segunda-feira, 31 de março de 2025

VIDA, EXISTÊNCIA E INTERPRETAÇÃO

 


VIDA, EXISTÊNCIA E CLAREZA DE INTERPRETAÇÃO:

UMA TRÍADE INTERLIGADA

Vida e existência são conceitos que, à primeira vista, podem parecer sinônimos ou, pelo menos, intimamente relacionados. Porém, ao olharmos mais de perto, percebemos nuances que os diferenciam e, ao mesmo tempo, os conectam. A clareza de interpretação, por sua vez, surge como a lente pela qual compreendemos e navegamos por esses dois pilares fundamentais da nossa jornada. Juntas, essas três ideias formam um triângulo dinâmico que molda nossa visão de mundo e nossa experiência como seres humanos.

 

Vida: Uma Experiência Pulsante

A vida é movimento, ação, emoção. É o ritmo acelerado do coração em momentos de alegria e o silêncio introspectivo que acompanha a contemplação. Ao observarmos a natureza, desde o voo elegante de um pássaro até o brotar de uma flor em terreno árido, percebemos que a vida é marcada pela transformação contínua. Contudo, enquanto vivemos, muitas vezes negligenciamos sua essência. Corremos atrás de metas, enfrentamos desafios e raramente paramos para refletir sobre o que significa estar vivo. Há uma beleza intrínseca na simplicidade da vida. É nos pequenos momentos – o sorriso inesperado de um estranho, o cheiro de terra molhada após a chuva, a conexão com outra pessoa – que encontramos o verdadeiro significado de viver. No entanto, essas experiências só ganham profundidade quando inseridas no contexto da existência.

 

Existência: O Pano de Fundo da Vida

Existência é a estrutura ampla e filosófica que abriga a vida. Se a vida é a experiência, a existência é o enigma. É a pergunta que ecoa desde tempos imemoriais: “Por que estamos aqui?” Enquanto a vida nos oferece momentos tangíveis, a existência nos mergulha em um universo de questionamentos. Alguns buscam respostas na ciência, outros na espiritualidade, e há aqueles que encontram conforto no mistério. A existência nos desafia a ir além do imediatismo da vida. Ela nos convida a ponderar sobre o impacto de nossas ações, sobre nosso propósito e sobre como nossas jornadas individuais se entrelaçam com a vasta tapeçaria da humanidade. Esse processo de reflexão nos aproxima da terceira dimensão do triângulo: a clareza de interpretação.

 

Clareza de Interpretação: A Chave para Compreender

A clareza de interpretação é essencial para dar sentido à vida e à existência. Sem ela, nossas experiências podem se tornar confusas e nossos questionamentos existenciais, fragmentados. A clareza não implica respostas definitivas, ao contrário, ela sugere uma compreensão mais profunda e consciente das perguntas que fazemos. Interpretar a vida com clareza significa enxergar além das distrações cotidianas e das narrativas simplistas. Significa valorizar as complexidades e contradições que fazem parte da nossa experiência humana. Por exemplo, momentos de sofrimento, frequentemente vistos como negativos, podem ser reinterpretados como oportunidades de crescimento e aprendizado. Da mesma forma, a existência, com seu caráter muitas vezes abstrato e filosófico, pode ganhar forma e relevância quando abordada sob a luz da clareza. Essa clareza não se limita à introspecção, ela também se estende à maneira como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Quando interpretamos a vida e a existência com empatia e abertura, somos capazes de construir conexões mais significativas e genuínas. Somos capazes de reconhecer que, embora cada pessoa tenha sua própria perspectiva e jornada, há um fio comum que nos une.

