é que a criação
da escrita como forma narrativa criou um trending cultural. A escrita
fabricou a possibilidade cultural de um novo modo de ser humano. Você não
precisa de um diário, mas só de viver numa cultura letrada você já aprende
oralmente que você tem uma biografia, que pode controlar seus devaneios
internos e transformá-los em reflexão racional. Simples assim!
Nenhum comentário:
Postar um comentário