“Aqueles que passam por
nós não vão sós, não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”.
By Antoine de Saint-Exupéry
A
relação de doenças mentais ou distúrbios metais (seja qual for a melhor
denominação) é grande e, ao que tudo indica, parece que não vai parar de crescer.
Será que o acréscimo de denominações é decorrente de um aumento exponencial de
desarranjos mentais da humanidade (de uns tempos para cá) ou se deve ao fato dos
profissionais que lidam com a mente não saberem mais o que fazer para “encaixar”
um paciente na extensa lista de transtornos mentais do manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais?
A
taxonomia dos profissionais da saúde mental oferece um espectro amplo de
dificuldades tanto doutrinárias quanto técnicas. Quando procuramos identificar,
particularizar ou classificar os transtornos mentais, encontramos questões e
problemas advindos da história da medicina e da psiquiatria, ideologia, maneira
de pensar, do ambiente social, da cultura vigente e até das opções políticas.
Tal se dá, entre outras razões, pela dificuldade de aplicação do modelo
biomédico nos transtornos mentais. Na individuação das enfermidades ou doenças
temos duas maneiras básicas de classificação: o modelo biomédico e o modelo
psicossocial. O modelo biomédico exige para a taxonomia das enfermidades
que possamos determinar com clareza e segurança qual a etiologia da doença, ou
seja, qual sua causa morfopatológica ou fisiopatológica, causa esta que deve
ser única para aquela doença.
Deve
ser estabelecida também a patogenia – o mecanismo pelo qual a causa produz a
doença: como as alterações anatomopatológicas ou fisiopatológicas levam ao
estabelecimento dos sinais, sintomas ou indícios clínicos da enfermidade. A
história natural também deve ser instituída: como a doença vai evoluir e o que
ela vai causar em seu padecente, as manifestações físicas, psíquicas e sociais.
Esse modelo é plenamente aplicado nas doenças físicas ou somáticas. Tomemos
como exemplo o diabetes. Sabemos claramente sua causa – alterações no
metabolismo dos glicídios –, como tais alterações produzem os sintomas e como a
doença evolui. Já com as doenças mentais, não temos tal facilidade. Com
exceção das demências e das oligofrenias moderadas, graves e profundas, o
modelo biomédico é de difícil aplicação. Tanto que tais entidades podem ser
consideradas mais neurológicas que psiquiátricas.
Nas
psicoses, particularmente nas antigamente chamadas endógenas – esquizofrenia e
psicose maníaco-depressiva (transtorno bipolar do humor), ele pode ser
aplicado, mas com adaptações e pressupostos, o que torna tal objetivo
sujeito a contestação e dificuldades de verificação empírica. Mas um
grande contingente de transtornos mentais – se assim podemos nomear tais
entidades – fica inteiramente fora da aplicação do modelo biomédico. Estamos
falando das neuroses e das psicopatias (transtornos de personalidade). Não é
possível estabelecer uma etiologia definida e incontestável, a patogenia é
inteiramente desconhecida, e a evolução, imprevisível. E então, por que razão
são consideradas transtornos, doenças ou enfermidades? A solução, considerada
por muitas correntes do pensamento contemporâneo como arbitrária, ideológica,
desumana e totalitária, é a aplicação do modelo psicossocial. São
transtornos porque assim o exigem a história das mentalidades, a sociedade, a
cultura, os valores vigentes e – por que não? – os que detêm o poder.
As
psicopatias (transtornos de personalidade) pertencem a esse grupo. São
“perturbados”, “transtornados”, “doentes” porque estão fora da norma
sociocultural vigente, não funcionam como deles se espera (a família, o grupo,
a comunidade, a sociedade), incomodam, criam problemas, são esquisitos e
diferentes, infringem a lei e os costumes, não se adaptam, não produzem, não
rendem e assim por diante. Tal contingente de pessoas “anormais” começou a ser
identificado quando o capitalismo comercial e industrial passou a dominar a
economia mundial. Na Idade Média eram considerados no máximo como marginais (à
margem da sociedade): vagabundos, prostitutas, bandoleiros, mendigos e outros, mas
não “doentes”. Agora, no entanto, era preciso que entrassem na ordem de
produção. O capitalismo, em especial o industrial, não tolera aqueles que não
produzem.
O
calvinismo, seita protestante fundada no início da reforma protestante, veio
dar um colorido religioso a essa ideologia: a acumulação do capital e a riqueza
eram provas da benevolência de Deus e da salvação eterna. No século XVIII, em
suas etapas finais, o Iluminismo, a ilustração vieram em socorro desses
anormais e selecionou dentre eles os que poderiam ser considerados “doentes”.
Assim, criou-se a categoria dos degenerados morais e mais tarde dos psicopatas.
Hoje tanto a classificação internacional de doenças quanto a classificação
norte-americana de doenças mentais o incluem em seus itens e individualiza a
categoria e subtipos.
Bastam
cinco minutos para identificar o paciente instável, inflexível, teatral, inseguro,
arrogante, submisso, lunático, desconfiado, misantropo, transgressor... Estas
podem ser apenas características individuais, que não preenchem critérios para
um diagnóstico psiquiátrico. Mas também podem estar presentes em pessoas que,
por seu comportamento repetitivo, peculiar e capaz de gerar prejuízo, causam
danos físicos e psicológicos a si mesmas ou aos que estão ao seu redor. Elas seduzem,
manipulam, surpreendem, espantam, assustam, sufocam. Tudo em seu comportamento
é exagerado: amor demais, carência demais, desconfiança demais, controle
demais, raiva demais. Invariavelmente, passam a impressão de que alguma coisa
está fora da ordem.