 

Interconexões: Um Triângulo Dinâmico

Embora vida, existência e clareza de interpretação sejam conceitos distintos, eles estão profundamente interligados. A vida nos fornece as experiências e os momentos que estimulam reflexões sobre a existência. Por sua vez, a existência nos desafia a buscar clareza, a interpretar nossa jornada com propósito e profundidade. Considere, por exemplo, o impacto de um encontro inesperado. Uma conversa casual pode transformar-se em algo que redefine nossas prioridades ou nos faz questionar quem somos. Esse momento de vida, inicialmente mundano, adquire profundidade quando inserido no contexto da existência. E, ao buscar clareza de interpretação, somos capazes de extrair significado e crescer a partir da experiência. Esse ciclo se repete em inúmeras formas ao longo de nossas vidas. Em momentos de alegria e sofrimento, em períodos de dúvida e certeza, continuamos a navegar entre esses três pilares. Juntos, eles moldam nosso entendimento de quem somos e de como nos conectamos com o mundo ao nosso redor.

 

Vivendo com Propósito e Clareza

A vida é um presente, mas sua verdadeira riqueza só é revelada quando exploramos a existência e buscamos clareza de interpretação. Para viver plenamente, precisamos abraçar a interconexão desses três conceitos. Precisamos reconhecer que, enquanto a vida nos oferece momentos preciosos, a existência nos desafia a buscar significado, e a clareza nos guia nesse processo. Ao refletirmos sobre esses pilares, somos incentivados a viver de forma mais consciente e intencional. Somos convidados a enxergar a beleza nas complexidades da vida, a encontrar propósito na vastidão da existência e a interpretar nossas jornadas com clareza e compaixão. Esse triângulo dinâmico não é apenas uma estrutura filosófica, é um guia para viver plenamente e com propósito.

quarta-feira, 26 de março de 2025

A RAIZ DA SOMBRA COLETIVA

 


A SOMBRA COLETIVA

Atualmente, a sociedade se defronta com o lado escuro da natureza humana toda vez que abre um jornal ou ouve o noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para toda a moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a sombra coletiva. A sombra coletiva - a maldade humana – encara a todos de praticamente todas as partes. Ela salta das manchetes dos jornais, vagueia pelas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas. Entoca-se nas chamativas sex-shops das cidades. Desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional, corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário. Conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos, tanto faz, e vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários. Através de canos ocultos, despeja a poluição nos rios, em todos os rios e oceanos. Com invisíveis pesticidas, envenena o alimento de cada dia.

Essas observações não constituem algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. Nossa época fez, de todos nós, testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há como evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos coniventes, os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. O anseio interior por integração — agora tornado manifesto na máquina de comunicação global — força todos a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda parte. Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida. Quando essas últimas se tomam objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de bode expiatório ou de criação do inimigo.

Para os americanos anticomunistas, a U.R.S.S. era o Império do Mal. Para os muçulmanos, os Estados Unidos são o Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são vermes bolcheviques. Para o monge asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo. Para os sul-africanos defensores do apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os negros são subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos. O poder hipnótico e a natureza contagiosa dessas fortes emoções ficam evidentes na extensão e universalidade das perseguições raciais, das guerras religiosas e das táticas de busca de bodes expiatórios.

E, portanto, é assim que seres humanos tentam desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são superiores — e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a eles. Ao longo da história, a sombra tem surgido através da imaginação humana como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um extraterrestre ou um homem tão vil impossível de se espelhar — ele está tão distante quanto um ET. Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido, então, um dos propósitos básicos da arte e da literatura. Como disse Nietzsche: "Temos arte para que a realidade não nos mate." Usando as artes e a mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou demoníacas quanto a sombra, a tentativa é de ganhar poder sobre ela, quebrar o seu feitiço.

Isso pode ajudar a explicar por que o ser humano fica tão excitado com as violentas arengas de arautos da guerra e de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do mundo, transformamos dentro da nossa mente esses outros em receptáculos do mal, em inimigos da civilização. A projeção também pode ajudar a explicar a imensa popularidade dos filmes de terror. Através de uma representação simbólica do lado da sombra, os impulsos para o mal podem ser encorajados, ou talvez aliviados, na segurança de um livro ou de uma tela.

As crianças, tipicamente, começam a aprender os assuntos da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra entre as forças do bem e do mal, fadas-madrinhas e temíveis demônios. As crianças, tanto quanto os adultos, também sofrem simbolicamente as provações de seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os padrões universais do destino humano. Na batalha da censura que hoje se desenrola no campo da mídia e da música, aqueles que pretendem estrangular a voz da sombra talvez não compreendam sua urgente necessidade de ser ouvida. Num esforço para proteger os jovens, os censores reescrevem Chapeuzinho Vermelho e fazem com que ela não seja mais devorada pelo lobo, mas, desse modo, acabam deixando os jovens despreparados para enfrentar o mal com que irão se defrontar.

Assim como a sociedade, cada família também constrói os seus próprios tabus, as suas áreas proibidas. A sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção consciente de uma família, aqueles sentimentos e ações que são considerados demasiado ameaçadores à sua autoimagem. Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça talvez seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião. Numa família liberal e ateia, talvez seja a opção pelos relacionamentos interraciais. Na sociedade, espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos na sombra familiar, mas hoje emergem, em proporções epidêmicas, à luz do dia. O lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de civilização e educação.

Ele tem suas raízes numa sombra biológica, que se baseia nas próprias células. Os ancestrais animalescos do ser humano, afinal de contas, sobreviveram graças as presas e garras. A besta interior do ser humano está viva, muito viva, só que a maior parte do tempo permanece encarcerada. Muitos antropólogos e sociobiologos acreditam que a maldade humana seja resultado do controle da agressividade animal, da opção pela cultura em detrimento da natureza e da perda de contato com a selvageria primitiva. O médico e antropólogo Melvin Konner conta, em The Tangled Wing – A Asa Emaranhada, que foi a um zoológico, viu uma placa que dizia "O Animal Mais Perigoso da Terra" e se descobriu olhando para um espelho.


quinta-feira, 6 de março de 2025

MENTE MULTITAREFA. BOM OU RUIM?

 

MENTE MULTITAREFA. BOM OU RUIM?

O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica relacionada ao tempo e à atenção, que tem efeitos novamente na estrutura da atenção. A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem.

Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo, também, com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Ao mesmo tempo tem de vigiar sua prole e manter o olho em seu(sua) parceiro(a). Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si. Não apenas a multitarefa, mas também atividades como jogos de computador geram uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem. As mais recentes evoluções sociais e a mudança de estrutura da atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem.

Entrementes, o assédio moral, por exemplo, alcança uma desproporção pandêmica. A preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver. Os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, devem-se a uma atenção profunda, contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda. Essa atenção profunda é cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a hiperatenção. Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo.

Walter Benjamin (Walter Benedix Schönflies Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão, associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica) chama a esse tédio profundo de um “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”. Se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pássaro onírico está desaparecendo cada vez mais na modernidade. Não se “tece mais e não se fia”. O tédio seria um “pano cinza quente, forrado por dentro com o mais incandescente e o mais colorido revestimento de seda que já existiu” e no qual “nos enrolamos quando sonhamos”. Nos “arabescos de seu revestimento estaríamos em casa”. Com o desaparecimento do descanso, teriam se perdido os “dons do escutar espreitando” e desapareceria a “comunidade dos espreitadores”. Nossa comunidade ativa é diametralmente oposta àquela. O “dom de escutar espreitando” radica-se precisamente na capacidade para a atenção profunda, contemplativa, à qual o ego hiperativo não tem acesso.

Segundo Hannah Arendt, a sociedade moderna, enquanto sociedade do trabalho, aniquila toda possibilidade de agir, degradando o homem a um animal laborans − um animal trabalhador. As descrições do animal laborans moderno de Arendt não correspondem às observações que podemos fazer na sociedade de desempenho de hoje. O animal laborans pós-moderno não abandona sua individualidade ou seu ego para entregar-se pelo trabalho a um processo de vida anônimo da espécie. A sociedade laboral individualizou-se numa sociedade de desempenho e numa sociedade ativa. O animal laborans pós-moderno é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se. Ele pode ser tudo, menos ser passivo.