E
está mesmo! A partir do fim da adolescência, os indivíduos com essa natureza
apresentam um jeito de ser caracterizado por um padrão de comportamento
inflexível e repetitivo, que causa prejuízo significativo na maneira como se
relacionam afetivamente, em sociedade, no trabalho ou na família. Seria possível
denomina-los de psicopatas do cotidiano. É preciso deixar claro que a
psicopatia se refere à atual classificação médico psiquiátrica denominada
“transtornos específicos da personalidade” Pessoas com esses transtornos, com
frequência e sem perceber, causam intenso sofrimento a quem convive com elas.
Elas não perdem o juízo da realidade ou sofrem com surtos, delírios e
alucinações. A maneira como interagem com o mundo é que as torna de difícil
convivência - o transtorno de personalidade não é uma condição
necessariamente associada a crimes bárbaros e cruéis.
A
humanidade está sendo freneticamente bombardeada, diariamente, com notícias
sobre crimes sexuais, casos de assédio moral, assassinatos por motivo torpe ou
fútil, violência doméstica, maus tratos a animais. O psicopata do cotidiano
tanto pode ser um líder místico que convence seus seguidores ao suicídio
coletivo quanto um garoto que depreda patrimônio público e posta foto de seu
ato na internet. Mas seus traços de personalidade também aparecem nos
motoristas que perdem a cabeça no trânsito, nos vizinhos que vão parar na
delegacia após uma discussão no condomínio ou nos pais e nas mães que fazem
chantagem emocional com os filhos até levá-los a tomar atitudes contrárias às
suas vontades. Em maior ou menor grau, esses indivíduos deixam marcas na vida
dos seres humanos. Compreendê-los e aceitá-los parte de um simples princípio: eles
são assim, não entendem o problema e se recusam a tratá-lo. No máximo, após
um longo processo de autoconhecimento, conseguem entender o mecanismo de
repetição de suas atitudes e minimizar seus efeitos.
Mas
por que eles são assim? E por que esse jeito de ser é considerado prejudicial?
Entender o que se passa com um indivíduo “cabeça dura”, de “gênio difícil”,
“esquisitão”, “pipa avoada”, “pavio curto” e tantas outras definições populares
requer, como primeiro passo, saber que a nossa forma de sentir, pensar, nos
comportar, o nosso jeito de ser, aquilo que nos diferencia uns dos outros, é o
que denominamos de personalidade. Mas o que seria a personalidade? Ao
longo da história, cientistas e pesquisadores se debruçaram sobre a questão e,
hoje, uma teoria amplamente aceita indica que se trata do resultado da
combinação e da interação entre dois componentes: o temperamento e o caráter.
O temperamento é herdado geneticamente e regulado biologicamente. Já o caráter
está ligado à relação do temperamento com tudo o que vivenciamos e aprendemos
na relação com o mundo exterior. Portanto, a personalidade é considerada uma
organização dinâmica, resultante de fatores de ordem biopsicossocial.
Em
síntese, o temperamento seria a predisposição biológica para as sensações,
motivações e reações automáticas no plano emocional. Ele é a base do humor, o
ingrediente que fornece o tempero e colorido emocional, permanecendo
relativamente estável ao longo da vida. A ciência comprovou que a herança
genética não se limita apenas à cor dos olhos, dos cabelos ou da pele, à
estatura, aos distúrbios metabólicos e, às vezes, às malformações físicas. Ela
também influencia as tendências e respostas comportamentais.
Sobre
o caráter, é possível afirmar que ele está associado à consciência que a pessoa
tem de si, dos outros e do mundo que a rodeia. À luz da ciência moderna, a
ideia de que cada ser humano nasce com uma índole, boa ou má, foi substituída
pelo conceito de que ele tenha o livre-arbítrio para agir de acordo com os seus
princípios pessoais, mas sem ignorar o fato de que é parte integrante de um
grupo social. Assim, na formação do caráter, há um componente biológico e
outro ambiental. O caráter seria a porção aprendida, influenciada pelo
temperamento e, ao mesmo tempo, capaz de influenciá-lo. Portanto, por mais
força que o componente biológico tenha na formação da personalidade, as
experiências vividas e o aprendizado contribuem para a equação final, sempre
dinâmica.
Com
tantos fatores em discussão, o fato é que a complexidade do comportamento
humano vem gerando controvérsias há séculos (e continuará). A personalidade
resulta da combinação de fatores biológicos e ambientais, mas a ciência ainda
não consegue precisar qual o peso de cada um desses elementos em sua formação
(relativo meu caro amigo, amiga). Ao longo da história, a balança já pendeu
para um e para outro lado, nunca sendo conclusiva. Em determinadas épocas,
havia a certeza de que o homem nasce com determinada índole que é imutável. Em
outras, predominou a tese de que o meio pode, sim, influenciar o jeito de ser
de um indivíduo (concordo!). Mesmo sem saber a proporção exata da influência do
meio na formação do caráter, é evidente que viver num ambiente positivo, com
afeto, condições sociais adequadas e noção de valores como compaixão e empatia
pode aumentar a chance de uma pessoa não desenvolver um traço patológico de
personalidade (e vice-versa).
Enfim...independentemente
dessa ou daquela faceta, a personalidade, ou o jeito de ser, é resultado de uma
combinação única e original, que funciona num espectro de traços positivos e
negativos, mais ou menos adaptados. Porém, quando esse jeito de ser apresenta,
desde cedo, características inflexíveis, rígidas e disfuncionais muito
acentuadas, é possível que se trate de uma personalidade perturbada. Perturbada
para si e, mais frequentemente, perturbadora para os outros. Simples assim!