Enfim, se renunciássemos à individualidade fundindo-se completamente no processo da espécie, teríamos pelo menos a serenidade de um animal. Visto com precisão, o animal laborans pós-moderno é tudo menos animalesco. É hiperativo e hiperneurótico. Deve-se procurar um outro tipo de resposta à questão que pergunta por que todas as atividades humanas na Pós-modernidade decaem para o nível do trabalho. A perda da capacidade contemplativa é responsável pela histeria e nervosismo da sociedade ativa moderna. Simples assim!

 


PENSAMENTO


 

quarta-feira, 5 de março de 2025

CONSCIÊNCIA. O SER HUMANO É CONSCIENTE OU APRENDE A SER CONSCIENTE?

 


TODO SER HUMANO É CONSCIENTE?

O ALVORECER DA CONSCIÊNCIA

COM A DESTRUIÇÃO DA MENTALIDADE BICAMERAL

O autor e psicólogo Julian Jaynes descreveu em seu livro "A Origem da Consciência e o Colapso da Mente Bicameral", que a mente humana era dividida em duas câmaras: uma com os instintos, onde o homem sabe que precisa realizar funções básicas para a sua sobrevivência, além de sua função na sociedade. Noutra, com uma "voz da consciência", que era interpretada como uma voz divina e não como um próprio "eu". Essa Mentalidade Bicameral sofreu um colapso quando o ser humano passou a se tornar consciente de si mesmo. A Mentalidade Bicameral é uma hipótese introduzida por Jaynes, que argumentou que os ancestrais humanos, até os antigos gregos, não consideravam as emoções e os desejos como decorrentes de suas próprias mentes, mas como consequências de ações de deuses externos a eles. Mas será que nós realmente somos conscientes? Será que a mente bicameral não existe mais?

Em O Oráculo da Noite, o neurocientista Sidarta Ribeiro faz uma alegação curiosa: ele diz que a importância cultural dos sonhos diminuiu com a popularização da escrita. Afinal, qual o significado disso? As religiões, por exemplo, sempre estiveram conectadas aos sonhos. A tradição budista e cristã diz que os nascimentos de Buda e de Jesus, respectivamente, foram anunciados em sonho. Anjos apareciam a Maomé em seus sonhos. No xamanismo, a conexão com o transcendental, a comunicação com ancestrais e divindades depende de estados alterados de consciência dos quais os sonhos são um exemplo.

A perspectiva de Sidarta nesse livro é que a escrita diminuiu a necessidade das experiências oníricas na espiritualidade. Isso porque a escrita permite o registro das experiências subjetivas. Quer dizer, se alguém sonho com uma divindade dizendo alguma coisa, é possível escrever o conteúdo da mensagem para que outras pessoas leiam, sem que elas mesmas tenham que ter de novo as mesmas experiências. O acesso à religião passa a ser pela leitura, então as mensagens dos sonhos ficam menos subjetivas e se tornam mais coletivas. Isso pavimentou o caminho para que a mensagem das religiões passasse a ser cada vez mais universalista e preocupada com a salvação pessoal. Ou seja, um elemento de pessoalidade continua a existir, mas ao mesmo tempo serve como projeto para a humanidade, algo como a lei de ouro “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você mesmo”.

Isso começa a ocorrer quando a escrita deixa de ser usada como mero registro contábil nas primeiras civilizações agrícolas e passa a ser uma reprodução mais fiel do cotidiano (a Era Axial, de 800 a.C. até 200 a.C). Não à toa, nesse período nascem várias das tradições filosóficas e religiosas mais conhecidas hoje. Por exemplo, “religiões do livro”, como Judaísmo, Hinduísmo e Budismo, tomam forma nesse período. O conhece a ti mesmo da filosofia socrática, que traz o ser humano para o centro das indagações filosóficas, também surge aí. Isso significa que, de algum modo, a utilização da escrita como um reflexo da oralidade modificou fundamentalmente a psicologia humana. Riscar materiais como argila, papiro ou papel para registrar e observar seus próprios pensamentos trouxe uma nova forma de consciência para a humanidade. É como se a escrita fosse um aplicativo instalado no cérebro humano, criando novas funções e aprimorando as existentes.

Essa influência da escrita sobre a consciência foi proposta no livro  “A Origem da Consciência com o Colapso da Mente Bicameral”, escrito pelo psicólogo Julian Jaynes. Ele argumenta que, antes desse uso oral da escrita, as pessoas tinham a mente dividida em duas câmaras. Uma câmara dá ordens e a outra câmara obedece. Isso é basicamente o que acontece quando as pessoas estão distraídas olhando pela janela do ônibus e um pensamento surge, algo como “Puxa, esqueci que hoje tenho um compromisso tal hora. que horas são agora?”, aí você pergunta a hora para a pessoa mais próxima sem pensar muito no que está fazendo. Isso acontece também na direção, quando o motorista experiente entra num estado de fluxo e só age, sem refletir muito, sem questionar pensamentos que por ventura brotem. Você não sabe o porquê nem como surgiu esse pensamento, só sabe que do nada ele apareceu como se tivesse sido soprado por alguém. Pois é exatamente isso que as pessoas há milênios achavam. Essas vozes alucinatórias eram os deuses falando com os humanos. Esses humanos eram inconscientes no mesmo sentido do motorista em fluxo. Você não é um robô, mas é como se a capacidade de questionar esse fluxo fosse menor e menos voluntária.

Vislumbres de consciência apareciam em momentos de estresse. Hoje ainda passamos por isso. Já reparou que no dia da prova da autoescola erramos procedimentos que nunca erramos nos treinos? Isso acontece porque sob estresse tendemos a não entrar em estado de flow nas tarefas. Ficamos hipervigilantes em relação a qualquer comportamento e isso dificulta a realização de certas tarefas. Uma voz alucinatória começa a narrar o que estamos fazendo, a dizer o que foi feito, o que será feito. Você está nervoso e pensa em cada movimento do volante, da marcha.

A diferença entre nós e pessoas pré-Era Axial é o gap entre as vozes alucinatórias e a tomada de decisão. Não havia muita reflexão antes de realizar um comportamento. Não havia introspecção. As pessoas só questionavam essas vozes e suas próprias ações nos momentos de estresse, quando esse fluxo automático das coisas se rompia. A capacidade de ouvir essas vozes internas e debater com elas racionalmente não nasce pronta nos humanos. Não é nata. Pesar prós e contras cuidadosamente e tomar decisões racionalmente é algo que se aprende. Pode-se dizer que o ser humano não nasce racional, mas torna-se.

Julian Jaynes argumenta que em obras como Ilíada as pessoas pareciam ter Mentalidade Bicameral. Por exemplo, Aquiles nunca pensava sobre si mesmo, nunca se engajava num processo de introspecção. Eram sempre os deuses instruindo sobre suas ações. Do mesmo jeito, no Antigo Testamento bíblico a voz de Javé ordenando coisas se parecia muito com um processo de tomada de decisão rudimentar. Por exemplo, Javé fala para Abraão sacrificar seu filho para provar sua fé. No meio do procedimento Javé diz que o fato de Abraão ter concordado com o sacrifício já era suficiente prova. Isso poderia muito bem ter sido o patriarca deliberando e tirando conclusões diferentes sobre o que significariam suas próprias atitudes. Mas essas vozes alucinatórias em sua cabeça não eram entendidas como pensamentos como as entendemos hoje. Era a voz divina.

A escrita possibilita essa habilidade de introspecção porque permite colocar as ideias num meio físico manipulável. O argumento é que assim como não é possível escrever um artigo de cabeça, sem escrever e estar o tempo todo alterando o que foi escrito, não é possível organizar seus próprios estados internos e questioná-los muito eficientemente. Não é que toda pessoa precise de um diário para ser capaz de pensar sobre o que ela mesma pensa. A ideia é que a criação da escrita como forma narrativa criou um trending cultural. A escrita fabricou a possibilidade cultural de um novo modo de ser humano. Você não precisa de um diário, mas só de viver numa cultura letrada você já aprende oralmente que você tem uma biografia, que pode controlar seus devaneios internos e transformá-los em reflexão racional. Simples assim!

 


segunda-feira, 3 de março de 2025

PERSONALIDADE E CARÁTER. LOUCURA OU JEITO DE SER? NEM FREUD RESPONDE!

 


“Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós.

Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.

By Antoine de Saint-Exupéry

         A relação de doenças mentais ou distúrbios metais (seja qual for a melhor denominação) é grande e, ao que tudo indica, parece que não vai parar de crescer. Será que o acréscimo de denominações é decorrente de um aumento exponencial de desarranjos mentais da humanidade (de uns tempos para cá) ou se deve ao fato dos profissionais que lidam com a mente não saberem mais o que fazer para “encaixar” um paciente na extensa lista de transtornos mentais do manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais?

A taxonomia dos profissionais da saúde mental oferece um espectro amplo de dificuldades tanto doutrinárias quanto técnicas. Quando procuramos identificar, particularizar ou classificar os transtornos mentais, encontramos questões e problemas advindos da história da medicina e da psiquiatria, ideologia, maneira de pensar, do ambiente social, da cultura vigente e até das opções políticas. Tal se dá, entre outras razões, pela dificuldade de aplicação do modelo biomédico nos transtornos mentais. Na individuação das enfermidades ou doenças temos duas maneiras básicas de classificação: o modelo biomédico e o modelo psicossocial. O modelo biomédico exige para a taxonomia das enfermidades que possamos determinar com clareza e segurança qual a etiologia da doença, ou seja, qual sua causa morfopatológica ou fisiopatológica, causa esta que deve ser única para aquela doença.

Deve ser estabelecida também a patogenia – o mecanismo pelo qual a causa produz a doença: como as alterações anatomopatológicas ou fisiopatológicas levam ao estabelecimento dos sinais, sintomas ou indícios clínicos da enfermidade. A história natural também deve ser instituída: como a doença vai evoluir e o que ela vai causar em seu padecente, as manifestações físicas, psíquicas e sociais. Esse modelo é plenamente aplicado nas doenças físicas ou somáticas. Tomemos como exemplo o diabetes. Sabemos claramente sua causa – alterações no metabolismo dos glicídios –, como tais alterações produzem os sintomas e como a doença evolui. Já com as doenças mentais, não temos tal facilidade. Com exceção das demências e das oligofrenias moderadas, graves e profundas, o modelo biomédico é de difícil aplicação. Tanto que tais entidades podem ser consideradas mais neurológicas que psiquiátricas.

Nas psicoses, particularmente nas antigamente chamadas endógenas – esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva (transtorno bipolar do humor), ele pode ser aplicado, mas com adaptações e pressupostos, o que torna tal objetivo sujeito a contestação e dificuldades de verificação empírica. Mas um grande contingente de transtornos mentais – se assim podemos nomear tais entidades – fica inteiramente fora da aplicação do modelo biomédico. Estamos falando das neuroses e das psicopatias (transtornos de personalidade). Não é possível estabelecer uma etiologia definida e incontestável, a patogenia é inteiramente desconhecida, e a evolução, imprevisível. E então, por que razão são consideradas transtornos, doenças ou enfermidades? A solução, considerada por muitas correntes do pensamento contemporâneo como arbitrária, ideológica, desumana e totalitária, é a aplicação do modelo psicossocial. São transtornos porque assim o exigem a história das mentalidades, a sociedade, a cultura, os valores vigentes e – por que não? – os que detêm o poder.

As psicopatias (transtornos de personalidade) pertencem a esse grupo. São “perturbados”, “transtornados”, “doentes” porque estão fora da norma sociocultural vigente, não funcionam como deles se espera (a família, o grupo, a comunidade, a sociedade), incomodam, criam problemas, são esquisitos e diferentes, infringem a lei e os costumes, não se adaptam, não produzem, não rendem e assim por diante. Tal contingente de pessoas “anormais” começou a ser identificado quando o capitalismo comercial e industrial passou a dominar a economia mundial. Na Idade Média eram considerados no máximo como marginais (à margem da sociedade): vagabundos, prostitutas, bandoleiros, mendigos e outros, mas não “doentes”. Agora, no entanto, era preciso que entrassem na ordem de produção. O capitalismo, em especial o industrial, não tolera aqueles que não produzem.

O calvinismo, seita protestante fundada no início da reforma protestante, veio dar um colorido religioso a essa ideologia: a acumulação do capital e a riqueza eram provas da benevolência de Deus e da salvação eterna. No século XVIII, em suas etapas finais, o Iluminismo, a ilustração vieram em socorro desses anormais e selecionou dentre eles os que poderiam ser considerados “doentes”. Assim, criou-se a categoria dos degenerados morais e mais tarde dos psicopatas. Hoje tanto a classificação internacional de doenças quanto a classificação norte-americana de doenças mentais o incluem em seus itens e individualiza a categoria e subtipos.

Bastam cinco minutos para identificar o paciente instável, inflexível, teatral, inseguro, arrogante, submisso, lunático, desconfiado, misantropo, transgressor... Estas podem ser apenas características individuais, que não preenchem critérios para um diagnóstico psiquiátrico. Mas também podem estar presentes em pessoas que, por seu comportamento repetitivo, peculiar e capaz de gerar prejuízo, causam danos físicos e psicológicos a si mesmas ou aos que estão ao seu redor. Elas seduzem, manipulam, surpreendem, espantam, assustam, sufocam. Tudo em seu comportamento é exagerado: amor demais, carência demais, desconfiança demais, controle demais, raiva demais. Invariavelmente, passam a impressão de que alguma coisa está fora da ordem.

E está mesmo! A partir do fim da adolescência, os indivíduos com essa natureza apresentam um jeito de ser caracterizado por um padrão de comportamento inflexível e repetitivo, que causa prejuízo significativo na maneira como se relacionam afetivamente, em sociedade, no trabalho ou na família. Seria possível denomina-los de psicopatas do cotidiano. É preciso deixar claro que a psicopatia se refere à atual classificação médico psiquiátrica denominada “transtornos específicos da personalidade” Pessoas com esses transtornos, com frequência e sem perceber, causam intenso sofrimento a quem convive com elas. Elas não perdem o juízo da realidade ou sofrem com surtos, delírios e alucinações. A maneira como interagem com o mundo é que as torna de difícil convivência - o transtorno de personalidade não é uma condição necessariamente associada a crimes bárbaros e cruéis.

A humanidade está sendo freneticamente bombardeada, diariamente, com notícias sobre crimes sexuais, casos de assédio moral, assassinatos por motivo torpe ou fútil, violência doméstica, maus tratos a animais. O psicopata do cotidiano tanto pode ser um líder místico que convence seus seguidores ao suicídio coletivo quanto um garoto que depreda patrimônio público e posta foto de seu ato na internet. Mas seus traços de personalidade também aparecem nos motoristas que perdem a cabeça no trânsito, nos vizinhos que vão parar na delegacia após uma discussão no condomínio ou nos pais e nas mães que fazem chantagem emocional com os filhos até levá-los a tomar atitudes contrárias às suas vontades. Em maior ou menor grau, esses indivíduos deixam marcas na vida dos seres humanos. Compreendê-los e aceitá-los parte de um simples princípio: eles são assim, não entendem o problema e se recusam a tratá-lo. No máximo, após um longo processo de autoconhecimento, conseguem entender o mecanismo de repetição de suas atitudes e minimizar seus efeitos.

Mas por que eles são assim? E por que esse jeito de ser é considerado prejudicial? Entender o que se passa com um indivíduo “cabeça dura”, de “gênio difícil”, “esquisitão”, “pipa avoada”, “pavio curto” e tantas outras definições populares requer, como primeiro passo, saber que a nossa forma de sentir, pensar, nos comportar, o nosso jeito de ser, aquilo que nos diferencia uns dos outros, é o que denominamos de personalidade. Mas o que seria a personalidade? Ao longo da história, cientistas e pesquisadores se debruçaram sobre a questão e, hoje, uma teoria amplamente aceita indica que se trata do resultado da combinação e da interação entre dois componentes: o temperamento e o caráter. O temperamento é herdado geneticamente e regulado biologicamente. Já o caráter está ligado à relação do temperamento com tudo o que vivenciamos e aprendemos na relação com o mundo exterior. Portanto, a personalidade é considerada uma organização dinâmica, resultante de fatores de ordem biopsicossocial.

Em síntese, o temperamento seria a predisposição biológica para as sensações, motivações e reações automáticas no plano emocional. Ele é a base do humor, o ingrediente que fornece o tempero e colorido emocional, permanecendo relativamente estável ao longo da vida. A ciência comprovou que a herança genética não se limita apenas à cor dos olhos, dos cabelos ou da pele, à estatura, aos distúrbios metabólicos e, às vezes, às malformações físicas. Ela também influencia as tendências e respostas comportamentais.

Sobre o caráter, é possível afirmar que ele está associado à consciência que a pessoa tem de si, dos outros e do mundo que a rodeia. À luz da ciência moderna, a ideia de que cada ser humano nasce com uma índole, boa ou má, foi substituída pelo conceito de que ele tenha o livre-arbítrio para agir de acordo com os seus princípios pessoais, mas sem ignorar o fato de que é parte integrante de um grupo social. Assim, na formação do caráter, há um componente biológico e outro ambiental. O caráter seria a porção aprendida, influenciada pelo temperamento e, ao mesmo tempo, capaz de influenciá-lo. Portanto, por mais força que o componente biológico tenha na formação da personalidade, as experiências vividas e o aprendizado contribuem para a equação final, sempre dinâmica.

Com tantos fatores em discussão, o fato é que a complexidade do comportamento humano vem gerando controvérsias há séculos (e continuará). A personalidade resulta da combinação de fatores biológicos e ambientais, mas a ciência ainda não consegue precisar qual o peso de cada um desses elementos em sua formação (relativo meu caro amigo, amiga). Ao longo da história, a balança já pendeu para um e para outro lado, nunca sendo conclusiva. Em determinadas épocas, havia a certeza de que o homem nasce com determinada índole que é imutável. Em outras, predominou a tese de que o meio pode, sim, influenciar o jeito de ser de um indivíduo (concordo!). Mesmo sem saber a proporção exata da influência do meio na formação do caráter, é evidente que viver num ambiente positivo, com afeto, condições sociais adequadas e noção de valores como compaixão e empatia pode aumentar a chance de uma pessoa não desenvolver um traço patológico de personalidade (e vice-versa).

Enfim...independentemente dessa ou daquela faceta, a personalidade, ou o jeito de ser, é resultado de uma combinação única e original, que funciona num espectro de traços positivos e negativos, mais ou menos adaptados. Porém, quando esse jeito de ser apresenta, desde cedo, características inflexíveis, rígidas e disfuncionais muito acentuadas, é possível que se trate de uma personalidade perturbada. Perturbada para si e, mais frequentemente, perturbadora para os outros. Simples assim!


HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR

  HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR by Heitor Jorge Lau             É uma verdade quase inquestionável que, em algum mome...